𝗖𝗮𝗽𝗶́𝘁𝘂𝗹𝗼 𝟯
A tempestade despencava do lado de fora das paredes sufocantes da escola, agredindo as janelas, ameaçando estourá-las a qualquer momento. O vento açoitava as árvores enquanto Megumi observava-as contorcer para o lado, traçando com os olhos o caminho das folhas caindo uma atrás da outra com o alavancar violento da chuva e do vento. A inconstância do clima afetava bastante sua rotina, o mundo despencava em chuva e vento, mas o ar era denso e quente, se estivesse alucinando, poderia cogitar a possibilidade de tocar o ar com os dedos.
Escutava os leves roncos de Yuuji atrás de si, o garoto havia dormido no instante em que adentrou na sala de aula e até agora não deu sinal de acordar. A classe estava incomumente quieta, todos concentrados na fala da velha professora, a mulher de cabelos grisalhos e cheiro de ameixa, com sorriso doce e voz matriarcal, explicando calmamente a matéria.
Não que ele de fato se importasse com o que a velha tinha a dizer, pessoas com fala constante e calma eram totalmente irritantes, talvez porque ele estivesse acostumado a estar rodeado de pessoas extrovertidas e elétricas, pessoas como ele faziam-no lembrar do quão monótono e desgastante era ser ele.
A garota de cabelos cor de ébano e olhos castanhos dourados estava sentada do outro lado da sala, com o olhar vidrado na professora. Não sabia ao certo o porque que quando ficava alheio ao tempo seus olhos escorregavam instantaneamente para ela, aquela não foi a primeira vez que pegava-se a encarando.
Os dias ao lado da garota eram constrangedores, a senhorita Aikyo sempre evitava falar, olhar e até mesmo ficar no mesmo espaço que ele, ela era alegre com todos e facilmente fez amizade com os outros membros do clube, o que já era de se esperar mas algo lá no fundo de seu ser queria que ele desse qualquer abertura, que falasse com ele, que voltasse a sorrir como cumprimento todas as manhãs como costumava fazer... Megumi estava incomodado com Aya Aikyo ignorando a existência dele.
Era um inferno, porque ele sabia que merecia aquele tratamento e que se a Aya fosse uma pessoa ruim com certeza teria feito bem pior ao escutar as atrocidades que disse a ela, mas não, ela simplesmente o tratava indiferente, como se ele não passasse de poeira incomoda repousando encima dos móveis. Ela poderia espalhar boatos e fazer todos o odiarem se quisesse, tinha influência o suficiente para fazer isso e mesmo assim não o fez.
Pior do que ser ignorado era se sentir culpado.
As aulas passaram tão rápido que em um piscar de olhos já era três horas, o sinal tocou e seu som estridente foi o que fez Megumi acordar de seus sonhos vívidos, rapidamente levantou-se reunindo o material na mochila, colocando-a nos ombros já indo se destinar ao clube, mas sentiu uma mão pousar em seu ombro e por um segundo pensou que poderia ser Aya, coisa que o fez se virar de supetão apenas para dar de cara com o irmão.
- Vai querer jantar em casa hoje? - Yuuji disse em meio a um bocejo desleixado - Satoru vai fazer alguma coisa especial. - O garoto se espreguiçou ignorando as outras pessoas tentando passar para ir embora.
- Primeiro - Megumi o puxou para o lado tirando-o da passagem - Não fique no meio dos outros. Segundo, não boceje em público, é falta de educação - o garoto sussurrava para Yuuji, mesmo que estivesse dando uma bronca, não gostava de elevar sua voz - E terceiro, talvez eu vá jantar hoje, ainda não decidi se vou ir ver minha mãe ou se vou encontrar a Tsumiki e-
- Sentimos sua falta. - Yuuji simplesmente soltou ao vento palavras que fizeram Megumi calar a boca e arregalou levemente os olhos - Sei que gosta de ter contato com sua família biológica mas não se esquece da gente, cara. Também queremos sua companhia.
Yuuji apertou o ombro do irmão saindo logo em seguida, deixando Fushiguro estático ao lado de sua carteira, sem saber o que responder ou como processar. Não tinha ideia que se sentiam daquele jeito por conta das visitas constantes a sua mãe e irmã, e tinham razão por agir desta forma, Megumi andava de fato deixando de lado sua família para ir ver a sua família, era confuso e difícil de entender mas elas precisavam dele mais do que Yuuji e Satoru e Nobara.
Era injusto abandonar aqueles que realmente estiveram com ele em todos os momentos.
Mais um motivo para se sentir uma péssima pessoa.
[...]
O relógio indicava três horas e nada de Aya chegar, sem perceber, acabara descobrindo que a garota começou a ser pontual, três horas em ponto e ela sempre aparecia na porta trajando o uniforme, com livros e um sorriso gentil que não era destinado a ele, mas em um intervalo de uma página para outra eram quatro horas e nada dela, mais um capítulo e eram cinco e sem sinal da garota Aikyo. Seis horas em ponto, a chuva continuava despencando lá fora ficando cada vez mais forte, o sinal para os clubes irem embora já havia tocado e não teve o vislumbre da presença dela no clube.
Não sabia ao certo o porquê de ter esperado tanto, como se a simples presença dela o deixasse em paz, saber que ela estava cumprindo com seu objetivo era um alívio e não vê-la ali era estranho. Faltas poderiam prejudicar seu histórico como a senhora Utahime tinha explicado, ela não podia descumprir com o trato senão haveria consequências para ela...
Sem parar para pensar direito, Megumi simplesmente assinou o nome dela na lista de presença, engolindo em seco ao fazer isso mas logo a sensação de culpa sumindo, era um simples favor para ajudar uma colega a qual estava em dívida.
Como esperado da imagem através da janela estava chovendo, entretanto, muito mais forte do que esperava, e para sua alegria estava sem seu guarda-chuva.
Observava todos indo embora enquanto ele continuava parado ali esperando por uma obra divina dos deuses, torcendo para que eles fizessem em um passe de mágica a tempestade parar para ele poder ir embora sã e seco mas não costumavam ouvir suas preces de qualquer jeito, então continuou vendo todos indo embora, plantado na frente da escola embaixo do teto acolhido por um vento frio e violento.
Isso trazia memórias conturbadas da infância, onde passava horas esperando seu genitor na frente do portão do jardim de infância, cruzando os dedos para que ele chegasse a qualquer momento, torcendo para que ele estivesse de bom humor. A criança dentro de si não merecia passar por isso.
Mas ele sim merecia estar nessa situação e ainda sim não era o suficiente para pagar por todos os seus pecados.
Em questão de segundos não havia mais ninguém saindo e tudo estava em silêncio, só o farfalhar das folhas e o barulho da chuva forte eram suas companhias.
Dia alegre aquele.
Por alguns segundos ouviu alguém saindo, batendo com força a porta de entrada, parando alguns metros de distância dele. O som da respiração da pessoa a qual não se dignou a olhar era ofegante e assustada, mas ainda sim não disse uma palavra no minuto em que estava parada ao seu lado, teve de se forçar para não espiar de soslaio mas o que realmente chamou sua atenção foi o guarda-chuva rosa choque com bolinhas brancas estendido na sua frente.
Acompanhou com olhos toda extensão do objeto até parar em um par olhos castanhos tristes.
Os olhos tristes mais lindos que ele já vira.
Ayame estava estendendo para ele o próprio guarda-chuva, com uma expressão indecifrável no rosto, cabelos molhados e uniforme encharcado - Anda, pega logo. Não tenho o dia todo... A não ser que esteja esperando alguém.
Ele se surpreendeu de primeira, mas logo negou com a cabeça - Não posso aceitar. - Megumi disse tímido, evitando olhar diretamente para ela. - Como você vai embora sem ele?
- Não te ofereceria caso não tivesse um reserva - ela apoiou o guarda-chuva aberto no chão ao lado das pernas do garoto logo colocando a mochila a sua frente revirando-a procurando seu outro par - Está aqui! - ela disse mais para si mesma com uma alegria simplória, mas não demorou para retornar a expressão de indiferença - Espero que não seja tão orgulhoso a ponto de preferir ir embora no meio de uma tempestade desprotegido do que aceitar um favor meu.
Aya abriu o guarda-chuva reserva se estendendo para fora, não se despedindo e não se importando se ele aceitaria ou não. Ela só não gostaria de ver ninguém naquela escola até de noite por não conseguir ir embora, faria isso por qualquer um.
- Obrigado, senhorita Aikyo.
Ela não olhou para trás.
Mas ele soube que ela havia escutado.
Megumi continuou observando-a até ela não passar de um pontinho preto no horizonte. Pensando na imagem dela, o cabelo molhado enrolado nas pontas, o rímel borrado, o uniforme amassado e aquilo no rosto dela eram sardas, ele pensou. E ainda sim, mesmo estando claramente com problemas ela ofereceu ajuda.
Como conseguia ser gentil com alguém que a ofendeu? Por que não o ignorou e foi embora? Por que não riu da cara dele debochando da situação?
Por que a garota Aikyo não saía dos pensamentos dele?
Ele preferiria que ela o tratasse com desdém, que fizesse da vida dele um inferno, queria que ela o fizesse pagar por ser um desgraçado, sentiria-se melhor se Aya agisse como a maioria das pessoas, mas não, ela tinha que ser desse jeito irritantemente gentil, mesmo brava, era tão bonita...
Todas as vezes que falava com ele, Aya franzia o nariz de leve ou revirava os olhos, tentava engrossar a voz para tentar ser imponente mas não conseguia, ela era adorável e Megumi definitivamente se sentia culpado por ofendê-la de graça.
Ele iria se desculpar.
Mas talvez a vingança dela fosse ter feito ele andar pela avenida cinza e triste usando um guarda-chuva cor de rosa.
[***]
Sua roupa estava encharcada e seu cabelo era algo semelhante ao caos do mundo, nós que não poderia nem imaginar achar o início, meio ou fim, sua maquiagem estava arruinada assim como ela e seu corpo inteiro tremia pelo asco.
Havia sido uma péssima ideia não ter ido ao clube para atender as pendências do professor de química, ela já tinha noção sobre o tipo de visão que o velho imundo tinha dela, mas ter aquele olhar bárbaro concentrado em seu corpo a fez sentir-se suja.
Não era primeira vez que um homem mais velho a olhava daquele jeito nojento, desde os treze esse tipo de situação vinha acontecendo e Aya sempre tentava colocar a culpa em si mesma, tentar achar uma justificativa para tais acontecimentos mas nunca chegava a uma conclusão. Só tinha o pensamento convicto de que não importava a roupa ou até mesmo a idade, homens como aquele sempre tentariam fazer o pior e pode ter certeza, você ter treze ou dezessete anos não vai fazer a mínima diferença.
Se sentia nojenta, era uma garota que odiava a si mesma por conta de olhares com cunho estranho e malicioso, comentários sexuais sobre seu corpo, não conseguia se envolver na grande maioria porque nunca queriam algo a mais do que uma transa ou quando queriam exigiam relacionamentos movidos ao sexo e a extrema sexualização da parte dela.
Por isso Aya não queria se envolver com ninguém, era triste demais ser vista como um objeto e ela tinha plena certeza que se parasse de arranjar garotos esquisitos automaticamente seus problemas neste nicho desapareceriam, mas não. Em qualquer lugar teria alguém que a veria como um rosto bonito e um par de peitos ambulantes.
O fato era que ela aprendeu a odiar relações sexuais e só havia se envolvido com uma pessoa, mas ainda sim, todos os boatos era que ela abria as pernas para qualquer estranho e que se humilhava por atenção, quando sequer poderia se considerar experiente no assunto.
Ela nunca se importou com os boatos, por mais triste que seja, ela tinha noção que não eram verdade e não se resumia a isso, as pessoas com quem se importavam não acreditavam e era isso que contava, não era de seu feitio dar trela para esse tipo de coisa mas ouvindo seu professor mencionando os boatos para suborná-la foi de arrasar seu coração.
"Ande, senhorita Aikyo, todos dizem que você sabe muito bem o que fazer quando precisa de ajuda."
O olhar que ele deu a ela, a insinuação em suas orbes a fez sair correndo pelo lado de fora. Quis despistar qualquer um então deu a volta pelo lado de fora, tomando chuva, porém, sozinha. Queria pensar sem ninguém perguntando se ela estava bem ou sem olhares esquisitos, só queria conseguir chorar.
Mas também tiraram sua capacidade de fazer isso.
Quando percebeu que uma grande maioria havia ido embora foi para a saída principal, batendo a porta com força o suficiente para espantar qualquer um que estivesse por perto, não se importou com o garoto parado um pouco mais adiante, apenas abriu seu guarda-chuva, só queria ir embora mas algo dentro de si a fez olhar para o estranho.
Ótimo, que bela companhia ela tinha agora.
Será que ele estava esperando por alguém? Pensou consigo mesma, mas ele não parecia que sim. Fushiguro não se deu o trabalho de olhá-la, mas tinha o olhar fixo na chuva, como se implorasse para que ela parasse de vez.
Ambos provavelmente estavam tendo um dia de merda, um que aparentava ter visto um parente morto e a outra querendo ser o parente, que dia tenebroso e mais triste. Além de feio foi péssimo.
Ela gostaria de conversar com alguém ou de receber uma palavra gentil, para melhorar os ânimos, mas não esperava receber isso dele de qualquer forma.
Mas talvez ele gostaria.
Sem pensar muito estendeu para ele o guarda-chuva, sempre tinha um reserva de todo jeito, não custaria nada emprestar um para um colega, por mais que o mesmo fosse insuportável.
Aya presumiu que ele empurrasse o guarda-chuva e dissesse coisas horríveis, para ela mas Fushiguro a encarou com algo semelhante a culpa, os olhos azuis não estavam frios e indiferentes como de costume, suas orbes encontravam-se tristes.
Talvez as mais bonitas que ela já viu.
- Anda, pega logo. - ela engoliu em seco segurando-se para não vacilar, não poderia baixar a guarda - Não tenho o dia inteiro. - ou talvez ele estivesse relutante porque realmente esperava alguém, céus, queria morrer de vergonha por não ter perguntado antes - A não ser que esteja esperando alguém... - ponderou mais calma.
- Não posso aceitar. - sua voz era receosa e tímida, com timbre baixo e calmo, nada parecido com o retumbar grosseiro de antes - Como você vai embora sem ele?
A preocupação fora evidente em sua expressão e Aya quis ter sido mais gentil com ele, mas ainda tinha a muralha que o mesmo ergueu quando ofendeu ela sem pudor algum. Ela era boa, mas tudo tinha limite.
- Não te ofereceria caso não tivesse um reserva - Aya não poupou o tom rude, ainda precisava ir embora, caçou seu guarda-chuva reserva e suspirou de alívio ao encontrá-lo, o garoto ainda não havia pegado o objeto disposto para ele e Aya não conseguiu segurar a língua. - Espero que não seja tão orgulhoso a ponto de preferir ir embora no meio de uma tempestade desprotegido do que aceitar um favor meu.
Sem mais delongas Aya se foi, indo em direção a chuva forte completamente doida para chegar em casa, quando estava prestes a encarar de vez a chuva, conseguiu ouvir de longe.
- Obrigada, senhorita Aikyo.
Não o respondeu, mas um sorriso fraco involuntário nasceu em seus lábios.
Então quer dizer que Megumi Fushiguro tinha educação?
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