𝐢. 𝘯𝘢𝘳𝘤𝘪𝘴𝘰


CAPÍTULO UM
NARCISO









Narcisos
/naʁˈsi.zus/
s. m. pl. Flores bulbosas que desabrocham no fim do inverno, símbolo de esperança e novos começos.


HAVIA BELEZA NA MORTE. Havia beleza no silêncio que seguia o último suspiro, como se o universo segurasse a respiração por um instante. Havia beleza no abraço frio ao desconhecido, um encontro não com o fim, mas com a travessia da alma.

Era um privilégio partir como si mesmo. Em um mundo regido por infectados, era um privilégio retornar à terra inteiro, não como a casca de quem costumava ser. Era um privilégio ter quem lamentasse a sua despedida, não quem temesse a sua estadia.

Havia beleza em não precisar mais lutar. Havia beleza em sair do campo de batalha, em aposentar as armaduras e pendurar as armas. Não era a tragédia do adeus, era o alívio de um soldado voltando para casa.

Milla costumava temer a morte, costumava resintí-la e, agora, a aguardava com uma xícara de café. Quando ela chegasse, a receberia como uma velha conhecida, uma companheira de jornadas passadas. Porque ela aprendeu que haviam coisas bem piores a se temer, como vagar pela terra, vazia, oca, escrava de sua própria mente.

No espelho, embaçado pela fumaça das chamas, pendurado sobre a lareira, Milla encarou seu próprio reflexo. As rachaduras nas bordas do vidro emolduravam os traços desenhados em sua face pelo tempo.  Ela sorriu de canto, um gesto pequeno, carregado de nostalgia. Vinte e cinco anos haviam se passado desde o início do surto.

Lembrou-se do cheiro de cloro e dos livros didáticos, do frio que irradiava pela sua espinha quando suas costas encostavam no armário do laboratório e seu parceiro de biologia, Alex Lane, sorria na sua direção. Naquela época, era apenas uma adolescente, mais preocupada se Alex a convidaria para o baile, do que com a possível eminência de uma infecção que enterraria a humanidade. Era um luxo se importar com tão pouco.

Milla atirou mais lenha ao fogo. As chamas, famintas, devoraram a madeira seca. As brasas vermelhas queimavam lentamente, iluminando a cicatriz em seu pescoço ─ uma linha  pálida e serrilhada. Era a marca de uma vida inteira e de um piscar de olhos. Sobrevivera tanto que já não sabia se era um triunfo ou uma condenação.

Enquanto o calor crescia ao seu redor, do lado de fora, a nevasca se intensificava. O vento frio uivava contra as paredes de madeira, pintando a casa com flocos densos de neve. Milla se aproximou da janela, os dedos aquecidos tocando o vidro gélido, as mangas de seu suéter enxaguando a umidade. Seus batimentos mudaram de ritmo, sua respiração trocou a frequência, ao ver, à metros de distância, os vultos que caminhavam na direção da fazenda.

Estavam longe demais para serem identificados. Não eram infectados, não se moviam como os doentes ─ os movimentos eram lentos, contidos, cuidadosos, não possuíam a fúria espasmódica nem a rigidez cadavérica dos contaminados. Saqueadores? Sobreviventes perdidos? Ela se perguntou ao pegar a espingarda guardada na gaveta. Os vivos não se arriscavam indo naquela região. Com o cano da arma posicionado na pequena fresta da janela, ela seguiu, atentamente, os movimentos dos invasores.

À medida que se aproximavam, os contornos se tornavam mais nítidos. A cada passo, as características dos desconhecidos eram desvendadas. Dois compartilhavam a mesma montaria ─ uma mulher conduzia o cavalo, enquanto outra, exausta, se apoiava em suas costas. Atrás, um homem alto puxava um segundo cavalo pela rédea, com sua mão levantada, tentando proteger seu rosto da neve espessa. Mas seu animal não estava sozinho, ele carregava em seu dorso um corpo ─ caído, amarrado, refém de seus passos.

Milla estreitou seus olhos, forçando sua visão através da nevasca. O dedo no gatilho ─ antes firme ─ hesitou e as mãos que seguravam a arma cederam. Jesse. Ao reconhecer o homem entre a tempestade de neve, abandonou a espingarda no chão e correu para o lado de fora.

O ar gelado cortava sua pele como uma lâmina afiada, queimando seus pulmões, tornando cada respiração em uma agonia. Milla avançou contra o vento, suas botas afundando na camada espessa de neve. ─ Jesse! ─ Ela gritou, sua voz tentando se sobressair sobre a tempestade. Ela o alcançou, passando o braço do homem desacordado sobre seus ombros, ajudando Jesse a sustentá-lo. A outra mulher de cabelos escuros caminhava ao seu lado, apoiando a companheira ferida, que cambaleava com dificuldade. ─ Rápido, entrem!

Ao repousar o corpo inconsciente em seu sofá na frente da lareira, Milla recuou dois passos, analisando os recém-chegados: Jesse, sentado no chão, recuperando seu fôlego, as mãos trêmulas marcadas por cortes recentes. Na parede, a mulher de cabelos pretos compridos, com uma touca vermelha de listras azul escuro,  encostava seu corpo. Ela friccionava os dedos em seus ombros, tentando amenizar a dor causada pelo vento congelante. Seu semblante aterrorizado e suas pupilas, dilatadas, fitavam a jovem sentada na poltrona à sua frente.

Seus fios castanhos, ainda úmidos pela neve e grudados à pele pálida, escorriam em mechas desalinhadas pelo rabo de cavalo desfeito. O sangue gotejava do corte em sua têmpora, descendo pelo seu rosto. Ela não se mexia. Seus olhos vazios e semicerrados, lutavam para se manterem abertos, fixos no homem desacordado. ─ Ajude ele. ─ O sussurro, quase inaudível, escapou de seus lábios azulados.

Foi quando Milla, olhou, verdadeiramente, para o homem no sofá, analisando cada centímetro de sua figura. As calças jeans, outrora azul-indigo, agora tingidas de marrom-acinzentado pelo sangue que escorrera do joelho destroçado ─ um buraco aberto por um projétil, onde os fragmentos ósseos penetravam a carne inflamada. A camisa de flanela ensanguentada, havia sido rasgada por um corte profundo no abdome. O tórax subia e descia de modo irregular, provavelmente em razão de uma fratura na caixa torácica.

Mas foi a visão do rosto dele que quase arrancou o coração de seu peito. A mandíbula, deslocada para a esquerda, esboçava uma linha quebrada sob a pele roxa de hematomas. O nariz fraturado com as narinas rachadas e revestidas de sangue seco. Os olhos estavam quase irreconhecíveis pelo inchaço e cortes superficiais, espalhados por suas bochechas, desfiguravam sua face.

Ainda assim, os traços, mesmo dilacerados por hematomas e inchaços, ela conhecia como a palma de sua mão. A cicatriz antiga, serrilhada, na testa, era como uma bússola que guiara seus dedos nas noites em que os pesadelos a assombravam. O arco familiar da sobrancelha carregava a marca de suas digitais e os lábios, agora azulados pelo frio, eram um alfabeto estrangeiro que ela havia decifrado muitos anos antes.

Joel Miller.

Foi no inverno que se conheceram e foi nele que se reencontraram.

"O cheiro ácido do álcool invadia seu olfato, irritando suas narinas. Milla esfregava uma escova de cerdas gastas nos instrumentos cirúrgicos, mergulhando-os em uma bacia onde o líquido transparente fumegava. O sangue ressecado descia pelos metais, se dissolvendo na solução. A luz da lâmpada florescente no teto piscava em intervalos irregulares, iluminando o consultório clandestino no subsolo de um prédio abandonado.

As paredes de concreto, corroídas pela infiltração, respiravam o mofo que crescia em suas fissuras. As caixas de papelão, carimbadas com o selo desbotado de "propriedade da FEDRA", amontoavam-se nas estantes enferrujadas. O tic-toc da goteira cortava o silêncio da madrugada, a lembrando do tempo que ela já não tinha. Seus olhos recaíram sobre o relógio: 1:26, os ponteiros marcavam. Milla suspirou, encostando na bancada ao retirar suas luvas. Havia prometido à Elena que chegaria cedo.

O cômodo estremeceu com a porta sendo aberta bruscamente, se chocando contra a parede. Milla correu até a entrada, se deparando com Tess, que entrava aos tropeços, ofegante, carregando um homem ferido ─ o rosto manchado de suor, seu semblante se contraia em dor, uma das mãos pressionava o abdome, tentando conter o sangue que escorria entre seus dedos. ─ Para de ser teimoso, caralho! ─ Tess resmungou, repousando o homem na maca.

A contrabandista não era uma desconhecida para Milla. Fora em becos apertados, sob o cheiro de pólvora e fogueiras de lixo, que a médica havia negociado antibióticos difíceis de encontrar com Tess. Mas o homem que a acompanhava era um fantasma que ganhava carne à sua frente. Ela conhecia o nome. Joel Miller. Havia escutado os sussurros entre os soldados da FEDRA, as histórias contadas pelos Vagalumes, os mitos espalhados pelos bandidos. ─ O que aconteceu? ─ Milla perguntou, reunindo os instrumentos que precisaria em uma bandeja de metal.

─ Tess, vamos embora. ─ Joel rosnou. Sua voz era rouca, grave, o tom arrastado pelas cordas vocais cansadas e a fumaça dos cigarros. Ele tentou se levantar, mas seus braços traíram seus comandos. Um gemido abafado escapou de sua garganta quando suas costas se chocaram contra o colchão duro. ─ Posso cuidar disso em casa.

Tess cruzou os braços, os dedos batendo no cotovelo em um ritmo impaciente. ─ Uma emboscada na zona leste, do lado de fora. ─ Tess respondeu a médica, ignorando os protestos de Joel. ─ Um filho da puta atirou nele.

Milla inclinou-se sobre ele, levantando sua camisa ensanguentada e analisando o ferimento. A bala havia entrado logo abaixo das costelas, deixando um orifício irregular, rodeado por hematomas roxos e pela carne viva. Os dedos de Milla pressionaram as bordas da lesão ─ a pele ao redor do trauma pulsava, estava quente e inchada. Joel arqueou as costas, suas unhas perfurando o lençol manchado de sangue.

─ Não tem ferimento de saída. ─ Milla constatou. ─ Vou ter que remover a bala.

A contrabandista assentiu. ─ Vou ficar de vigia, caso alguém tenha nos visto. ─ Ela avisou, antes de atravessar a porta e fechá-la atrás de si.

Ignorando o olhar desconfiado que pairavam sobre ela e os resmungos impacientes, Milla despejou o soro fisiológico sobre o ferimento, limpando o máximo de sangue possível para melhorar sua visão da bala. O Miller cerrou seus dentes ao sentir a ardência causada pelo contato do líquido gelado com a sua carne inflamada, encarando a pichação no teto. ─ Um Vagalume. ─ Ele murmurou com uma risada baixa, que se desfez em um suspiro de dor. ─ Se você me disser 'pra procurar a luz..

─ Na verdade... ─ Milla o interrompeu. ─ ...Se ver uma luz, fuja dela. ─ A médica falou, lançando um olhar breve na lesão antes de continuar. ─ Não quero que você morra aqui, o cheiro de cadáver demora muito pra sair.

Os olhos estreitados seguiam as mãos da médica enquanto ela levantava o bisturi da bandeja, a luz refletindo na lâmina afiada. ─ Você é muito nova. ─ Ele comentou ao vê-la se aproximar com a pinça. ─ Tem certeza que sabe o que 'tá fazendo?

Milla puxou uma cadeira ao lado da maca, o atrito seco contra o chão reverberou pelo cômodo. ─ Eu só fiz em bonecos ─ Ela contou, dando de ombros. ─ Mas não deve ser muito diferente. ─ A médica disse, o sarcasmo escorrendo em cada sílaba.

Os cantos dos lábios de Joel se curvaram levemente, como se debochasse da própria situação. ─ Engraçado. ─ O Miller resmungou.

Milla estendeu um pano dobrado na direção do homem. ─ Pra você morder. ─ Ela explicou. ─ E 'pra parar de reclamar um pouco.

Veias salientes pulsavam em seu pescoço, descendo pelos seus braços, ao sentir a pinça adentrar sua lesão exposta. Foi quando escutou o som metálico da bala indo de encontro com a bandeja, que sentiu o ar retornar aos seus pulmões. Ele a viu cerrar suas sobrancelhas ao costurar o ferimento com cuidado e, em seguida, fechar sua pele com um curativo.

─ O símbolo dos Vagalumes, caixas da FEDRA... Você tem negócios com a Tess... ─ Ele falou, enquanto Milla passava a faixa em volta do torso de Miller. ─ ...Qual é a sua?

Ela manteve o olhar abaixado, concentrada em prender cada volta da faixa. ─ Você já deve saber disso, mas a FEDRA só oferece cuidados médicos para os oficiais e quem eles consideram úteis. O resto? É descartável. ─ Ela contou com um tom de amargura. ─ Então, de dia preciso trabalhar pra eles, mas de noite eu atendo quem não pode pagar, soldados de baixo escalão e Vagalumes. Eles retribuem como podem.

Com delicadeza, ela deu o último nó firme no tecido de algodão. ─ Não sou uma Vagalume, mas a Marlene ajuda a manter esse lugar escondido e abastecido.

Joel soltou um riso rouco. ─ Você é daquelas que quer salvar o mundo.

─ Não, o mundo não. ─ Ela respondeu se levantando. Seus olhos cor de avelã se encontraram com os castanhos dele. ─ Só os idiotas que se arriscam do lado de fora e acabam baleados."

MILLA HAVIA PERDIDO AS CONTAS DE QUANTAS VEZES ESFREGARA O SABONETE EM SUA PELE, na tentativa desesperada de apagar os rastros de sangue seco que insistiam em permanecer em seus braços. Sob a luz fria do banheiro, a água vermelha escorria pelo ralo.

Ela encostou as mãos trêmulas na bancada, os dedos abertos, buscando alguma firmeza. Tentava puxar o ar, mas o peito resistia, apertado como se algo o comprimisse por dentro. Fechou os olhos, se deparando com flashs do passado que se misturavam com os de horas atrás. O sorriso convencido de Joel. O abdome dele, aberto, enquanto ela se esforçava para conter a hemorragia interna. O som de sua risada. O rosto dele coberto pela máscara de oxigênio.

Milla balançou sua cabeça, inspirando fundo. Pelo reflexo do espelho, enxergou a contusão na parte interna de seu cotovelo onde, há alguns minutos, uma agulha sugava seu sangue O negativo para transferí-lo para Joel.

No silêncio da sala, Koda, o husky siberiano de pelagem branco-acinzentada, avançava,  insistentemente, com o focinho úmido nas botas dos três jovens, farejando qualquer sinal de alerta. ─ 'Tá tudo bem, garoto. ─ Milla o acalmou, passando os dedos nos pelos espessos do cão. O cachorro a respondeu se sentando, com as orelhas eretas e os olhos azuis vigilantes, atentos até ao menor movimento que indicasse perigo.

Milla se aproximou da garota encolhida na poltrona no canto da sala ─ ela estava imóvel, os joelhos pressionados contra o peito, os dedos, ainda manchados pelo sangue que não era seu, estavam entrelaçados em torno das canelas.  Segurando uma gaze e um frasco de soro fisiológico, a médica se ajoelhou diante dela.  ─ Isso vai arder um pouco. ─ Ela avisou, umedecendo o tecido estéril com  a solução salina.

Não houve um estremecer, nem ao menos um piscar de olhos. A jovem não reagiu ao sentir o algodão ser pressionado contra o corte aberto em sua testa. Seus olhos não hesitaram quando o sangue ressecado escorreu para a gaze, a pintando de vermelho. As chamas da lareira refletiam em suas órbitas fixas na porta entreaberta do quarto onde Joel repousava.

─ Sem ofensa. ─ Milla escutou o tom baixo e cansado da garota. ─ Mas você sabe o que 'tá fazendo? ─ Ela perguntou, suas mãos ensanguentadas se contraíram sobre os joelhos. ─ Com ele?

A médica suspirou antes de responder. ─ Antes do surto, eu abriria a cabeça dele para drenar o hematoma e aliviar a pressão intracraniana. ─ Milla explicou, molhando outra gaze. ─ Mas não temos mais como fazer cirurgias desse porte. ─ Ela contou, passando o algodão pelos dedos da menina, limpando com cuidados seus cortes. ─ Eu só pude fazer alguns procedimentos menores para melhorar a condição dele.

─ O que isso significa? ─ A jovem perguntou, ainda fitando a porta de madeira.

A médica parou por um instante, observando o tecido agora marrom-avermelhado. Milla respirou fundo. ─ Significa que eu fiz tudo que eu podia. ─ Ela confessou. ─ Agora... é com ele.

Um chiado repentino rasgou o ar. O rádio na estante crepitava ao tentar transmitir uma mensagem, que era fragmentada pelas ondas de interferência. Entre os ruídos, uma voz emergiu, distorcida, desesperada. ─ Jackson... caiu... infectados... Jackson... centenas de...

UMA SEMANA DEPOIS

AS RAÍZES SECAS SE DESFAZIAM SOB o pilão de madeira, transformando-se em pó a cada golpe preciso. As folhas verdes ─ ainda úmidas, que haviam sido colhidas com cuidado ─ se desmanchavam lentamente, a cada movimento calculado, dando espaço para uma pasta espessa de tom esverdeado.

A neve, que se acumulara sobre o teto da estrutura, derretia sob os raios solares, escorrendo, gota a gota, pela lona. O som ecoava pela estufa, acompanhando o ritmo metódico do pilão. Milla adicionou uma pequena quantidade de água, misturando o que restou da planta com o líquido.

O Sol, que insistia em adentrar pelas fendas do plástico que cobria o espaço, iluminava o livro envelhecido à sua direita, que repousava no balcão, camuflado por vasos de papelão. Os feixes de luz destacavam o título gravado no tecido de couro. Plantas Medicinais: O Guia Completo das Plantas Curativas.

"Milla estava exausta. O peso dos três últimos plantões caíram em seus ombros. Ela encostou suas costas na parede fria, respirando fundo enquanto massageava seu pescoço dolorido. Desde que os Vagalumes intensificaram seus ataques contra a FEDRA, o rastro de destruição em Boston crescia e o número de seus pacientes havia dobrado, tanto de dia quanto de noite.

Foi quando o viu.

Seus olhos pousaram sobre um objeto colocado, discretamente, na prateleira ao lado da porta. Ela piscou, se perguntando se o cansaço estava pregando uma peça em sua mente. Era um livro. A capa de couro desgastada pelo tempo, as bordas envelhecidas pelas décadas. Seus dedos acariciaram o título dourado. Era um manual sobre plantas medicinais. Ao abri-lo, um pequeno pacote transparente escorregou até sua mão. Eram sementes. Equinácea, dizia o rótulo escrito à mão. E, junto dele, um bilhete:

O agradecimento do idiota baleado."

O bilhete amarelado, não apenas pelas passagens das estações, mas pela quantidade de vezes que seus dedos os desdobraram, ainda estava guardado entre as páginas, dobrado cuidadosamente, como se fosse seu bem mais precioso. Era um segredo íntimo que ela visitava nos seus dias mais solitários. As palavras permaneciam no papel ─ desbotadas, não tão nítidas como antes, não tão fáceis de ler. Mas Milla conhecia cada curva das letras, cada mancha de tinta, cada hesitação no traço.

Seu destino cruzou com o do Joel na noite em que ele foi baleado, mas a história deles não terminou com o livro.

Foi apenas o começo.

No inverno, seus caminhos se encontraram. Na primavera, o contrabandista aparecia com mais frequência, carregando uma marca diferente para cada ocasião: um corte no braço de quando atravessara a cerca de arame farpado, um hematoma na mandíbula causado por uma briga, um ombro deslocado ao pular de um telhado para outro depois de se encontrar com estaladores. Ela sabia que ele poderia cuidar daqueles ferimentos em casa. Sabia e, estranhamente, não se importava, não depois de sentir o calor áspero de sua pele. Aquela foi sua ruína.

No verão, ele começou a ficar. É perigoso, ele dizia. Sentava-se na borda da maca, a observando realizar procedimentos.

" ─ Acha que não consigo cuidar de mim mesma? ─ Milla perguntou em uma noite, retirando seu jaleco e descansando suas costas na cadeira do consultório.

─ Sei que consegue. ─ Joel respondeu. O tom sério, os braços cruzados, as mangas da camisa xadrez puxadas até os cotovelos, os vasos salientes sob a pele, os músculos do antebraço contraídos. ─ Mas não precisa."

E no outono, ela caiu. Como a primeira folha seca que se desprende da árvore, levada pelo vento que anuncia o fim do verão. Mas não foi sem aviso. Joel havia a alertado para não chegar perto demais. Ainda assim, ele era um abismo e ela, por vontade própria, deu um passo em sua direção.

Há uma semana, Jackson sangrava em razão da horda de centenas de infectados que atravessou seus murros. Jesse e Dina haviam partido para ajudar a reconstruir a comunidade. Ellie ficou. Ela era um navio à deriva, perdida em seu próprio sofrimento, ancorada ao lado do homem que ainda não havia retornado.

Muita coisa mudou em sete dias.

Mas Joel não mudara.

Por breves segundos, lampejos de sua consciência emergiam. Um murmúrio fraco e rouco escapava de seus lábios trêmulos. "Ellie", ele sussurrava, antes de ser engolido mais uma vez pela escuridão. E, ao atravessar a porta do quarto, Milla encontrou a jovem: no mesmo lugar, sentada na mesma cadeira, os mesmos olhos fixos no homem que repousava na cama.

Há sete dias, o passado bateu em sua porta ─ ferido, inconsciente e à beira da morte.

Uma rotina foi criada. Milla dividia seus dias entre cuidar dos ferimentos de Joel e o silêncio de Ellie. A jovem, com os dedos cravados no braço da poltrona, se recusava a deixar o lado do homem por mais de alguns minutos.

Em uma manhã enevoada, Ellie perguntou se o Miller conseguia ouvi-la. A médica hesitou, as mãos pausando sobre a atadura que encontrava. Ao encontrar os olhos esperançosos da garota, a resposta científica morreu em sua garganta. Mas, a verdadeira resposta estava nas incontáveis vezes que Milla adentrou o cômodo, a encontrando segurando a mão de Joel, murmurando histórias, contando piadas, sussurrando sobre promessas não cumpridas. Era a voz de Ellie que o prendia àquele mundo.

Agora, Milla continuava sua rotina. Repousou o recipiente com a pasta no acolchoado e vestiu suas luvas descartáveis, o látex estalando levemente contra seus pulsos. Desfez as ataduras com cuidado, limpando a secreção purulenta com a gaze. Em seguida, a médica mergulhou seus dedos na pasta, extraindo uma porção espessa, a esfregando com movimentos circulares nos nós dos pontos. Todo o processo sendo observado atentamente pelo olhar desconfiado de Ellie. ─ O que é isso? ─ A jovem perguntou, inclinando-se para frente na poltrona.

─ Equinácea. ─ Milla respondeu, esfregando o unguento esverdeado pelo abdômen de Joel. ─ É um anti-inflamatório natural. ─ A médica explicou. ─ Vai ajudar a reduzir a inflamação.  ─ Ela disse, se levantando e retirando as luvas impregnadas com o cheiro do aroma das ervas, as jogando no balde de lixo próximo à cama.

Milla alongou suas costas até escutar um leve estalo e se virou para Ellie. ─ Vem. ─ A chamou com suavidade. ─ Vamos comer alguma coisa. Você precisa se alimentar.

Os olhos da jovem se prenderam em Joel. Ellie traçava círculos nervosos no tecido gasto da poltrona com seus dedos, debatendo internamente com seus pensamentos se deveria ir ou não. Milla segurou a maçaneta, deixando a porta entreaberta. ─ Vou deixar a porta aberta. Se algo acontecer com Joel, nós vamos ouvir. ─ Ela assegurou.

Sobre a estante no centro da sala, entre livros envelhecidos e frascos de vidros com flores frescas, repousava uma placa de carvalho envelhecido. A superfície, lustrada com verniz, revelava anos de extremo cuidado com o objeto. A inscrição foi feita a mão e as letras esculpidas em relevo. "Elena, 2003-2015", Ellie leu ao se aproximar.

─ Elena era minha irmã. ─ A voz de Milla veio da cozinha, acompanhada pelo som da faca serrando o pão caseiro, preparado na manhã anterior. ─ Ela nasceu duas semanas depois do surto. ─ A médica contou com um sorriso saudosista em seus lábios.

Ellie engoliu em seco, se afastando do móvel. ─ Eu sinto muito.

Milla não a respondeu de imediato. Em vez disso, esticou seu braço para alcançar os pratos guardados na prateleira alta. A blusa de lã subiu o suficiente para revelar os contornos de sua tatuagem na costela. Um Vagalume.

Foi então que Milla ouviu. O clique. Não como o dos estaladores. Era um gatilho sendo engatilhado.

O som foi seguido pelos latidos furiosos de Koda. Milla se voltou, devagar, para a origem do barulho. O cachorro, com os pelos eriçados e presas reluzindo de saliva, mostrava seus dentes afiados para a garota que, do outro lado da mesa, apontava sua pistola na direção da médica.

─ Koda, senta. ─ Milla falou, a voz baixa mas autoritária, e o cão, imediatamente, abaixou seu quadril, mas continuou rosnando para a ameaça. ─ Você 'tá realmente apontando sua arma 'pra mim? Na minha mesa? Na minha própria casa? ─ A médica levantou uma sobrancelha e balançou a cabeça em negação. ─ Que grosseiro, Ellie.

─ Eu nunca te falei o nome dele. ─ Ellie respondeu, com a mão ainda firme no coldre da arma. ─ E você é uma Vagalume.

Milla soltou um suspiro prolongado. ─ Dá 'pra gente sentar e conversar como pessoas civilizadas? ─ Ela indicou a cadeira vazia com um leve aceno, mas Ellie não cedeu. ─ Sem você apontar uma arma 'pra mim. ─ Uma pausa silenciosa seguiu a fala de Milla, sendo cortada pelo rangido da janela ao sentir o toque do vento.

A médica continuou. ─ Se eu quisesse machucar você ou o Joel, eu já teria machucado, você não acha?

Relutante, Ellie se sentou. A madeira estalou com o impacto do móvel sendo puxada bruscamente. Ela colocou a pistola na mesa, sua mão não abandonando o gatilho. Milla entrelaçou seus dedos, afundando na cadeira. ─ Meu pai era militar. Quando o surto começou, ele conseguiu levar eu e minha irmã para a Zona de Quarentena de Boston. ─ Milla contou.

O sol da manhã, filtrado pelas cortinas, desenhava listras douradas sobre o rosto de Milla. A médica desviou o olhar para a janela, seus olhos escuros fixando-se em algum ponto distante da casa. ─ Eu vivi lá muitos anos, foi onde eu conheci o Joel. ─ Um sorriso breve, frágil e quase imperceptível surgiu em seus lábios. ─ Mas quando a Elena... ─ Sua voz quebrou, engasgada pelo nó que se formou em sua garganta. ─ ...Eu me juntei aos Vagalumes em Colorado, mas eu fui embora. Seis anos atrás, com o Tommy.

Milla fitou Ellie. ─ Pela sua reação antes, acredito que você acha que os Vagalumes fizeram aquilo com o Joel. ─ Ela afirmou. ─ Não existem mais Vagalumes. ─ A médica confessou, erguendo a borda de sua blusa. ─ Isso aqui não significa mais nada. Nunca significou. ─ Milla falou, apontando para a tatuagem em sua costela. ─ Nunca teve luz nenhuma. ─ Murmurou, deixando o tecido cair, como quem cobre uma cicatriz. ─ E a esperança... morreu com eles.

DUAS SEMANAS DEPOIS

MILLA AMAVA MUITAS COISAS. ELA AMAVA o laranja incandescente que tomava conta do céu ao entardecer, quando o Sol se despedia, dando espaço para a noite. Amava o silêncio da floresta, o sussurro das folhas, o murmúrio entre os pinheiros, o distante tamborilar da água caindo em terra molhada.

Milla amava o cheiro de café recém-torrado, aquela aroma quente que invadia a casa, a transportando de volta para às manhãs apressadas, em que a xícara fumegante era sua companhia, enquanto os risos de seus pais ecoavam pelas paredes.

Após o surto, o café se tornou um relíquia do mundo antigo. Suas sementes eram raras e cultivá-las se provou ser mais difícil do que encontrá-las. Foram anos de tentativas e erros, até que, enfim, as primeiras flores brancas deram lugar aos frutos vermelhos.

Milla inclinou a chaleira de ferro e o líquido âmbar escorreu pelo coador de pano, enchendo aos poucos a xícara de cerâmica. O vapor subia em espirais, tocando o ar gélido do inverno. Era um ritual. Todas as manhãs, ela colhia os frutos secos, os torrava no fogo até que exalassem seu perfume terroso e, em seguida, os reduzia a pó. E então, com ambas as mãos segurando a xícara com cuidado, sentindo o calor penetrar em sua pele fria, ela a colocava na mesa de cabeceira, ao lado da cama onde Joel repousava.

Ellie havia partido há alguns dias, com a missão de trazer mais suprimentos médicos para Joel de Jackson. Desde então, o posto de vigia na poltrona era de Milla que, agora, afundava suas costas no tecido de veludo ─ que, pelas incontáveis horas de espera, já tinha os moldes de suas curvas. Seus olhos percorreram cada detalhe do rosto de Joel. Seus traços ressurgiam, gradualmente, com a diminuição do inchaço dos ferimentos. Os hematomas, antes roxos, agora esverdeados, desvaneciam com o tempo. Ela observou o movimento lento do seu tórax, a respiração era estável, com o oxigênio fluindo pelo cateter nasal. 

Ele ainda não havia acordado. Mas Milla pensou que, talvez, quando ele acordasse, gostaria de ter uma xícara de café ao seu lado.

Havia beleza na morte.

Mas Milla não conseguia achar essa mesma beleza na sobrevivência.

Milla se inclinou para frente, esticando seu braço para ajustar o cobertor de lã sobre o corpo de Joel. Foi quando a mão dele se moveu. Um tremor quase imperceptível, um reflexo involuntário, mas foi o suficiente para ela sentir que seu coração saltar dentro de seu peito. Antes que ela pudesse recuar, os dedos dele se entrelaçaram com os dela ─ firmes, quentes, vivos.

E, então, Joel abriu os olhos.

Os olhos avelã de Milla se encontraram, 13 anos depois, com os castanhos de Joel.

O mundo não parou para Milla naquele momento. Voltou a girar.

E, do lado de fora, através da janela embaçada, os últimos narcisos ─ teimosos e resistentes ─ balançavam suavemente ao vento. Suas pétalas, brancas e amarelas, floresciam, mesmo após a geada.

Novos começos.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top