( 004 ) 𝐒𝐈𝐋𝐄𝐍𝐂𝐄 𝐃𝐄𝐒 𝐀𝐍𝐆𝐄𝐒 .
15 DE AGOSTO
Liam me deu um sorriso de canto, os olhos brilhando com algo que eu não conseguia decifrar completamente. Ele abriu a boca para dizer algo, talvez um elogio ou uma provocação suave, mas o momento foi brutalmente interrompido por uma voz carregada de sarcasmo.
──── A saia continua curta, boneca. Parece que não aprendeu nada com o que eu falei ──── Adam apareceu na margem do palco, encostado em uma das colunas como se fizesse parte do cenário, fingindo desgosto enquanto balançava a cabeça de um lado para o outro.
Meu corpo congelou por um segundo, mas só o suficiente para o sangue ferver em minhas veias. Me virei para ele lentamente, com um sorriso forçado que escondia minha irritação.
──── E você continua dando opinião onde não foi chamado, Adam ──── respondi, minha voz pingando sarcasmo. ──── Parece que não aprendeu nada sobre ficar quieto ────
Ele ergueu as mãos em falsa rendição, mas o sorriso zombeteiro em seus lábios não desapareceu.
──── Ah, mas é difícil ficar quieto quando a "estrela" do show insiste em roubar a cena... ──── Ele fez um gesto exagerado com as mãos, como se me apresentasse a uma plateia invisível. ──── Ou em mostrar demais para os bastidores ────
──── Cuidado, Adam ──── Liam finalmente interveio, sua voz baixa, mas carregada de um tom de aviso. Ele se levantou lentamente do banco improvisado, o olhar fixo em Adam. ──── Talvez você esteja se esquecendo que a boneca pode não ser tão frágil ────
Adam apenas riu, despreocupado.
──── Ah, o pequeno Liam, sempre o cavaleiro protetor. Mas vamos combinar, você acha que ela precisa de você? Olhe para ela, já está quase pronta para ser o cisne negro desse espetáculo ────
Eu senti o calor subir pelo meu rosto, mas não era vergonha. Era raiva, pura e crua. Dei dois passos à frente, me aproximando do limite do palco, olhando Adam diretamente nos olhos.
──── Ouça bem, Adam ──── comecei, com uma firmeza que até me surpreendeu.
──── Se quiser falar sobre mim, faça isso longe dos meus ouvidos. E se tiver algo para dizer sobre minha roupa, talvez devesse se preocupar mais com os trapos que você usa para brincar de piloto ────
Ele arqueou uma sobrancelha, claramente se divertindo com meu desafio.
──── Interessante... Parece que a boneca também sabe falar. Vou adorar ver como isso vai acabar ────
Liam deu um passo ao meu lado.
──── Acabar? Você diz isso como se já não estivesse perdendo, Adam ────
A tensão no ar era quase palpável, mas eu não deixei me abater. Ergui a cabeça, com a postura mais elegante que consegui reunir, e fiz questão de voltar minha atenção para Liam, ignorando Adam por completo.
──── Vamos, Liam, ──── disse suavemente. ──── Acho que não vale a pena perder meu tempo com alguém que nunca será o protagonista do show ────
Por um motivo que eu mesma não sabia explicar, minhas pernas vacilaram, e antes que eu pudesse me equilibrar, senti meu corpo sendo levado para trás. Tudo aconteceu rápido demais. Caí do palco, o ar escapando dos meus pulmões em um grito abafado, mas, para minha surpresa, ao invés de encontrar o chão frio, fui recebida por braços fortes.
Adam.
Ele me pegou no estilo noiva, o que apenas piorou minha situação. O sorriso debochado nos lábios dele era suficiente para me fazer querer desaparecer, mas eu estava ali, em seus braços, com o rosto queimando de vergonha e irritação.
──── Sempre tão dramática, boneca ──── ele zombou, os olhos brilhando de diversão. ──── Parece que estava querendo chamar minha atenção ────
──── Me solta, Adam ──── murmurei entre dentes, tentando me desvencilhar, mas ele não se moveu.
──── Não tão rápido, ──── respondeu, rindo enquanto me segurava com mais firmeza. ──── Hugo quer falar com você. E pelo que ouvi, é melhor você ir direto ao ponto ────
──── Ótimo, então me coloque no chão para que eu possa ir ──── retruquei, sem paciência.
Mas ele não fez isso imediatamente. Em vez disso, me olhou por mais alguns segundos, seus olhos percorrendo meu rosto como se estivesse tentando decifrar algo.
──── Você é uma peça estranha nesse jogo, Rebecca ──── ele comentou com uma voz mais baixa, quase séria. ──── Não sei se vai sobreviver aqui, mas... vai ser divertido assistir você tentar ────
Antes que eu pudesse responder, ele finalmente me colocou no chão, mas não antes de me dar aquele sorriso irritante e passar os dedos pela minha bochecha de forma provocadora.
──── Não me faça esperar demais, boneca ──── ele disse antes de se afastar, assobiando enquanto desaparecia pelo corredor.
Eu respirei fundo, tentando controlar a raiva e a vergonha que borbulhavam dentro de mim. Não era a primeira vez que ele fazia isso, mas algo em suas palavras dessa vez me deixou inquieta. Era como se ele soubesse algo que eu ainda não tinha percebido.
Sem perder mais tempo, ajeitei a saia e caminhei na direção indicada, determinada a entender por que Hugo queria falar comigo. E, mais importante, determinada a provar para Adam, e para qualquer outra pessoa nesse circo, que eu não era apenas a "boneca de porcelana" que eles pensavam. Mas eu tinha que admitir, eu era.
Caminhei pelos corredores desbotados, cujas cores, embora vibrantes em outro tempo, agora estavam desgastadas e manchadas pelo peso dos anos. Havia algo perturbador naquelas paredes, um padrão hipnótico que me deixava ligeiramente tonta, como se o próprio ambiente estivesse tentando me engolir.
Após alguns passos cuidadosos, cheguei a uma porta marcada com a palavra "ANIMAIS" em letras grandes e desiguais. A pintura descascada deixava visível a madeira gasta por baixo, e o som abafado de movimentos e murmúrios do outro lado aumentava a tensão. Eu tinha quase certeza de que Hugo estaria ali. Inspirei fundo e bati duas vezes, hesitante, enquanto o cheiro de feno e algo mais, talvez suor animal ou uma leve fragrância de tabaco, escapava pelas frestas da porta.
──── Entre ──── uma voz firme e profunda ecoou, confirmando minhas suspeitas.
Abri a porta com cuidado, deparando-me com um espaço amplo e mal iluminado, dividido por cercas improvisadas e gaiolas que abrigavam diferentes animais. Havia tigres de olhos penetrantes, um macaco pendurado em uma corrente enferrujada e até um majestoso cavalo branco com crina prateada, que parecia brilhar sob a luz fraca de uma lâmpada.
No centro da sala estava Hugo, abaixado ao lado de um tigre, acariciando o enorme animal como se fosse um gatinho inofensivo. Ele parecia alheio à minha presença até erguer os olhos lentamente.
──── Rebecca ──── ele disse, com um leve sorriso no rosto, mas seus olhos avaliadores me atravessavam como se pudessem ler minha alma. ──── Finalmente teve coragem de vir até aqui ────
──── Você queria falar comigo ──── respondi, tentando manter a postura enquanto desviava o olhar do tigre que ronronava baixinho ao toque de Hugo.
──── Ah, sim... Precisamos conversar sobre o seu papel aqui no circo ──── ele disse, levantando-se e limpando as mãos em um pano que tirou do bolso. ──── Mas antes... me diga, você gosta de animais? ────
Olhei ao redor novamente, hesitante. Algo na forma como ele fez a pergunta parecia carregar um segundo significado, algo mais profundo do que uma simples curiosidade.
──── Gosto... mas isso depende do tipo de animal ──── respondi, tentando esconder o nervosismo.
Hugo riu baixinho e deu alguns passos em minha direção, parando tão perto que eu podia sentir o cheiro terroso e ligeiramente amadeirado que ele exalava.
──── Ótimo. Porque, aqui, cada um de nós é um tipo de animal ──── ele murmurou, quase como uma advertência. ──── E você... ainda está descobrindo qual é o seu ────
──── Puta merda, vocês são todos loucos aqui ──── revirei os olhos, cruzando os braços.
Hugo arqueou uma sobrancelha, claramente não impressionado pela minha reação, e apontou para a parte de cima da porta com um movimento lento e calculado.
──── Você acha que estou brincando? Olhe as paredes ──── disse com um tom que misturava desafio e advertência.
Segui seu gesto, levantando os olhos, e fiquei paralisada. Acima da porta, uma série de pinturas detalhadas decorava o espaço, como uma galeria perturbadora. Cada imagem mostrava um deles acompanhado por um animal. A tinta parecia fresca, quase viva, e algo no traço das pinturas me dava calafrios.
René estava lá, com uma coruja das neves pousada em seu ombro. Mas não era uma coruja qualquer; havia manchas de sangue em suas penas brancas imaculadas, como um aviso silencioso. Ao lado dele, Liam era representado com um urso pardo. O contraste entre o garoto delicado e o animal imponente era estranho, mas fazia sentido de alguma forma. Adam aparecia com um leão ao seu lado, mas não era um rei selvagem das savanas, era um filhote, quase dócil, mas com olhos que pareciam prontos para morder. Hugo estava mais ao centro, acompanhado por um lobo cinzento, que parecia encarar diretamente quem olhasse a pintura, como se soubesse de segredos que ninguém mais sabia.
Mas havia outra figura.
Era uma menina. Ela parecia jovem, com um sorriso doce que contrastava com o ambiente macabro das outras imagens. Seus cabelos castanhos eram soltos e caíam em ondas suaves, enquanto seus olhos brilhavam com uma luz que, de alguma forma, me lembrava de Liam e René. Pendurado em volta dela estava um cisne branco, mas as penas pretas caindo de suas asas denunciavam algo errado, algo... incompleto.
──── Quem é ela? ──── perguntei, apontando para a pintura, incapaz de esconder a curiosidade que queimava dentro de mim.
Hugo congelou por um momento. Sua expressão, que normalmente era controlada, ficou tensa. Ele se virou lentamente para mim, e o brilho de advertência em seus olhos era quase tão palpável quanto a vibração na minha pele.
──── Não fale sobre ela ──── respondeu com um tom cortante, como se fosse mais uma ordem do que um pedido.
──── Por quê? ──── desafiei, cruzando os braços.
Ele se aproximou de mim, invadindo meu espaço pessoal, mas seu olhar desviou para a porta, como se temesse que alguém pudesse estar ouvindo.
──── Não na frente de René, pelo amor de Deus ──── ele sussurrou, as palavras carregadas de algo que parecia mais do que simples medo.
Havia uma história ali, enterrada sob camadas de silêncio e segredos que ninguém queria desenterrar. Mas, pelo que pude perceber, essa garota quem quer que fosse era mais do que apenas um nome proibido. Ela era uma ferida aberta, um fantasma que rondava cada canto do circo.
──── Pode me dizer pelo menos o nome dela? ──── insisti, sem me intimidar pelo tom sério de Hugo.
Ele suspirou, exasperado, e passou a mão pelos cabelos como se estivesse decidindo se deveria ou não me contar. Depois de um momento de silêncio, ele finalmente respondeu, sua voz baixa e firme:
──── Amélie Blanchard. Irmã de René e Liam. Feliz agora? ──── Ele cruzou os braços com uma elegância irritante, como se estivesse me lançando um desafio de não perguntar mais nada.
Amélie Blanchard. O nome ecoou na minha mente, carregado de um peso que eu ainda não compreendia.
──── Irmã? ──── repeti, processando a informação. ──── Por que ninguém fala sobre ela? O que aconteceu? ────
Hugo me lançou um olhar que era ao mesmo tempo frio e cheio de advertências. Ele deu um passo para frente, inclinando-se levemente, o suficiente para me fazer sentir desconfortável.
──── Você faz muitas perguntas, boneca ──── ele disse, com um sorriso que não alcançou os olhos. ──── Amélie não é um tópico para curiosidade. Principalmente para você ────
──── Por quê? O que ela fez? Ou melhor, o que fizeram com ela? ──── continuei, minha voz subindo de tom.
Hugo suspirou novamente, desta vez mais pesado, como se estivesse carregando o peso de algo que preferia esquecer.
──── Amélie era... diferente ──── ele começou, escolhendo as palavras com cuidado.
──── Ela era doce, cheia de vida, mas esse lugar... esse circo... não foi gentil com ela. E René... ──── Ele parou, apertando os lábios. ──── Bem, digamos que René nunca conseguiu lidar com o que aconteceu. René nunca conseguiu lidar com.. ela... ────
──── O que aconteceu com ela, Hugo? ──── perguntei, minha curiosidade agora transformada em necessidade.
──── Isso não é da sua conta, Rebecca ──── ele respondeu com firmeza, cortando qualquer tentativa de discussão. ──── Você já sabe mais do que deveria ────
Eu estava prestes a insistir, mas o olhar sombrio de Hugo me fez hesitar. Ele parecia genuinamente abalado, como se falar sobre Amélie fosse abrir uma ferida antiga.
──── Só um aviso ──── ele acrescentou, voltando sua atenção para o tigre que estava em um canto da sala, como se estivesse tentando fugir da conversa. ──── Não diga o nome dela perto de René. Não fale sobre ela, nem mesmo com Liam. Esse nome... não traz nada além de raiva.. ou dor... ────
A tensão na sala era palpável, e eu sentia que havia tocado em algo que não deveria. Mas, ao mesmo tempo, minha curiosidade só aumentava. Quem era Amélie Blanchard? E por que sua existência parecia assombrar todos ali?
──── Tudo bem ──── murmurei, levantando as mãos em rendição. ──── Mas uma coisa é certa, Hugo... há algo muito errado com este circo ────
Ele não respondeu. Apenas deu um pequeno sorriso enigmático antes de voltar a acariciar o tigre, deixando claro que a conversa havia terminado.
Depois de falar com Hugo, voltei para meu quarto e me joguei na cama, encarando o teto desbotado. Meu corpo estava ali, mas minha mente vagava por um tempo que parecia tão distante que quase parecia um sonho. Tentei organizar meus pensamentos, juntar os cacos da minha sanidade e lembrar de como era minha vida antes de tudo isso. Antes do circo. Antes de René. Antes de me tornar uma boneca de porcelana presa nesse jogo doentio.
Quando foi a última vez que fui verdadeiramente feliz?
A resposta veio rápido. Minha mãe.
Fechei os olhos e, por um instante, pude vê-la com clareza. Seu sorriso gentil, seus dedos macios ajeitando meu cabelo enquanto cantava baixinho uma música que eu já não conseguia lembrar. Minha mãe sempre foi muito mais jovem que meu pai, e talvez por isso tivesse uma leveza que ele nunca teve. Eles pareciam felizes juntos, pelo menos na superfície.
Ela era devota, uma mulher de fé inabalável. Me ensinava sobre a Bíblia desde cedo, contava histórias sobre profetas e milagres, mas o que realmente nos fascinava — o que nos unia — eram os anjos. Não os anjos puros e divinos das histórias comuns, mas os anjos caídos.
Eu me lembrava dela folheando um velho livro de capa de couro, os olhos brilhando de emoção enquanto falava sobre Lúcifer, Azazel, Samael... Os seres que ousaram desafiar o céu e caíram em desgraça.
──── Eles não são apenas vilões, Rebecca ──── ela me dizia com a voz suave, mas intensa. ──── São trágicos. Foram punidos por querer mais, por desafiar as regras. Mas me diga... é errado questionar? ────
Eu nunca soube responder. Mas eu entendia a obsessão dela. Os anjos caídos eram histórias de beleza e horror misturados, de rebeldia e punição. E agora, ironicamente, eu me sentia exatamente como um deles. Presa entre o céu e o inferno, sem um lugar para chamar de lar.
Abri os olhos de novo, voltando para a realidade sufocante do meu quarto no circo.
Havia algo quase simbólico nisso tudo. Eu, uma garota vestida de boneca, forçada a sorrir e dançar para entreter os outros, enquanto um demônio em pele de homem me puxava cada vez mais fundo para sua teia. Talvez René fosse meu próprio anjo caído. Ou talvez eu fosse a dele.
Me peguei imaginando... E se cada um deles fosse um dos anjos caídos?
Era uma ideia absurda, mas não parecia tão impossível dentro daquele circo distorcido. Cada um deles tinha algo de profundamente corrompido, algo que os tornava criaturas fora do comum.
René, por exemplo. Ele seria uma versão mais fraca mas igualmente perigosa de Asmodeus, o rei da luxúria. Não apenas pela maneira como olhava para mim, como se eu fosse uma presa a ser devorada, mas pela forma como controlava tudo ao seu redor com sedução e manipulação. Ele gostava do jogo, gostava de ver as pessoas se perderem nele, gostava de destruir lentamente, aproveitando cada pedaço da decadência que causava.
Mas Asmodeus não era só luxúria. Ele era ciúme, era obsessão, era o fogo que queimava e consumia. E René era exatamente assim. Quando ele colocava os olhos em algo, ou em alguém, não soltava mais.
Pensei em Hugo. Ele era diferente de René, mais calculista, mais frio. Não perdia o controle, não se deixava levar por impulsos. Se eu tivesse que compará-lo a um anjo caído, ele seria Samael, o anjo da morte. Sempre na sombra, sempre observando. Hugo não precisava de palavras para ser assustador; sua presença sozinha já fazia o ar ficar mais pesado.
Adam? Ah, esse era fácil. Ele teria a energia de Azazel, o anjo que ensinou os humanos a pecar. Ele era o caos puro, a tentação, aquele que empurrava os outros para o abismo apenas para ver o que aconteceria. Ele não tinha medo de brincar com fogo porque, no fundo, ele era o próprio incêndio.
E Liam… Bom, Liam era um mistério. Ele não parecia ter a escuridão dos outros, mas talvez fosse apenas um truque. O anjo caído que esconde sua verdadeira face.
Eu afundei ainda mais no colchão, encarando o teto.
Se eu fosse parte dessa história, qual seria o meu papel? Uma peça de xadrez no jogo deles? Uma boneca de porcelana pronta para quebrar?
Ou talvez… algo muito pior.
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