𝐏𝐑𝐎𝐋𝐎𝐆𝐔𝐄



Natsume Amesaki

⠀O diabo existe e eu já tive o desprazer de conhecê-lo.

⠀Ele tem olhos esmeraldinos atentos a tudo o que acontece em seu entorno e um revólver carregado sempre ao seu alcance. Seu rosto cicatrizado nunca esboça o que está realmente pensando ou sentindo. Eu o odeio profundamente, como nunca odiei nada nem ninguém antes. Ele colocou uma coleira no meu pescoço como um maldito cachorro no momento em que perdurou os olhos em mim e, desde então, está ciente de todos os meus movimentos. Seus demônios me perseguem e cochicham em seu ouvido para que ele me mantenha no controle, mesmo a quilômetros de distância.

⠀Ele poderia queimar qualquer um que ousasse olhá-lo nos olhos sem abaixar a cabeça em seguida. Eu fui um desses e, pra falar a verdade, preferia não ter sobrevivido ao que veio depois.

As queimaduras doem até hoje.

⠀Estou sendo observado, mesmo agora, em um assento qualquer de um trem bala ridiculamente cheio com destino à Tóquio. Eu tento não ceder à vontade de olhar ao redor a cada minuto, já que nunca encontro ninguém que parecesse, no mínimo, estranho. Mas não é paranóia minha. O diabo é teimoso demais para deixar seu cão andando livre por aí, eu sempre soube.

⠀O atrito dos trilhos provoca um barulho constante, movimentando o vagão em que estou. Aqui, o silêncio praticamente não existe. Heaven and hell, black sabbath está tocando tão alto que um de meus ouvidos chega a doer, e ainda assim, posso escutar, graças ao lado quebrado do meu headphone de péssima qualidade, conversas paralelas saindo de todos os lugares. Tenho a impressão de que ninguém ali calava a boca, nem por um segundo. Eu odeio isso.

⠀Eu preciso de silêncio para me acalmar.

⠀Sem isso para me acolher, as dores de cabeça voltam e meus olhos se prendem a tudo aquilo que se move, cautelosos demais para poderem se fechar por mais de dois míseros segundos. Sempre em guarda. Como um instinto de sobrevivência onde absolutamente tudo oferece perigo. Eu estou cansado de ficar em alerta.

⠀Tudo o que mais tem por aqui são pessoas, e eu aprendi a odiá-las como ninguém.

⠀Tudo sobre elas me perturba.

⠀Me irrita.

Me apavora.

⠀Percebo de esguelha mais uma delas passando pelo corredor, ela faz menção de parar ao perceber minhas pernas desleixadamente ocupando o assento ao meu lado, mas no momento em que a olho de volta, ela se apressa a sair. Por algum motivo, ninguém gosta de ficar depois de olharem em meus olhos. Não sei exatamente o que vêem neles para os deixarem assim tão desconfortáveis, eles logo desviam os olhares como se tivessem visto algo que não deveriam.

⠀Dizem que "os olhos são o espelho da alma". Deve ser isso. Eu não tenho nada de bom para transmitir aqui dentro, minha alma já foi corrompida há muito tempo, está completamente quebrada agora, seus pedaços ficaram para trás junto com tudo aquilo que um dia já ousei amar.

⠀Mesmo assim, estou satisfeito com a ideia de afastar os outros sem precisar apontar uma arma.

Eu me dou bem melhor sozinho.




Yuuji Itadori

⠀Sinto alguém balançar o meu corpo, insistindo em me trazer de volta à consciência. Abro minimamente os olhos, apenas o suficiente para distinguir quem era, mas os fecho antes disso, sentindo uma enorme dor afligir a minha cabeça.

⠀─ Vamos, acorda aí, cara.

⠀Franzo o cenho. Ainda não tenho coragem para enfrentar a claridade do dia.

⠀─ Me dá um tempo ─ peço em um murmúrio arrastado, cobrindo o rosto com os braços.

⠀Não sei exatamente onde estou, mas a superfície pouco aconchegante abaixo de mim sugere um sofá. Quando eu me deitei aqui? Apenas alguns flashes embaçados da noite anterior passam pela minha cabeça ao tentar me lembrar, mas não insisto. O gosto amargo na minha boca e os calafrios não me incentivam a fazer isso, de qualquer jeito.

Qual a novidade?

⠀─ Pega isso ─ ouço a mesma voz rouca de segundos atrás, agora de um outro canto do cômodo. Eu não quero me mexer para atendê-la, no entanto.

⠀Logo sinto uma cartela de comprimidos ser jogada no meu braço, eu não preciso verificar para saber que se trata de aspirina. Pego e descarto logo duas, jogando para trás da minha boca e engolindo-os junto com alguns goles de água da garrafa que havia no chão. Ouço vozes abafadas no andar de cima. Deito a cabeça para trás novamente, dando de ombros.

⠀Quando a dor pareceu ter se acalmado, poucos minutos depois, eu finalmente me esforço para sentar. Meus olhos não demoram a se acostumar com a pouca claridade do ambiente. Nuvens escuras tingem o céu de cinza chumbo, proporcionando uma luz fraca pela janela. Encontro Choso em meu campo de visão, ele está olhando para a mesma janela com os braços cruzados. Me levanto do sofá mas, uma vez de pé, sinto a tontura me atingir e meu corpo pesa. Sento-me novamente. A dor volta a pulsar na minha cabeça, e ela é intensa demais para me deixar pensar em qualquer coisa.

É claro que é.

⠀O tipo de diversão que eu desfruto tem um custo alto, e eu estou pagando por ela.

⠀─ Que horas são? ─ pergunto baixo, massageando a têmpora.

⠀─ Você dormiu o dia inteiro. Todo mundo já foi embora há horas.

⠀─ Sério? Então eu vou indo também.

⠀─ Por que? Não é como se você tivesse algo pra fazer.

⠀─ Não é óbvio? Eu não quero ficar e ter que ajudar vocês a arrumar essa bagunça ─ solto uma risada fraca, mas ela não sai com o humor que eu gostaria.

⠀─ Nem se eu te falasse que a maior parte dela foi causada por você, ontem à noite?

⠀─ Bom, se eu não me lembro, então nunca aconteceu.

⠀Choso suspira alto e eu finalmente reúno forças para me levantar.

⠀─ Te ligo mais tarde.

⠀Quando fecho a porta da entrada, o sorriso que eu forçava se desmancha, e eu me demoro para dar o primeiro passo. Sei que não posso ficar ali o tempo que quisesse, dependendo deles para me fazer esquecer de tudo. Não quero incomodá-los mais do que já incomodo diariamente. Mas, mesmo assim...

Eu tenho medo de ficar sozinho.


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