𝐴𝑙𝑚𝑎𝑠 𝑝𝑒𝑐𝑎𝑑𝑜𝑟𝑎𝑠 - 𝑝𝑎𝑟𝑡𝑒 𝐼

"A morte é para os tolos. Aqueles que deixam seu legado vive para sempre.''

NA BIBLIOTECA
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MATTHEW NUNCA ESPEROU que a mulher fosse tão desapegada da vida. Ele queria que Miller fosse outra das várias mulheres que seus guardas tanto comentavam. Que gritasse quando estivesse assustada, que fugisse na primeira oportunidade e a curiosidade fosse a inimiga da sua beleza.

Mesmo com as grandes evoluções dos tempos, algumas mulheres não arriscaram sua beleza e juventude numa carreira que elas acabassem violadas. Pois, era isso que acontecia — a diferença de sexos era humilhante. Mesmo num país desenvolvido como os Estados Unidos.

Não podiam falar quando desejassem. Nunca alcançariam os postos mais altos, porque não eram suficientes.

Jogadas de lado, sua única escolha era permanecer nas sombras como uma mera sujeira.

Ainda se recuperando do choque que havia sofrido com as palavras frias e estratégicas de Harley, o homem de forma eficaz e sucinta, se esgueirou atrás de Miller. Sentindo o cheiro dos livros e da madeira que mesmo aparentando limpa, tinha o peculiar aroma de poeira — irritando seu nariz —, porém ele se concentrou no perfume da jornalista.

Era uma mistura de doce com citrico. Uma combinação que ele lembrava bem.

Percebendo que Harley ainda tinha a visão perdida na prateleira anterior, onde ele estava, Matthew levou os dedos até os seus fios. Afundando até seu couro cabeludo, gostando da maciez dos cachos, um sorriso inocente como de uma criança surgiu nos lábios dele. Porém, ele logo sumiu quando a mulher virou para trás e se distanciou. Sua mão estava posta onde ele havia tocado, e ele ficou incomodado por a mulher ficar na defesa num momento como aquele.

Em todos que era necessário, ela ignorou. Mas como era ele, ela tinha que ser exagerada.

— Não me assuste. — Ela não parecia assustada. Seu tom estava calmo, assim como as ondas do mar à noite. Tão serena e hipnotizante.

A fúria silenciosa de Matthew se acalmou ao ouvir a segurança em sua voz. Sem que percebesse, encarava os olhos castanhos de Harley e encontrando neles o que não via há décadas; uma pessoa estava tão curiosa em saber o quão funda era a podridão de sua alma.

Ou se ele ainda possuía uma.

— E quando chegou aqui tão rápido? — Miller voltou a perguntar, cortando o contato prolongado sem qualquer intenção e que a deixou suas pupilas inquietas, e sua garganta seca.

Matthew Davis era um homem perigoso. Mais do que ela havia contabilizado.

— Com as pernas — respondeu, óbvio. Miller deu uma leve revirada de olhos com sua surpreendente resposta, e caminhou para o outro lado. O homem se deu conta do que ela estava fazendo e acompanhou-a em silêncio, com um nítido sorriso zombeteiro. — Tentando o máximo possível ficar longe de mim? Não, não. Não pode fazer isso, Harley. Esqueceu que até o fim do dia você é minha guardiã? Como eu sou um homem com problemas sérios na cabeça, eu posso machucar alguém.

Sua provocação era inútil. A mulher sabia qual era sua brincadeira e até mesmo a próxima que ele iria utilizar — depois de algumas vezes com má sorte, ela aprendeu como ler as ações de Davis com excelência.

O máximo que ele arrancou dela foi um riso fraco. Um tanto desagradável, já que, ele queria uma reação mais abominável.

— Você não irá machucar ninguém — Miller o corrigiu, parando abruptamente. O homem fez o mesmo, fitando entediado os livros de economia que ela vasculhava naquela prateleira. Antes de soltar um suspiro alto, Harley lançou uma mirada convencida. — A única pessoa que você está interessado em machucar sou eu.

Ela ponderou, fazendo um sinal com a cabeça apontando para as mãos dele.

— O quê? — Ele perguntou aborrecido. Matthew percebeu que Miller já havia se acostumado com sua presença, e que estava mais distante e fria.

— Abra as mãos.

— Assim? — O homem estendeu as mãos, as colocando juntas e ergueu uma das sobrancelhas, pensando no que ela faria. E se estivesse realmente certo, seu dia acabaria de piorar.

— Muito bem, problemas sérios na cabeça — Ela brincou, colocando três livros grossos de economia, geografia e política nas mãos de Davis. Acabando, ela o olhou novamente, no entanto, mais perto e continuou: — Não há nada de errado com a sua cabeça. Apenas sua mente que está sendo diariamente perdida por lembranças traumáticas.

Ela deu as costas, indo para o balcão. Enquanto, Matthew permanecia em pé, seus ouvidos captando cada palavra que a mulher havia pronunciado.

Harley Miller, definitivamente não poderia estar em seu juízo. Acabou de falar que ele não era louco. Todos no inferno e em terra — e até mesmo ele — acreditava como uma crença que ele era louco.

E há diferença entre cabeça e mente? Seus estudos retrógrados não poderiam afirmar com certeza.

Ele não permitiu-se meditar por mais tempo, então, levantou os pés e caminhou até Harley, e a mulher passou os livros, colocando-os na sacola, agradecendo pela compra após a jornalista ter passado o dinheiro para ela. Depois de uma confortável troca de sorrisos entre elas, Miller chamou Matthew, que seguiu-a como uma sombra ao atravessar da porta em diante.

Ele não sabia como seguir pelas ruas sem a presença da mulher, e assim, ele via no quanto Harley parecia confiante mesmo perto dele, com um sorriso enfeitando seu rosto, sem falar, o cantarolar baixinho dela — poderia estar feliz com as compras?, pensou Matthew —, porém, ele não tinha certeza, e Harley diminuiu o óbvio de suas atitudes.

— Você sabe o que aquelas coisas são? — Harley parou de repente, fazendo o peito de Matthew tombar nas suas costas, e a balbúrdia da rua soar mais irritante aos ouvidos dele. — Se sabe de alguma coisa, me diga antes que o pior aconteça.

Ele demorou alguns segundos para responder, analisando a pergunta de Harley, e no quanto ela parecia firme em evitar que uma catástrofe maior ocorresse na sua órbita, sem transparecer medo ou insegurança na sua fala.

Ela era incrível, como ele imaginava. Desenvolveu um instinto primitivo antes da sorte abandonar no momento crucial.

Isso agradou Matthew. Daria uma corda curta, uma dica para ela se ver livre dele. Não restava muito tempo para ambos, e antes deles ceifar a vida dele, queria ajudar a mantê-la viva de alguma forma — sem que eles percebessem que era ele a protegendo, dando dicas desnecessárias, assim acabando com todas as chances dela sair ilesa —, não seria o bastante para se tornar o príncipe de cavalo branco dela, porém, seria o bastante para dissipar alguns de seus pecados.

— Tudo bem. — Ele iniciou, com um sorriso sarcástico, levando os dedos até os fios rebeldes, e brincar com eles. — Apenas nos leve para um lugar mais tranquilo. Esses barulhos estão me irritando.

Ele estava se sentindo zonzo com as misturas de sons de vozes, passos, pássaros, e máquinas ao mesmo tempo. Normalmente, ele se concentrava apenas em um som: o da sua respiração, e era tão lento e mono que não era o bastante para lhe deixar louco. Na realidade, era o que lhe acalmava instintivamente, pois sabia que estava no mesmo lugar fechado e vivo.

Ou meio-vivo. Entretanto, aquilo não o incomodava. Era seu canto. A única coisa que seu corpo conseguia corresponder como conforto e casa.

Harley titubeou quando ouviu um tudo bem saindo com facilidade da boca da sua companhia. Havia evitado olhar para os olhos dele durante a pergunta, para ele não ver que por dentro seu espírito tremia de insegurança perto dele. Os dedos trilhavam um pequeno caminho do saco marrom, onde estava os livros, e subiram, mais nervosos. Não assimilando se aquilo era medo por o que veria a seguir ou felicidade de ter a fome da sua curiosidade saciada — mesmo que apenas um pouco.

Ela repetiu o movimento mais alguns segundos, apertando mais forte a sacola ao seu peito, e soltando um suspiro, ao olhar para as nuvens expressas cobrindo parte do céu. Um sentimento mais agradável permeou sua alma, antes dela se virar para Matthew Davis, raciocinando um bom lugar privado.

Ao pensar num bom lugar, ela virou o pescoço, olhando o homem por cima do ombro, jogando o próximo destino sem nem mesmo pensar corretamente na sua decisão.

— Vamos para minha casa, senhor Davis.

— Tem certeza disso? — Matthew tinha lido ela antes, estudado sua expressão bem o suficiente para saber que ela queria manter sua matéria bem longe da casa dela. A prova daquilo foi que o levou para a biblioteca. — Não acho uma boa ideia.

— Não discuta, por favor — Harley iniciou a caminhada, deixando de lado —, apenas me siga. Ou vai se perder. Duvido que você queira isso.

Matthew retirou os pés do chão, a contragosto, e murmurou algumas palavras para que Harley não fosse capaz de ouvir. Não eram palavras assustadoras, gentis ou algo parecido, apenas uma materialização de sentimentos de companheirismo que brotaram no peito de Matthew.

— Eu não quero te machucar...

Era inútil pensar que aquilo valia. Matthew desejou que não, por isso, deixou que as palavras fossem levadas pelo vento, e as fizessem desaparecer para sempre.

Isso foi possível, no entanto, as palavras não saíram de onde elas tiveram origem. Elas ainda pairavam na sua mente, além de estarem na ponta da sua língua, pronta para serem libertadas com mais força.

Mas ele não deixaria que isso fosse permitido. Apesar de ser um louco errante, ainda se permitia ter um pouco de orgulho.

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— Pode se sentar naquela cadeira, enquanto eu trago algo para você, quando fui eu que o fez andar tanto — Harley pediu, apontando para a mesa desarrumada, com fracos raios solares caindo sobre ela, mesmo com as persianas fechadas. Depois de ter indicado o local para ele, a modelo sumiu das vistas, indo para a cozinha.

Matthew varreu o olhar no local, examinando no quanto Harley gostava de manter as coisas em ordem, ao mesmo tempo que as mantinha desarrumadas para projetar pistas de seu caso com mais afinco. Além, que a evitaria de perder muito tempo arrumando e desarrumando a todo instante.

Dessa forma, somente movendo os pés para onde Harley havia indicado, o homem acusado de sofrer de uma doença mental, sentou-se na cadeira. De imediato, ele se inclinou curioso sobre as fotos de cidades corroídas durante os anos, as arrumando em ordem. Ele as estudou, absorveu os detalhes de cada uma, e quando acabou na sua, seus olhos saltaram. Algo em si desregulou, porém, dando alguns segundos, ele voltou a estabilidade desejada.

Parou o que estava fazendo, ao sons de passos soarem perto demais de si, e virou-se rapidamente, ao sentir algo fazer cócegas em sua clavícula. Ao perceber que Harley, segurando dois copos — o que pela cor, parecia limonada —, e o observando as fotos que ele colocou em ordem fascinada, seus músculos relaxaram.

Miller, ao retirar sua visão das imagens e preste a perguntar o porquê dele ter feito aquilo, admirou o rosto de Matthew, que era enfeitado por duas faixas de luz solar das persianas, e seu olhar escondido sob a proteção de sua franja.

Aquilo a impactou. Não sabia que tinha o direito de invadir o espaço social dele daquela maneira — apesar de fosse ao contrário, ele não teria dúvidas ao fazer aquilo —, mas naquela versão, ela era mais consciente do que ele. Deveria ficar mais atenta.

— Desculpa... — Ela pediu receosa, mas não se afastando, porque o homem parecia não estar incomodado com ela tão próxima. E, de fato, ele não estava. Sentiu-se bem por ela parecer mais a vontade perto dele, e não o olhar como um lunático. Coisa que ela nunca tinha feito desde o primeiro contato, mas ficava em alerta, por causa do último perigo ocorrido.

— Não peça. Não me incomodou.

A visão do homem voltou para as fotos, retirando as mãos da última foto, enquanto Harley aproveitou para se afastar. Sentou-se na sua cadeira, na frente de Matthew, depositando o copo dele à frente dele. Bebeu um pouco da sua, ainda com sua visita olhando-a sem piscar.

— Não coloquei nada na sua bebida. Pode beber. — Ela arriscou o convencer de que estava sendo apenas gentil, contudo, resultou falho. Ele ainda estava encarando o copo e ela de forma desconfiada.

— O que é isso?

— Limonada — Harley respondeu —, experimente. É muito boa.

Matthew não perguntou ou duvidou de mais nada, apenas envolveu os dedos no copo que já estava condensado, e tomou um gole. O sabor prazeroso e refrescante inundou sua boca, e ele deu mais alguns goles longos, acalmando Harley e sua imaginação de que ele pensaria nela como uma assassina.

O que seria um desastre.

Após molhar a garganta, Matthew voltou a atenção no que era importante. Separou os lábios dando indício do que falaria algo, deixando Harley em alerta.

— Você acertou em muitas coisas, senhorita jornalista — Davis parecia parabenizar ela, contudo, seu tom não sugeria o mesmo, deixando-a um pouco ofendida. — As cidades são escolhidas em sílabas, para formar palavras. Eles deixam as pistas quando estão desesperados para alguma respostas.

— Quem são eles?

— Quem você imagina? Quando não merecem ser chamados pelo o nome? — Matthew jogou as palavras, deixando o mistério pairar entre eles, com um sorriso crescendo de um lado.

— Está citando algo bíblico agora?

— Não pense muito sobre isso, são detalhes. Porém, está certa. Tudo isso que nos rondam tem haver com algo relacionado às profecias do apocalipse. — Ele colou as costas na cadeira, posicionando os braços sobre os braços dela, sentindo fadiga alcançar seu corpo. — São almas de pecadores. Almas penadas que ficam presas neste mundo, porque não há lugar nem na terra e nem no inferno, pois eles sentem que têm compromisso ainda em terra. Não era sua hora.

— Isso é loucura — Harley não pensou muito na palavra que se ajustaria aquela notícia, apenas a formou, tentando descobrir se aquilo era alguma brincadeira de Matthew Davis consigo. — Não pode ser isso.

Continua...

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