32. I'll be watching you

❝ I'll be watching you

(Every breath you take)

(Every move you make)

(Every bond you break)

(Every step you take) ❞

I'll be watching you.

Alguns minutos antes de entrar na sala, meu peito já estava pesado. Cada passo em direção ao quarto dela parecia uma luta interna contra os pensamentos que me atormentavam. Eu cheguei com Kenny, e Zara já estava lá também. Nenhum de nós disse muito enquanto esperávamos por notícias. O silêncio era um peso que todos carregávamos, cada um à sua maneira. Então, a enfermeira apareceu, explicando que só podiam entrar dois por vez, porque Calista ainda estava confusa e muita gente ao mesmo tempo poderia deixá-la desconfortável.

Kenny olhou para mim, soltando um suspiro pesado antes de dizer.

— Vocês vão primeiro. Eu espero aqui e entro depois.

Eu não esperava isso dele. Por mais que Kenny e eu tivéssemos nossos atritos ultimamente, naquele momento, parecia que ele entendia o quanto eu precisava estar lá. Engoli meu orgulho e assenti com a cabeça.

— Obrigado. — Minha voz saiu mais baixa do que eu planejava, mas, pela primeira vez, foi sincera.

Zara foi a primeira a entrar, sua energia impossível de conter. Assim que a porta se abriu, ouvi a voz dela ecoar pelo corredor.

— CALISTA!

Ela praticamente gritou o nome da melhor amiga, e seu tom era uma mistura de alívio e alegria. Quando dei um passo para frente, vi Zara correr para abraçá-la, como se não houvesse amanhã. Calista olhava para ela, e por um momento, vi um sorriso suave aparecer em seu rosto. Aquela visão deveria ter me deixado aliviado. De certa forma, deixava. Mas também havia um aperto no meu peito.

Eu torci tanto para que ela estivesse bem. Orei, implorei para que tudo desse certo. Ver aquele sorriso, por menor que fosse, aqueceu algo em mim que eu nem sabia estar tão frio. Mas havia também uma ansiedade amarga. Porque, depois de tudo, eu precisava saber como ela reagiria ao me ver.

Quando finalmente me aproximei, com o coração acelerado, respirei fundo e me preparei para falar algo. Não sabia exatamente o que, mas queria que ela soubesse que eu estava lá. Que eu me importava. Que eu precisava vê-la.

Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, algo aconteceu que eu nunca poderia prever.

Ela recuou.

Eu franzi o cenho, parando no meio do movimento. Por um segundo, pensei que era o reflexo dela por ainda estar machucada. Mas então ela me olhou com uma expressão que eu não reconheci. Não havia familiaridade nos olhos dela. Nenhum traço do que vivemos, nenhuma memória compartilhada, nada.

E aí as palavras saíram da boca dela como um golpe direto no peito.

Quem diabos é você?

Tudo parou.

O mundo à minha volta desabou em um instante.

Não consegui responder. Não consegui me mexer.

Zara também ficou sem reação, congelada ao lado dela. Eu vi a confusão no rosto de Calista, mas tudo o que senti foi um vazio esmagador. Uma dor que parecia queimar por dentro.

Zara tentou quebrar o silêncio, hesitante.

— Você... Você não se lembra dele, Cali?

Eu apertei os punhos, lutando contra a raiva que começava a crescer dentro de mim. Não era raiva dela, nunca seria dela. Era de mim. Era da situação. Era de tudo o que nos trouxe até ali.

Calista balançou a cabeça, o olhar perdido e ligeiramente incomodado.

— Não. — A resposta foi firme, mas carregada de incerteza.

As palavras dela foram a confirmação de um medo que eu nem sabia que tinha. O medo de que, no final, eu fosse apenas mais uma sombra em sua vida. Algo que ela poderia esquecer, algo insignificante.

Mas não era insignificante para mim.

Eu não sabia o que fazer, o que dizer. A dor era tão intensa que parecia física, como se eu tivesse levado um golpe direto no coração. Ela não se lembrava de mim. Não se lembrava de nós. E tudo o que vivemos... Todo o caos, a dor, os momentos em que eu jurei que ela era a única coisa boa em mim... Tudo isso parecia ter evaporado.

E o pior de tudo era que, de certa forma, eu sabia que era culpa minha. Se eu não tivesse sido tão cego pela raiva. Se eu tivesse sido mais forte, mais inteligente, mais humano... Talvez ela não estivesse naquela cama, olhando para mim como se eu fosse um estranho.

Eu queria gritar, queria socar alguma coisa. Queria fazer qualquer coisa para aliviar o peso que estava me esmagando. Mas, no final, só consegui ficar ali, parado, encarando-a com o coração partido e o punho cerrado.

⋆౨˚ ˖

Eu saí do quarto de Calista com o peito em chamas. Era como se cada célula do meu corpo estivesse em guerra. Não sabia o que fazer com toda aquela dor e confusão. O corredor parecia apertado, sufocante, e meu coração batia tão forte que eu podia ouvir o eco nos ouvidos.

Assim que avistei o médico, não consegui segurar. Minha voz saiu antes mesmo de pensar.

— Será que o senhor quer me dizer alguma coisa, hm? Que ela não vai lembrar de mim nunca mais?

Eu praticamente gritei, as palavras carregadas de desespero e raiva. O médico, um homem calmo de meia-idade, ergueu as mãos em um gesto pacificador.

— Por favor, senhor, acalme-se. Isso é temporário. — Sua voz era firme, mas tranquila, tentando dissipar a tempestade que eu claramente carregava. — Ela sofreu um trauma significativo, tanto físico quanto mental. É natural que algumas memórias, especialmente as mais recentes ou associadas a momentos intensos e traumáticos, demorem um pouco mais para voltar.

— Demorem quanto? — Retruquei, quase cuspindo as palavras. — Quanto tempo até ela parar de me olhar como se eu fosse um maldito estranho?

Ele suspirou, mantendo o tom calmo.

— Em cerca de uma semana, talvez menos, as memórias devem começar a retornar. Mas é importante que ela não se estresse. Qualquer tensão emocional pode dificultar o processo. Ela precisa de repouso e de um ambiente tranquilo para facilitar a recuperação.

As palavras dele me atingiram como um balde de água fria, mas a raiva ainda estava lá, fervendo sob a superfície.

— Repouso? Você quer que eu simplesmente fique de braços cruzados enquanto ela acha que eu sou ninguém? — Eu cerrei os punhos, tentando controlar o impulso de explodir ainda mais. — Vocês não têm ideia do que isso significa pra mim.

O médico manteve a compostura, mesmo diante do meu tom áspero.

— Senhor, eu entendo que isso é difícil, mas, no momento, o foco precisa ser o bem-estar dela. A memória vai voltar gradualmente, especialmente quando ela se sentir mais segura e confortável.

Zara, que estava ao meu lado, interveio, tentando suavizar o ambiente.

— Doutor, ela vai poder continuar recebendo visitas? — A voz dela era cuidadosa, mas carregada de preocupação.

Ele assentiu.

— Sim, ela pode. Mas sugiro que seja uma pessoa por vez. Muitas pessoas ao mesmo tempo podem sobrecarregá-la, mesmo sem perceberem.

Zara respirou fundo, parecendo aliviada por pelo menos isso.

— E quanto ao tempo? — Ela continuou. — Ela vai ter alta quando?

— No final de semana. — O médico respondeu com firmeza. — Até lá, queremos monitorá-la e garantir que o trauma esteja estabilizado.

Eu passei as mãos pelo rosto, tentando processar tudo aquilo. Era como se cada resposta dele me deixasse mais frustrado. Tudo o que eu queria era entrar naquele quarto, olhar nos olhos dela e implorar para que ela se lembrasse de mim. Mas não era tão simples.

O médico voltou a me encarar.

— Senhor, se quiser ajudar na recuperação dela, siga essas orientações. Repouso. Tranquilidade. E não se preocupe. Essas memórias voltarão.

Eu apenas assenti, relutante, e me encostei na parede. Zara olhou para mim, hesitante, como se quisesse dizer algo, mas sabia que qualquer palavra naquele momento seria inútil. Tudo o que restava era esperar. E, para mim, esperar nunca foi tão doloroso.

Saí andando pelo corredor com passos pesados, como se cada movimento meu fosse capaz de quebrar o chão. Kenny me olhou, empolgado, com aquela expressão quase infantil de esperança.

— Então, posso vê-la agora? — Perguntou com um sorriso.

Eu ri. Mas não foi uma risada genuína. Era amarga, carregada de ironia e autopiedade.

— Se ela lembrar de você. — Respondi com um tom ácido, deixando escapar a raiva que fervia dentro de mim. Sem esperar resposta, me virei e continuei andando, o som dos meus próprios passos ecoando pelo hospital.

Enquanto caminhava, minha voz explodiu pelo corredor, alta o suficiente para que Zara e Kenny ouvissem, mas sem me importar com quem mais pudesse estar ali.

— Porque, sabe, aparentemente eu sou só uma memória traumática, a droga de uma memória traumática. — As palavras saíram como um grito, cheias de dor e revolta. — Ou talvez nem isso. Talvez eu seja tão insignificante que ela nem se deu o trabalho de me lembrar!

Minha garganta apertava como se um nó estivesse se formando. O peso das palavras me esmagava. Era como se estivesse gritando contra um vazio, contra algo que não podia mudar. Minhas mãos estavam fechadas em punhos tão apertados que meus dedos doíam, mas nada aliviava o fogo que queimava dentro de mim.

Continuei andando pelo corredor, agora chutando o chão a cada passo, tentando descontar a frustração. O barulho dos meus sapatos ecoava pelos corredores do hospital, e meu peito parecia prestes a explodir.

Quando finalmente cheguei mais perto da saída, ouvi os passos leves de Zara me alcançando. Ela me puxou pelo braço, forçando-me a parar.

— Kwon, você precisa se acalmar. — A voz dela era firme, mas havia um toque de preocupação que me fez respirar fundo por um segundo, embora o alívio fosse momentâneo.

Eu me virei para ela, minhas mãos já nos cabelos, puxando-os com força enquanto soltava um suspiro carregado de raiva e frustração.

— Como, Zara? — Perguntei, minha voz cheia de desespero. — Como eu faço isso? Como eu fico calmo quando a pessoa que eu mais... — Engoli as palavras antes que elas escapassem, mas ela sabia o que eu estava prestes a dizer. — Quando a pessoa que significa tudo pra mim nem sabe quem eu sou?

Zara respirou fundo, me olhando com aqueles olhos cheios de paciência que eu não tinha.

— Kwon, olha pra mim. — Ela falou em um tom firme, como se estivesse lidando com uma criança teimosa. — Se você continuar assim, só vai piorar as coisas.

Eu balancei a cabeça, quase rindo de novo, mas dessa vez era uma risada nervosa, desesperada.

— E o que você sugere, Zara? Que eu entre lá e diga: "Oi, Calista, eu sou o cara que te machucou, mas também sou o cara que te ama e tá perdendo a cabeça porque você não lembra de mim"?

Ela suspirou, cruzando os braços.

— Não, idiota. — O tom dela agora era mais duro, mas ainda havia compaixão ali. — Você vai entrar lá e contar tudo. Não de uma vez, mas aos poucos. Você vai lembrar a ela de como vocês se conheceram, de como ela era uma pedra no seu sapato e você conseguia ser ainda pior e também como, no fim das contas, vocês acabaram juntos.

Eu abaixei as mãos, respirando fundo, tentando absorver as palavras dela.

— E se ela não quiser saber? — Minha voz saiu baixa, quase um sussurro.

Zara colocou uma mão no meu ombro, o apertando tanto que comecei a sentí-lo formigando. Ela talvez não me odisse mais tanto assim, mas descontava sua raiva encubada em pequenos gestos, alguns mais nítidos que os outros.

— Ela vai. Mas você precisa fazer isso com calma. Sem explodir, sem gritar, sem pressioná-la. Apenas... Seja o Kwon que ela viu além das lutas, que com certeza eu desconheço. O Kwon que ela escolheu.

Meu peito ainda estava apertado, mas as palavras de Zara fizeram algo diferente desta vez. Era como se ela tivesse acendido uma faísca. Pequena, mas suficiente para me lembrar que havia algo que eu podia fazer.

— Tá bom... — Respondi, embora a incerteza ainda estivesse presente na minha voz. — Eu vou tentar.

Ela deu um sorriso leve, dando um tapinha no meu ombro.

— Isso é tudo que ela precisa agora.

Eu respirei fundo mais uma vez, fechando os olhos por um momento antes de me virar de volta para o corredor. Por mais que meu coração ainda estivesse em pedaços, havia uma coisa clara, eu precisava lutar por ela. Mesmo que fosse de um jeito totalmente diferente dessa vez.

Sentei na cadeira em frente ao quarto de Calista, meus cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos entrelaçadas, tentando sufocar a raiva e a culpa que me consumiam. Kenny tinha acabado de entrar, e eu podia ouvir sua voz abafada lá dentro, provavelmente contando alguma história ou tirando vantagem do fato de que ela se lembrava dele. O pensamento fazia meu sangue ferver, mas me forcei a manter a cabeça baixa, respirando fundo, contando os minutos.

Algum tempo depois, a porta do quarto se abriu, e Kenny saiu com aquele sorrisinho de quem sabe exatamente como provocar. Ele me lançou um olhar furtivo, parando por um momento perto de mim.

— Ela lembrou de mim. — Murmurou, quase casual, mas com uma pontinha de provocação.

Minha mandíbula travou, e o impulso de me levantar e agarrá-lo pelo colarinho foi forte, mas ele levantou a mão como quem diz "não vale a pena" e seguiu andando em direção à ala da cafeteria. Olhei para ele por cima do ombro, vendo seu andar confiante, como se tivesse ganhado alguma coisa. Fiz uma careta para ele, mas não disse nada. Não adiantava.

Respirei fundo. Precisava de força para entrar ali. Como eu começaria? O que diria? Só de pensar, a raiva voltava a me consumir. Não dela, claro, mas de mim mesmo. Eu a tinha colocado nessa situação. E se ela nunca se lembrasse? Como eu... Como nós seguiríamos em frente?

Finalmente, levantei-me, tentando afundar a raiva em algum canto do meu peito. Empurrei a porta devagar, o coração batendo como se eu fosse entrar em uma luta. Calista estava deitada, os braços cruzados sobre o peito, me encarando com um olhar avaliador.

— Você de novo... — Disse, a voz carregada de irritação e cansaço.

Fechei a porta atrás de mim, sem saber se deveria me desculpar ou me defender. Antes que ela pudesse continuar com alguma reclamação, puxei uma cadeira e sentei de frente para ela, tentando conter a mistura de raiva e nervosismo que crescia dentro de mim. Por alguns segundos, fiquei em silêncio, as palavras me escapando como se minha mente estivesse em branco.

Ela riu, mas era uma risada curta, quase indignada.

— O gato comeu sua língua? — Perguntou, arqueando uma sobrancelha.

Passei a língua pelo interior da bochecha, forçando um riso seco.

— Muito engraçadinha. — Respondi, mas minha voz soava mais tensa do que eu queria.

Ela franziu os lábios, me observando como se tentasse decifrar quem eu era ou o que eu estava fazendo ali. Respirei fundo, decidido a quebrar o silêncio, mesmo sem ter certeza de como fazer isso.

— Certo... — Comecei, gesticulando desajeitadamente, tentando encontrar as palavras certas. — Então Calista, eu sou tipo... Seu namorado, ou quase isso. Se é que faz sentido.

As palavras saíram mais rápido do que eu esperava, como uma bomba antecipada. Meu coração parou por um segundo ao perceber o que tinha dito. Mas agora não dava para voltar atrás.

Calista me olhou de cima a baixo, os braços ainda cruzados, a expressão de quem não sabia se estava diante de uma piada ou de uma tragédia. Depois, virou o rosto para a janela, o reflexo dela mostrando um sorriso sarcástico.

— Não, não faz sentido. — Ela riu, mas não havia humor algum em sua voz — Porque, sinceramente, você está longe de ser o meu tipo.

Aquela frase bateu em mim como um soco no estômago. Cerrei os dentes, tentando não explodir. Bati na própria coxa com a mão, tentando canalizar a frustração para algo que não fosse ela.

— Estou falando sério. — Respondi, com o tom mais firme que consegui reunir. — Nós nos conhecemos no Sekai Taikai. Ficamos presos em um elevador. Foi assim que tudo começou. Você realmente não se lembra de nada?

Ela voltou a olhar para mim, e nossos olhos se encontraram em uma troca de olhares que parecia durar uma eternidade. O silêncio era pesado, carregado de tensão. Ela piscou algumas vezes, como se tentasse encontrar algo em mim que fizesse sentido, algo que sua memória pudesse alcançar.

Por fim, ela suspirou, batendo as mãos nos lençóis.

— Já disse que não. — Sua voz estava carregada de irritação e uma pitada de desespero. — Você não faz parte de absolutamente nada visível na minha mente.

As palavras dela eram como uma lâmina cortando meu peito. Eu sabia que não era culpa dela, mas ouvir aquilo... Era como se todo o nosso tempo juntos tivesse sido apagado.

— Certo... — Murmurei, tentando manter a compostura, mas a dor era evidente na minha voz. — Então, vamos começar do zero.

Ela me olhou com uma mistura de ceticismo e curiosidade, mas não disse nada. Eu sabia que o caminho seria longo, mas, por ela, eu estava disposto a percorrer cada passo, mesmo que fosse doloroso.

Eu respirei fundo, tentando reunir o que restava de coragem em mim enquanto a olhava. Cada palavra que saía da minha boca parecia carregar um pedaço do meu peito, e era impossível ignorar a tensão sufocante entre nós. Contei tudo. Não tinha como ir devagar, não quando a única coisa que eu queria era que ela se lembrasse, que ela me enxergasse de novo como algo além de um estranho.

Comecei no elevador. Contei como ficamos presos e andamos pelas tubulações, duas vezes, como a tensão inicial entre nós parecia insuportável, até que de repente ela sorriu, mesmo com um sorriso sarcástico ou provocativo, e tudo mudou. Narrei como aquele sorriso se tornou algo que eu procurava todos os dias, como ele abriu espaço para algo mais profundo que eu nem sabia que precisava.

Lembrei do soco que eu desferi na praia, aquele momento tão cheio de raiva e que me dói só de lembrar da expressão assustada dela, mas também aquilo pareceu tão cheio de... Nós. Foi ali que percebi que ela era diferente, que fazia meu sangue ferver e, ao mesmo tempo, aquecia meu coração, e que eu fui um idiota por gostar tanto dela e estar confuso ao ponto de machucá-la. Falei do beijo que compartilhamos depois, do gosto do sal no ar e de como ela foi embora correndo, como se fugisse, mesmo quando já estava claro naquele momento que o desejo era mútuo.

Eu disse a ela sobre as noites em que dividimos a cama, ela ocupando todo o espaço, enquanto eu fingia estar irritado, mas, na verdade, só queria prolongar aquele momento. Contei como ela adorava ouvir trilhas sonoras da Disney enquanto treinava, algo que eu achava ridículo no início, mas que agora era uma das memórias mais preciosas que eu tinha.

E então, a parte mais difícil. Contei sobre Kreese, sobre a faca, sobre o sangue que parecia interminável. Minha voz tremeu enquanto descrevia a cena, o desespero, o pânico de achá-la ali, caída. As palavras saíam, mas eu podia sentir o peso esmagador da culpa crescendo no meu peito a cada frase.

Quando terminei, o silêncio que se seguiu parecia um soco no estômago. Olhei para ela, buscando alguma reação. Qualquer coisa. Mas ela apenas balançou a cabeça lentamente, murmurando um "uhum" repetido, quase mecânico, como se estivesse tentando processar tudo o que eu tinha dito.

— Zara disse que eu deveria ir com calma — Eu falei, tentando suavizar o clima, mas minha voz saiu hesitante, quase derrotada. — Mas... Sinceramente, eu não consigo. Eu precisava contar tudo de uma vez. Esperar seria insuportável.

Ela ficou em silêncio por mais alguns segundos, até que murmurou algo, baixo demais para que eu entendesse.

— O quê? — Perguntei, inclinando o corpo para frente, desesperado para captar qualquer palavra dela.

— Isso não ajuda — Ela repetiu, agora mais alto. Sua voz estava embargada, carregada de uma decepção que me atingiu como uma lâmina.

Franzi o cenho, confuso, sentindo o peso de suas palavras como se fossem pedras jogadas diretamente contra mim.

— O que você quer dizer com isso? — Perguntei, minha voz cheia de uma ansiedade que eu não conseguia disfarçar.

Ela levantou os olhos para me encarar, e neles havia algo que me assustava. Medo, frustração, talvez até raiva.

— Eu disse que isso não ajuda em porcaria nenhuma, japonês! — Ela repetiu, mais alto desta vez, e a forma como o apelido soou em sua boca me fez estremecer, não era um apelido provocativo ou carinhoso, e só demonstrava o quanto ela realmente parecia não me conhecer naquele momento. E o peso disso, era esmagador. — Minha mente está um completo vazio. Eu não lembro de nada. Nada.

Sua voz quebrou ao final, e ela pressionou as mãos contra os lençóis da cama, como se estivesse tentando se ancorar em algo para não perder o controle.

— Eu não consigo sentir nada por alguém que eu não me lembro, tá legal? — Ela vociferou, e aquelas palavras atingiram meu peito como um golpe direto.

Fiquei sem fala por um momento, sentindo meu coração despencar como se estivesse sendo puxado por um peso insuportável.

— Você não vai nem tentar? — Perguntei, minha voz saindo baixa, quase um sussurro, mas ainda carregada de uma raiva indescritível que me arrebatava por dentro.

Ela respirou fundo, cerrando os dentes, como se estivesse tentando conter a raiva dentro de si.

— Não é sobre tentar, Kwon. — Ela gritou, a voz agora cheia de uma mistura de frustração e dor, e mesmo que ela tivesse dito meu nome, a emoção na forma como ela o proferiu, parecia diferente de qualquer outra vez. — É sobre não conseguir. Você entende? Minha mente está em branco. É como uma folha de papel, uma carta nunca escrita.

Ela apontou para si mesma e depois para mim, seus olhos marejados agora transbordando em lágrimas que ela claramente estava tentando segurar.

— Esse "nós" que você falou... — Ela disse, a voz tremendo. — Ele pode existir na sua cabeça, mas, na minha, não existe mais. Foi apagado.

Aquelas palavras eram como facas cravando em mim, uma por uma, cada uma mais dolorosa que a anterior. Engoli em seco, tentando encontrar algo para dizer, mas não havia nada.

— Eu sinto muito, cara. — Ela completou, olhando para mim com uma expressão que misturava culpa e algo que parecia um adeus.

Eu era apenas um maldito cara. Apenas isso.

E, naquele momento, eu não sabia o que doía mais, o fato de ela não se lembrar de mim ou a ideia de que, mesmo que ela recuperasse as memórias, talvez nunca mais fossemos os mesmos. Respirei fundo, engolindo o nó na garganta, e apenas murmurei um seco.

— Tudo bem. Eu vou deixar você sozinha.

Quando ela disse aquele "obrigada" irritado, foi como o golpe final. Eu não esperava que fosse fácil, mas ouvir o tom de impaciência dela, como se eu fosse apenas mais um incômodo em um dia ruim, me rasgou por dentro.

Levantei-me devagar, arrastando os pés como se cada passo fosse um esforço monumental. A porta parecia mais longe do que realmente estava, mas eu finalmente a alcancei e saí, soltando um suspiro alto assim que ela se fechou atrás de mim.

Passei a mão pelo rosto, tentando esfregar a frustração e a raiva para longe, mas elas estavam lá, presas em mim, como uma corrente que eu não conseguia romper. A lembrança das palavras do médico ecoava na minha mente, "Ela precisa de repouso e nada de estresse. Em uma semana, as memórias voltarão." Eu tentei me agarrar àquela esperança como se fosse minha última chance de não enlouquecer. Seis dias. Eu só precisava aguentar seis dias, e ela se lembraria de tudo... Certo?

Mas seis dias pareciam uma eternidade agora.

Caminhei pelo corredor, minhas mãos ainda tremendo levemente. Queria gritar, bater em algo, qualquer coisa para tirar aquela dor do meu peito. Mas ao mesmo tempo, a voz do médico continuava me segurando. Não era sobre mim. Não agora. Era sobre ela, e se o estresse poderia atrapalhar a recuperação, então eu precisava encontrar outra forma.

Sentei em uma das cadeiras do corredor, abaixando a cabeça e fechando os olhos por alguns segundos. A imagem dela me olhando como se eu fosse um estranho não saía da minha mente. A forma como ela me encarou, com a testa franzida e os braços cruzados, como se eu fosse alguém invadindo a vida dela sem permissão.

"Talvez Zara estivesse certa", pensei, enquanto batia os dedos contra o joelho em um ritmo irritado. Eu devia ter ido com calma. Devia ter seguido o plano de ir aos poucos, contando as coisas de forma mais leve, mais cuidadosa. Mas não, eu tinha que despejar tudo de uma vez, como um idiota desesperado.

Suspirei fundo e olhei para as luzes brancas do teto do hospital. Não dava para voltar atrás agora, mas também não dava para ficar parado, esperando que o tempo resolvesse tudo. Não com ela ali, tão perto, e ao mesmo tempo tão distante.

Então, uma ideia começou a se formar na minha cabeça. Talvez eu não pudesse contar tudo de novo, mas poderia mostrar.

Se ela não se lembra... Talvez eu possa ajudá-la a lembrar, de outra forma.

A ideia me deu uma centelha de esperança, algo que eu não sentia desde o momento em que ouvi aquelas malditas palavras, "Quem diabos é você?" Eu me levantei da cadeira, sentindo meu coração bater um pouco mais rápido, e comecei a planejar.

No dia seguinte, eu voltaria. Mas desta vez, eu não falaria muito. Em vez disso, eu montaria o cenário. Exatamente como naquela memória.

Eu me lembrei do elevador, de como tudo começou. Do cheiro metálico do pequeno espaço, das luzes piscando, do som abafado dos cabos se movimentando. Lembrei de como ela parecia furiosa comigo, com os braços cruzados e aquele olhar que me desafiava.

"Você acha que pode me intimidar? Boa sorte."

E a a forma como ela parecia adorar me chamar de gênio, quando nas entrelinhas queria dizer que eu era a pessoa mais burra que ela conhecia naquele momento, pela ideia brilhante de ousar escalar um elevador e andar pelas tubulações feito um ninja.

Era isso. Eu recriaria aquele momento. Talvez fosse um risco, mas no fundo eu sabia que se ela sentisse o que sentiu naquele dia, algo despertaria. Não precisava ser tudo de uma vez. Só um lampejo. Só o suficiente para abrir uma brecha nas paredes que a amnésia tinha levantado entre nós.

Pensei em todos os detalhes enquanto saía do hospital, minhas mãos agora parando de tremer. As roupas que eu estava usando naquele dia. As palavras que eu disse. Até o jeito que eu estava escorado na parede do elevador. Tudo tinha que ser igual.

Ao chegar na calçada do lado de fora, o vento frio da noite bateu no meu rosto, mas pela primeira vez em horas, não me importei. Eu tinha um plano. E com isso, uma nova dose de determinação.

— Seis dias — Eu disse a mim mesmo, quase como um mantra. — Seis dias para ela se lembrar de tudo. E se isso não funcionar...

Eu não deixei a frase se completar. Não havia espaço para "e se" agora. Havia apenas a certeza de que eu faria o que fosse preciso para que ela voltasse. Para que ela me enxergasse de novo. E amanhã seria o primeiro passo.

Obra autoral ©

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