30. The Final Countdown

❝ And things to be found (to be found)
I'm sure that we'll all miss her so ❞

O som abafado dos gritos ao meu redor parecia vir de um mundo distante. Era como se eu estivesse preso em um túnel onde tudo que existia era o eco ensurdecedor e um zumbido agudo que perfurava meus ouvidos. Meus pulmões ardiam, e a falta de ar parecia esmagadora, me deixando tonto, perdido em um vazio sufocante.

Foi quando eu olhei para minhas mãos.

Sangue.

Minha respiração, já descompassada, quase parou. Meus olhos não conseguiam se desviar daquele vermelho que parecia se espalhar, contaminando tudo. Por um momento, tudo ao meu redor sumiu. Axel, o caos, o som... Nada existia. Só eu, minhas mãos e aquele sangue.

Então, algo dentro de mim pareceu estourar, como uma represa que se rompe de repente. A realidade me atingiu com força total.

CALISTA! — Meu grito ecoou, rasgando minha garganta como lâminas.

Minha cabeça girava. Meu coração parecia explodir dentro do peito. Eu olhei ao redor freneticamente, tentando entender, tentando juntar as peças do que tinha acabado de acontecer. Tudo parecia um borrão, o momento em que ela correu, o impacto no chão, o grito... O grito dela.

Meu corpo se moveu sozinho. Tropeçando, caindo, me levantei com dificuldade. A faca estava ali, no chão, brilhando sob as luzes frenéticas. O objeto parecia pulsar, como se estivesse vivo, como se zombasse de mim, como se fosse o símbolo de tudo que deu errado.

Eu gritei novamente, um som gutural, cheio de raiva, dor e algo que eu não conseguia nomear. Chutei a faca com força, lançando-a para longe, como se pudesse me livrar do peso que carregava.

Quando meus olhos finalmente encontraram Calista, o ar sumiu de novo.

Ela estava caída, o corpo imóvel, a pele pálida. O sangue se destacava em sua barriga, um corte que não parecia tão profundo, mas que parecia drená-la mesmo assim. Mas não era só o corte. Não era só o sangue. Ela não estava acordada.

— Calista! Dinamite, acorda, por favor!

Engatinhei até ela, minhas mãos trêmulas alcançando o rosto dela. Meus dedos passaram por seu cabelo, por seu rosto.

— Calista! Por favor, não faz isso comigo. Não agora. Eu... Droga, eu sinto muito. Eu sinto muito por tudo...

Minha voz falhava, a culpa me esmagando. Tudo parecia girar. Axel, a faca, minha raiva, o que eu tinha dito, o que eu tinha feito... Era como se tudo tivesse se acumulado, um turbilhão que agora culminava nela ali, no chão, desacordada.

Eu era o culpado.

Cada segundo que ela não abria os olhos parecia uma eternidade. A cada momento, o peso no meu peito aumentava, e minha visão começava a ficar turva.

Foi quando ouvi uma voz.

— Kwon, se afaste dela!

Era Daniel LaRusso, um dos senseis do Miyagi-Do. Sua expressão estava carregada de urgência e medo, mas sua voz era firme, e mesmo assim, eu não me movi, estava em choque, e com raiva o suficiente de mim mesmo e dele por querer me tirar dali. Eu não podia a deixar ali.

— Ela bateu a cabeça muito forte na queda. Pode ser grave. Você precisa se afastar, não faça movimentos bruscos!

Mas eu não conseguia ouvir direito. As palavras dele pareciam distantes, abafadas. Tudo que eu queria era ficar perto dela, segurá-la, fazê-la acordar.

— Eu não vou sair daqui! — Gritei, a voz quebrando.

Senti mãos em meus ombros. Era Yoon, meu amigo, junto de Han, tentando me puxar para longe.

— Kwon, calma! — Yoon falou, sua mão no meu peito, tentando me conter. — Eles vão cuidar dela, mas você precisa se afastar. Não ajuda nada ficar aqui assim!

— Eu... Eu não posso. Não posso deixar ela assim, Yoon. — Minha voz era um sussurro desesperado.

Mas eles não me soltaram. Eles seguravam meus braços com firmeza, me impedindo de me aproximar mais, enquanto eu assistia impotente.

Larusso estava ajoelhado ao lado dela, verificando seu pulso e analisando o corte. Seu rosto estava tenso, mas concentrado.

— Chamem uma ambulância, agora! — Ele gritou, a voz ecoando pelo caos ao redor.

Foi nesse momento que eu vi uma figura se aproximando. Silver.

Ele estava parado alguns passos atrás, a expressão incrédula e assombrada. O usual sorriso arrogante tinha desaparecido completamente. Ele parecia congelado, os olhos fixos em Calista, como se não acreditasse no que estava vendo.

Algo no olhar dele fez meu peito apertar ainda mais. Se até mesmo ele parecia em choque, é porque de fato, algo de muito ruim estava acontecendo, e eu sequer conseguia acreditar, na verdade, eu não queria acreditar.

Eu queria gritar, queria correr até ela, queria fazer alguma coisa. Mas tudo que conseguia fazer era ficar ali, parado, enquanto o peso do que tinha acontecido me esmagava.

Silver se ajoelhou ao lado de Calista com uma lentidão que parecia carregar o peso de uma montanha. O homem, que sempre emanava uma aura implacável e controladora, agora parecia humano de uma maneira quase assustadora. Seus olhos estavam fixos no rosto pálido dela, e ele soltou um suspiro pesado, como se tivesse segurado a respiração por um tempo que parecia infinito.

Por um instante, ele hesitou. Sua mão pairou no ar antes de repousar delicadamente na testa dela, os dedos tremendo levemente. Ele parecia buscar algum sinal de vida, qualquer coisa que dissesse que ela estava ali, que não tinha sido consumida pelo caos ao redor.

— Eu não devia... — Ele murmurou, sua voz baixa, quase inaudível.

Mas eu ouvi. Ouvi e senti a fúria me consumir.

— ISSO É CULPA SUA! — Gritei, minha voz rasgando o silêncio pesado que havia se instalado.

Eu me debatia contra o aperto de Yoon e Han, tentando me soltar, mas parecia que minhas forças tinham desaparecido junto com qualquer controle que eu tinha.

É tudo culpa sua, seu desgraçado!

Minhas palavras ecoaram pelo salão, mas Silver não reagiu. Ele continuava ajoelhado, estático, como se estivesse preso em um pesadelo que não conseguia escapar.

Minha raiva era avassaladora, mas misturada com uma culpa que me destruía por dentro. Eu não sabia se odiava mais Silver, Axel, ou eu mesmo. Tudo parecia confuso, turvo, como se o chão estivesse se movendo sob meus pés.

— Me soltem, droga! Eu preciso ir até ela! — Gritei novamente, me debatendo com mais força, mas Yoon e Han não cederam.

— Kwon, para! Você só vai piorar as coisas! — Yoon disse, sua voz carregada de preocupação.

Eu queria xingá-lo, queria afastá-los de mim com tudo que eu tinha, mas minha visão estava turva, minha garganta doía, e meu corpo simplesmente não respondia mais.

No canto do salão, vi Tory. Ela estava encolhida, com as mãos cobrindo o rosto, os ombros tremendo enquanto soluços escapavam. Era estranho ver alguém tão forte, tão destemida, quebrar assim. Mas, naquele momento, todos estavam quebrados.

O salão inteiro parecia ter congelado. A guerra que havia tomado conta do lugar cessou como se o mundo tivesse parado de girar. Nenhum golpe, nenhum grito de raiva. Apenas o som abafado de choro, de respirações pesadas, de murmúrios.

Foi então que ouvi.

— Calista!

Zara.

Seu grito ecoou pelo espaço, cheio de alarme e desespero. Ela correu na nossa direção, empurrando quem estivesse no caminho, seus olhos arregalados e fixos na amiga caída no chão. Axel estava ao lado dela. Ele segurou Zara pelo braço antes que ela pudesse avançar, sua expressão carregada de algo que eu só podia descrever como luto.

— Zara, não. Você não pode.

— Me solta! Me solta, Axel! — Ela gritou, esperneando, tentando se desvencilhar do aperto dele. — Eu preciso ver ela! Calista!

Aquilo me destruiu ainda mais, se é que isso realmente era possível. O som da voz de Zara, quebrada, misturada com o olhar de Axel, que parecia ter envelhecido anos em questão de minutos, era como um punhal cravado no meu peito. Devia ter sido eu no lugar dela. Eu.

Axel segurava Zara com firmeza, mas eu podia ver que ele não tinha força para dizer mais nada. Seus olhos estavam fixos em Calista, e sua boca tremia como se quisesse falar algo, mas não conseguisse.

Eu sabia que ele se culpava tanto quanto eu. Mas, naquele momento, não importava. Nada importava, exceto ela.

Larusso continuava ao lado de Calista, verificando os sinais vitais, enquanto sua voz ecoava com ordens.

— Chamem a ambulância agora! Precisamos estabilizá-la. Ela bateu muito forte a cabeça.

Silver permaneceu ajoelhado, imóvel. Suas mãos estavam pressionadas contra o chão agora, o corpo levemente inclinado como se estivesse carregando um peso insuportável. O homem que parecia ser invencível estava desmoronando diante de mim.

E eu? Eu estava perdido.

Meu corpo tremia, meus olhos estavam fixos nela, mas minha visão começava a se desfocar novamente. Eu sentia a mão de Yoon no meu peito, tentando me manter de pé, mas tudo parecia estar desabando ao meu redor.

— Kwon, respira. Por favor, cara, respira. — Yoon implorava, mas eu não conseguia.

A voz de Zara, ainda gritando o nome de Calista, misturava-se com o som distante de passos apressados e murmúrios preocupados. Tory chorava. Silver estava paralisado. Axel tinha o olhar vazio.

E eu só queria que ela abrisse os olhos. Só queria que ela dissesse que estava tudo bem.

O som distante da ambulância parecia um eco vindo de um lugar muito longe. Era como se o mundo inteiro estivesse envolto em uma bolha, abafado, distorcido. Eu mal conseguia respirar. Cada suspiro parecia um esforço monumental, como se houvesse algo apertando meu peito, me esmagando por dentro.

Os soluços de Zara continuavam. Um choro abafado, quase doloroso de ouvir. Eu a vi de relance, ainda segurada por Axel, que parecia petrificado, com o olhar perdido e fixo no chão. Sua culpa era evidente, estampada em cada linha de seu rosto. Ele sabia o que tinha feito, mas não havia nada que pudesse consertar isso agora.

E então, houve o som de um suspiro longo e pesado.

Silver.

Ele estava ajoelhado ao lado de Calista, mas seu semblante parecia um retrato vivo de arrependimento. Seus ombros caíram, e ele olhou para ela por um longo momento antes de se levantar lentamente. Seus passos foram hesitantes no início, mas logo ele começou a se afastar. Sem olhar para trás, ele deixou o salão, sua figura desaparecendo no caos ao redor.

Eu o observei por um instante, minha mente me implorando para ir atrás dele. Minha raiva estava fervendo, implorando para ser liberada. Eu queria gritar, queria fazê-lo pagar por tudo isso. Por Calista estar naquele estado. Por ter nos arrastado para aquele inferno.

Mas então meus olhos caíram nela.

Calista.

Ela estava tão pálida. Tão frágil. O sangue no corte em sua barriga tinha diminuído, mas o impacto na cabeça... Eu não conseguia parar de pensar no impacto. No som. Seu grito parecia reverberar em minha mente, e minha culpa me corroía cada vez mais. Cada fibra do meu ser gritava que isso era culpa minha.

Eu caí de joelhos ao lado dela. Minhas pernas simplesmente desistiram. Ajoelhei-me no chão frio e abaixei a cabeça até quase tocá-lo, segurando a mão dela entre as minhas com tanta força que meus dedos começaram a doer.

Por favor. — Minha voz saiu baixa no começo, um sussurro rouco.

Meus ombros tremiam, e eu podia sentir as lágrimas escorrendo pelo meu rosto, queimando como fogo. Eu sabia que havia gente ao meu redor, sabia que Tory ainda estava chorando, que Zara continuava a se debater contra Axel, mas tudo parecia distante.

— Por favor, por favor... Fica comigo.

Eu nunca fui religioso. Nunca acreditei em nada que não pudesse tocar ou ver. Mas naquele momento, eu estava suplicando a algo. A qualquer coisa. A Deus, ao universo, a quem quer que fosse.

— Eu sei que errei... Eu sei que isso é minha culpa. — Minha voz saiu em um soluço entrecortado.

Meus lábios tocaram a mão dela, fria demais, e eu apertei os olhos, tentando afastar a visão da faca, do sangue, do impacto.

— Por favor, não me deixa.

Minha voz quebrou no final. Era como se todas as emoções acumuladas estivessem explodindo de uma vez só. Eu era só dor, só arrependimento, só desespero.

Tudo o que eu queria era que ela abrisse os olhos. Que me dissesse que eu estava sendo um idiota dramático, que desse um daqueles sorrisos sarcásticos que só ela sabia dar.

Mas ela não se movia.

Eu afundei ainda mais a cabeça no chão, segurando a mão dela com ambas as minhas, enquanto lágrimas caíam no chão.

Por favor... Por favor... — Continuei murmurando, como um mantra desesperado.

O som da ambulância estava mais próximo agora. Luzes começaram a piscar ao redor, mas eu não conseguia me mover. Tudo o que eu conseguia fazer era segurar a mão dela, como se aquilo fosse o suficiente para trazê-la de volta. Como se meu toque pudesse ser o que ela precisava para lutar.

E, pela primeira vez em muito tempo, eu orei. Orei com tudo o que tinha, mesmo que não soubesse como fazer isso, e se realmente funcionaria, mas não importava, eu precisava tentar. Tudo o que importava era que Calista ficasse bem.

Yoon e Han me puxaram com força, seus braços me segurando firme enquanto eu tentava resistir, me debatendo inutilmente. A mão dela escorregou da minha, o contato frio e inerte desaparecendo enquanto os paramédicos a erguiam com pressa para colocá-la na maca.

— Não! Espera! — Gritei, minha voz falhando no final, misturada com o som rasgado do meu próprio desespero.

Mas era inútil. Eles não pararam. Não podiam parar.

Eu os vi correrem em direção à ambulância, cada movimento deles como um borrão em meio às luzes piscantes e o caos ao redor. Minha mente não conseguia acompanhar. Tudo parecia em câmera lenta, e ao mesmo tempo rápido demais para que eu processasse.

Calista.

Meu chamado para ela foi a última coisa que saiu da minha boca, mas ela não respondeu.

— Por favor, deixa ele ir! — Ouvi a voz de Zara ao longe, quase cortando o ar. Ela estava em pânico, gesticulando para um táxi que nem havia chegado ainda, sua voz trêmula, o rosto molhado de lágrimas.

Ela estava inquieta, andando de um lado para o outro, como se o próprio corpo não conseguisse sustentar a necessidade desesperada de fazer algo. Cada segundo parecia eterno, e eu sabia que ela estava sofrendo tanto quanto eu.

Eu senti meu corpo ceder, como se minhas pernas não aguentassem mais me sustentar. Não sabia o que fazer. Não sabia o que pensar.

Minha cabeça caiu para frente, meu olhar fixo no chão, tentando desesperadamente organizar o caos dentro de mim. Mas tudo que eu via era sangue. Sangue nas minhas mãos, no chão, na faca que chutei para longe.

E então, uma mão pousou firme no meu ombro.

Eu levantei o olhar com um cenho franzido, encontrando Daniel Larusso parado ali, seu semblante sério, mas seus olhos refletindo uma espécie de empatia que eu não sabia se merecia.

— Você precisa ir com a gente, garoto. — A voz dele era baixa, mas firme. Ele olhou para mim como se estivesse tentando me puxar de volta para o presente, para fora do poço em que eu estava me afundando.

Ao lado dele, Kenny estava parado. Ele não dizia nada, mas seu rosto estava coberto de lágrimas. O olhar dele era pesado, carregado de algo que parecia muito com rancor. Ele mal conseguia me encarar, e quando o fez, foi apenas por um segundo, suficiente para que eu sentisse o peso de sua acusação silenciosa.

Ele sabia.

Ele sabia que parte disso era minha culpa.

Eu abri a boca para dizer algo, mas nada saiu. Minha garganta parecia fechada, sufocada pelo peso do que tinha acontecido.

— Eu te levo até o hospital. — Daniel continuou, me puxando levemente pelo ombro para me tirar do meu estado de torpor.

Por um momento, tudo em mim queria recusar. Eu não confiava neles, em nenhum deles. Mas agora? Agora, eu não tinha escolhas.

— Certo. — Minha voz saiu baixa, quase imperceptível, mas ele pareceu entender.

Yoon e Han finalmente me soltaram, como se estivessem esperando essa decisão. Eu me senti estranho sem o peso dos braços deles me segurando. Me senti leve demais, como se pudesse desmoronar a qualquer momento.

Kenny ainda não tinha dito uma palavra. Ele apenas enxugava o rosto com as costas da mão, os olhos ainda cheios de lágrimas, mas o olhar endurecido. Era um misto de tristeza e raiva.

Eu sabia que ele me culpava, e ele não estava errado.

Enquanto Daniel me guiava para fora do local, eu olhei para trás, para o lugar onde Calista tinha estado, agora vazio. Só o sangue no chão como prova do que aconteceu.

E mesmo assim, parecia que tudo aquilo era um pesadelo. Mas não era. Era real.

⋆౨˚ ˖

O silêncio no carro era denso, sufocante, como se o peso de tudo que aconteceu estivesse ali conosco, preenchendo cada canto do espaço. Eu estava sentado no banco de trás, entre Kenny e Samantha, que estava em minha frente, no banco do passageiro, duas pessoas que eu nunca pensei que estariam ao meu lado em um momento assim. Pessoas que eu costumava odiar com cada fibra do meu ser.

Kenny estava com os braços cruzados, olhando para a janela, mas eu podia sentir a raiva emanando dele. Não era uma raiva qualquer, era direcionada, e eu sabia que parte disso era para mim. Ele enxugava o rosto vez ou outra, mas seu maxilar tenso denunciava o quanto ele estava lutando para não explodir.

Samantha, no banco da frente, estava inquieta. Ela olhava pelo retrovisor, como se quisesse dizer algo, mas parecia hesitar. Talvez ela entendesse que não havia palavras certas agora. Que nada que ela dissesse ou fizesse poderia mudar o que aconteceu.

E eu?

Eu estava afundado no meu próprio vazio.

Minha cabeça estava encostada no vidro da janela, o olhar fixo no nada enquanto o mundo passava em borrões de luzes e sombras. Eu estava ali, mas não estava. Meus pensamentos voltavam para Calista.

A expressão dela.

O som do grito dela quando tudo aconteceu.

O jeito como ela caiu no chão, e eu não consegui segurá-la.

Eu apertei os punhos, sentindo as unhas se cravarem na palma da mão. A dor física era quase um alívio comparado ao que eu estava sentindo por dentro.

"Algo com um rótulo."

As palavras dela ecoavam na minha mente, repetindo como um disco quebrado. Ela queria algo mais, algo concreto. E eu... Eu não sabia se conseguiria dar isso a ela. Mas agora, isso nem importava. Não tinha como fazer promessas quando ela estava lá, inconsciente, sem que eu soubesse se estaria bem.

Tudo parecia tão insignificante agora. Todas aquelas lutas, o torneio, as provocações, as rivalidades. Eu passei tanto tempo odiando pessoas como Kenny e Samantha, vendo elas como obstáculos, e agora estávamos no mesmo carro, indo para o mesmo lugar, com o mesmo objetivo, esperar que Calista ficasse bem.

Eu finalmente percebi que o mundo não era tão preto e branco quanto eu pensava. Não era só sobre ganhar ou perder, sobre ser o melhor ou provar algo para os outros. Existiam coisas que importavam mais. Pessoas que importavam mais.

E Calista era uma dessas pessoas. Ela era a pessoa.

Eu engoli em seco, sentindo um nó na garganta que não desaparecia. Meus olhos ardiam, mas eu recusei a chorar de novo. Eu não podia desabar mais.

O carro fez uma curva, e eu ouvi Samantha soltar um suspiro baixo, quase como se quisesse aliviar a tensão no ar. Ela olhou para mim pelo retrovisor novamente, mas eu não desviei o olhar da janela.

— Ela vai ficar bem. — A voz dela era suave, hesitante, como se tivesse medo de me provocar.

Eu não respondi. Não porque não quisesse, mas porque não conseguia. Minha mente estava em outro lugar.

Kenny soltou um suspiro pesado, finalmente quebrando o silêncio.

— Ela nunca deveria ter estado lá.

A amargura na voz dele era como uma faca, e eu sabia que ele estava falando comigo, mesmo que não me olhasse.

— Kenny... — Daniel tentou intervir, mas ele continuou.

— Se você não tivesse perdido o controle...

Eu virei a cabeça para ele, finalmente tirando os olhos da janela. O olhar dele estava cheio de raiva, cheio de dor.

— Eu sei. — Minha voz saiu baixa, mas firme.

Kenny franziu o cenho, como se não esperasse que eu admitisse isso. Ele abriu a boca para falar mais alguma coisa, mas então desistiu, voltando a olhar para a janela.

O silêncio voltou, mas agora era ainda mais pesado.

Eu me afundei no banco, apertando os punhos com mais força. A culpa estava me consumindo. Cada palavra de Kenny só reafirmava o que eu já sabia, tudo isso era minha culpa.

Se eu tivesse sido mais racional. Se eu tivesse deixado a raiva de lado. Se eu tivesse...
Mas não adiantava. Não existiam "ses" agora.

Eu fechei os olhos, tentando afastar os pensamentos, mas tudo o que eu via era o rosto de Calista. O sorriso dela. O jeito como ela me olhava quando dizia algo sarcástico. O som da risada dela, que parecia iluminar qualquer ambiente.

E agora, eu não sabia se ouviria isso de novo.

Eu só sabia de uma coisa, se ela saísse dessa, eu faria tudo diferente.

Por ela. Por nós.

O caminho até o hospital parecia interminável, mesmo que na realidade não fosse tão longo. O silêncio dentro do carro estava tão espesso que parecia algo tangível, algo que poderia ser cortado com uma faca. Meu peito estava apertado, a ansiedade crescendo a cada esquina que virávamos. Cada segundo que passava sem que eu soubesse como Calista estava era um tormento.

Quando o carro finalmente parou em frente ao hospital, eu não esperei por ninguém. Mal ouvi Samantha ou Kenny me chamarem, se é que chamaram. Eu simplesmente abri a porta e corri. Meus pés pareciam mover-se sozinhos, guiados pela urgência de vê-la, de ter alguma garantia de que ela estava viva e bem. Eu precisava vê-la.

Cheguei até o balcão da recepção, o coração martelando no peito como se fosse explodir. Uma recepcionista de expressão cansada me olhou com indiferença enquanto eu me apoiava no balcão, ofegante.

— Calista Silver. Onde ela está? — Minha voz estava mais dura do que eu esperava, carregada de urgência e desespero.

A mulher olhou para mim com um misto de cansaço e paciência forçada, começando a digitar no computador com uma lentidão que me fez sentir como se estivesse prestes a explodir.

— Vou verificar para você, senhor. Só um momento.

Só um momento? Eu não tinha  a droga de um momento.

— Eu quero vê-la agora! — Minha voz ecoou pela recepção, fazendo algumas pessoas olharem. Eu bati no balcão com a palma da mão, incapaz de conter a raiva que fervia dentro de mim. — Ela está aqui, não está? Me diga onde ela está!

Foi então que ouvi uma voz familiar atrás de mim, baixa e carregada de um cansaço diferente do da recepcionista. Era Zara.

— Você não pode vê-la agora, Kwon.

Virei-me para ela, o sangue fervendo. Estava pronto para brigar, para despejar nela toda a frustração e a culpa que estavam me consumindo, mas Zara não parecia disposta a recuar. Ela cruzou os braços e me olhou com uma firmeza que não deixava espaço para discussão.

— Ela está na UTI, Kwon. — As palavras saíram de sua boca com um peso que me atingiu como um soco no estômago. — Está passando por uma série de exames. Talvez tenha que ficar internada por um tempo.

Por um segundo, tudo ao meu redor pareceu ficar em silêncio. O som das vozes, dos passos, do telefone tocando na recepção... Tudo desapareceu, exceto as palavras de Zara.

— Como assim? — Minha voz saiu quase como uma risada de incredulidade. — Você tá me dizendo que...

— Que ela bateu forte com a cabeça, Kwon. — Zara me interrompeu, o tom dela mais baixo, mas igualmente pesado. — Estão verificando se houve algum dano mais sério. Ela está sendo monitorada.

Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Era como se as palavras dela fossem de um idioma que eu não compreendia. Calista. Internada. Dano sério. Nada disso fazia sentido na minha cabeça.

Zara analisou meu rosto por um momento, como se tentasse medir a profundidade do meu desespero. Então ela fez um gesto com a cabeça, indicando dois bancos de metal próximos a um corredor.

— O quarto dela é ali. — Ela apontou para uma porta fechada mais adiante. — Mas ainda não podemos entrar. Senta comigo. Vamos esperar.

Eu hesitei por um momento, ainda tomado pela raiva e pelo desespero. Queria correr para aquela porta, arrombá-la se fosse necessário, só para vê-la. Mas algo no tom de Zara, no cansaço nos olhos dela, me fez recuar. Ela também estava machucada, mesmo que de outra forma.

Caminhei até os bancos e me sentei ao lado dela, sentindo minhas pernas tremerem levemente. Apoiei os cotovelos nos joelhos e enterrei o rosto nas mãos, tentando controlar a enxurrada de emoções que parecia me consumir.

Zara permaneceu em silêncio por alguns instantes, mas eu podia sentir os olhos dela em mim.

— Kwon. — A voz dela era mais suave agora, quase um sussurro. — Você precisa respirar.

— Como eu vou respirar? — Respondi, minha voz abafada pelas mãos. — Ela está lá dentro, e eu... Eu não posso fazer nada.

Zara suspirou, mas não disse nada. Talvez porque ela também soubesse que não havia palavras que pudessem consertar aquilo.

A cada segundo que passava, minha mente voltava para aquele momento no tatame. A faca, o sangue, o som do corpo dela caindo. Era como um pesadelo que se repetia em loop. E eu não sabia como sair dele.

O silêncio entre mim e Zara era denso, como se uma barreira invisível tivesse se erguido entre nós. Nós nunca fomos amigos. Para falar a verdade, ela me odiava, e eu sabia disso. Parte de mim entendia. Eu era o problema na vida da Calista, o cara que insistia em estar perto dela, mesmo quando parecia que só piorava tudo. Mesmo quando, de um jeito ou de outro, eu acabava machucando ela. Mas ainda assim, eu não esperava o que aconteceu em seguida.

— Obrigada.

Eu levantei o rosto, encarando Zara com uma expressão de puro choque. Eu devo ter piscado umas três vezes, tentando processar o que ela tinha acabado de dizer. Agradecendo? Ela? Pra mim?

— Do quê... Você está falando? — Minha voz saiu mais ríspida do que eu pretendia, quase como se eu estivesse esperando que ela explicasse logo que aquilo era algum tipo de engano ou provocação.

Zara não me olhou de volta. Ela estava com o olhar fixo no corredor à frente, como se estivesse esperando que um médico surgisse a qualquer instante com boas notícias. Mas a forma como ela apertava as mãos contra os joelhos entregava o nervosismo dela.

— Calista me contou. — O tom dela era direto, quase cortante. — Sobre as fotos. E sobre o que aqueles caras estavam dizendo. Sobre ela. Sobre mim. E como você deu um jeito naquilo.

Fiquei paralisado por um momento, as palavras dela ecoando na minha cabeça. Ah. Então era isso.

Eu desviei o olhar, fixando-o no chão, e dei uma risada curta, sem humor, quase amarga. Aquilo foi um dos piores momentos para Calista. Eu lembro dela tentando esconder o impacto, fingindo que era mais forte do que realmente estava. Só de pensar no que poderia ter acontecido se eu não tivesse me metido...

— Bom, eu só fiz o que qualquer cara decente faria. — Respondi com um tom levemente sarcástico, quase como um reflexo automático, uma tentativa inútil de aliviar o peso na minha mente. Mas o sarcasmo parecia deslocado, sem força. — Não sou exatamente um cavaleiro de armadura brilhante, sabe? Mais como... Um cara com um taco de beisebol e muita raiva.

Ela soltou um suspiro, mas não riu. Nem mesmo sorriu. O ambiente ainda estava tenso, e eu podia sentir o olhar dela queimando de lado, mesmo que ela não estivesse diretamente me encarando.

— De qualquer forma... Obrigada. — A voz dela saiu mais suave dessa vez, mas ainda sem olhar para mim. Havia algo estranho na forma como ela dizia isso, como se odiasse admitir que eu tinha feito algo certo. Mas, ao mesmo tempo, parecia sincera.

Eu não sabia o que responder. Eu deveria agradecer de volta? Fazer outra piada? Dizer que foi "nada"? Nenhuma dessas opções parecia apropriada, então só fiquei em silêncio, olhando para minhas próprias mãos.

O que eu poderia dizer? Que eu também estava desesperado? Que o medo de perder Calista estava me esmagando? Que eu mal conseguia respirar com toda essa culpa?

Olhando de relance para Zara, dava para ver que ela estava tão perdida quanto eu. A respiração dela era curta, irregular, como se ela estivesse tentando se manter no controle, mas falhando. Ela não parava de olhar pelos lados, como se esperasse que um médico surgisse a qualquer segundo. O corredor parecia eterno. O tic-tac de um relógio distante ecoava, mas o tempo parecia parado.

Zara soltou outro suspiro, dessa vez mais profundo, e apertou as mãos contra os joelhos. Ela estava tão nervosa quanto eu, mas tentava esconder isso com uma fachada de força. Uma fachada que eu conseguia ver por trás, talvez porque a minha própria estivesse começando a rachar.

Por fim, olhei de volta para ela, a voz saindo mais baixa do que eu esperava.

— Você acha que ela vai ficar bem?

Ela finalmente virou o rosto para mim. Os olhos dela estavam vermelhos, provavelmente de chorar, mas ainda havia uma determinação neles. Eu estava hesitante com a pergunta, mas em minha mente só havia confusão, então pensei que de alguma forma ela pudesse ter a resposta para aquilo que está me matando por dentro.

— Ela é a garota mais forte que eu conheço. — Zara respondeu, e havia algo no tom dela que soava quase como um aviso. — Ela vai ficar bem. Ela tem que ficar.

Eu queria acreditar nisso. Mais do que qualquer coisa, eu queria acreditar. Mas, sentado naquele banco, olhando para a porta fechada que nos separava da UTI, tudo parecia tão... Incerto.

O médico apareceu no corredor, vestido em seu uniforme branco e com um olhar calmo que parecia contrastar com a tensão esmagadora ao nosso redor. Tanto eu quanto Zara nos levantamos quase no mesmo instante, como se tivéssemos recebido um choque de energia. Meu coração disparava, e cada passo do médico em nossa direção parecia ecoar como um trovão.

Zara foi a primeira a falar, a voz dela saindo rápida e ansiosa.

— Como ela está? Ela vai ficar bem?

O médico ergueu a mão em um gesto para acalmá-la antes de responder, o tom controlado e profissional.

— Ela já pode receber visitas.

Meu peito se apertou, aliviado por um segundo, mas o que ele disse a seguir me fez congelar.

— Ela sofreu uma concussão forte na cabeça. Vai precisar de repouso absoluto e de tratamento nos próximos dias. Ficará no hospital sob observação por um tempo. Mas... Deve ficar bem.

"Deve." Aquela palavra ficou martelando na minha cabeça. Deve. Não havia nenhuma certeza absoluta, nenhum conforto sólido naquilo. Mas antes que eu pudesse abrir a boca, o médico continuou.

— Porém, existe um sério risco de sequelas.

Era como se o chão tivesse sido arrancado debaixo de mim. Minha visão ficou turva, minha mente acelerando em espirais descontroladas. Zara também pareceu afetada, mas tentou manter o controle. Ela estava claramente lutando para não perder a compostura. Eu, por outro lado, não consegui segurar.

— Que tipo de sequelas? — Minha voz saiu mais alta e ríspida do que eu pretendia, mas o pânico era impossível de esconder.

O médico manteve o tom neutro, embora um pouco mais cuidadoso, como se soubesse que aquilo não seria fácil de ouvir.

— Traumas desse tipo podem causar dificuldades cognitivas. — Ele explicou. — Podem incluir perda de memória, seja memória de curto prazo, de movimento ou até de palavras específicas. Existe a possibilidade de esquecimentos recorrentes. Dependerá muito de como o cérebro dela responde ao tratamento e à recuperação.

Era demais. Passei a mão pelo rosto, tentando processar aquelas palavras, mas elas pareciam cortantes como navalhas. Memória. Movimento. Palavras. Tudo o que fazia dela quem ela era. A ideia de que Calista poderia perder algo tão essencial, algo que era tão ela, me esmagava.

Eu ouvi Zara soltando um suspiro pesado ao meu lado, mas não olhei para ela. Minha visão estava fixada no chão, enquanto minha mente tentava desesperadamente se agarrar a qualquer esperança.

— Ela está acordada? — Perguntei, finalmente encontrando minha voz.

— Ainda não. — Respondeu o médico, calmo. — Mas está estável e deve acordar em alguns dias. Ela está no quarto agora, sob monitoramento. Posso levá-los até lá, mas é importante não a sobrecarregar. Uma pessoa por vez.

Eu não perdi tempo.

— Me leve até ela. Agora.

O médico assentiu, começando a caminhar pelo corredor, e eu o segui imediatamente, ignorando qualquer protesto ou olhar de Zara. Eu não tinha tempo para brigas ou discussões. Eu precisava vê-la. Precisava saber que ela estava ali.

Cada passo parecia interminável. O som das solas dos sapatos contra o chão brilhante do hospital era quase ensurdecedor, misturado ao eco distante de vozes e máquinas. Meu coração estava batendo tão rápido que parecia que ia explodir a qualquer momento.

Finalmente, chegamos à porta. O médico parou e olhou para mim, quase como se estivesse me avaliando, antes de abrir a porta lentamente.

O quarto era pequeno e esterilizado, cheio daquele cheiro clínico que todo hospital tinha. E ali, no meio de toda aquela brancura impessoal, estava ela.

Calista.

Ela parecia tão frágil que meu peito doeu ao vê-la. Os curativos em sua cabeça, os monitores piscando ao lado da cama, e o som suave do monitor cardíaco enchendo o quarto. Eu não conseguia tirar os olhos dela.

Eu me aproximei devagar, como se qualquer movimento mais rápido pudesse quebrá-la. Puxei uma cadeira para perto da cama e me sentei, tentando encontrar alguma coisa para dizer, mas as palavras estavam completamente presas na minha garganta.

Estendi a mão para segurar a dela, mas hesitei no último segundo. Eu não queria machucá-la de nenhum jeito. Mas quando finalmente toquei sua mão, ela estava quente, viva. E, por algum motivo, isso foi suficiente para me fazer desabar.

Eu segurei a mão dela com força, apoiando a testa contra nossos dedos entrelaçados.

— Por favor. — Murmurei, minha voz falhando. — Fica bem. Por favor.

As lágrimas vieram sem aviso, escorrendo pelo meu rosto enquanto o peso da culpa, do medo e do amor por ela me esmagava. Eu não sabia como lidar com a ideia de perdê-la, ou mesmo com a ideia de que ela poderia acordar e não ser mais a mesma Calista que eu conhecia.

— Você prometeu, lembra? — Sussurrei, com a voz quebrada. – Você disse que ia ficar tudo bem. Que a gente ia ter "algo com um rótulo". Que isso ia acabar bem. Então, por favor, não quebra sua promessa. Eu não sei o que fazer sem você, e olha, eu achei que fosse odiar admitir isso, mas é a mais pura verdade.

Eu não sabia quanto tempo fiquei ali, segurando a mão dela e deixando o silêncio preencher o espaço entre nós. Tudo o que eu podia fazer era esperar. E orar para que ela voltasse para mim.

O quarto estava imerso em um silêncio pesado, quebrado apenas pelo som rítmico do monitor cardíaco de Calista. Eu ainda estava sentado ao lado da cama, segurando sua mão, sem forças para soltá-la. Cada segundo ali parecia uma eternidade, mas eu me recusava a sair. Ela precisava saber que eu estava ali, mesmo que não pudesse me ouvir.

A porta se abriu devagar, e eu ergui os olhos para ver Zara entrando. Seu rosto estava marcado pelas lágrimas que claramente não tinha conseguido conter desde que tudo aconteceu. Ela hesitou por um momento, como se estivesse ponderando se deveria interromper, mas deu um passo à frente quando viu que eu não iria embora.

— Eu... Posso? — Sua voz saiu hesitante, baixa.

Assenti lentamente, sem conseguir dizer nada. Levantei-me, dando espaço para que ela ficasse ao lado de Calista. Mesmo com todas as diferenças e desentendimentos entre nós, naquele momento, parecia óbvio que ninguém mais no mundo entendia o que estávamos sentindo além de nós dois.

Zara puxou uma cadeira para perto da cama e sentou-se, pegando a mão de Calista com delicadeza, como se ela fosse feita de vidro. Seus olhos ficaram fixos no rosto da amiga por alguns segundos antes de finalmente começar a falar, a voz trêmula.

— Você é uma irmã pra mim, sabia? Sempre foi.

Aquelas palavras pareceram pesar no ar. Eu observei Zara enquanto ela respirava fundo, tentando manter a compostura, mas as lágrimas começaram a escorrer por seu rosto.

— Eu nunca devia ter ficado com raiva de você... Por ter ido pro Cobra Kai. Eu sei que você só queria encontrar um jeito de lidar com tudo, com o Silver, com tudo o que ele fez. E mesmo assim, eu... Eu fechei a cara pra você. Não pensei no quanto você devia estar sofrendo. Só pensei no que eu achava que era certo.

Ela deu um suspiro trêmulo, segurando a mão de Calista com mais força.

— Eu sinto muito, Calizinha. Sinto muito mesmo.

Zara abaixou a cabeça, sua voz embargada enquanto continuava.

— Você sempre foi a mais forte de nós duas. Sempre me inspirou, me deu forças quando eu não tinha mais nenhuma. Mas eu não fiz isso por você quando você precisava. E eu nunca vou me perdoar por isso.

Ela soluçou, levando a mão de Calista até o rosto dela, como se estivesse tentando encontrar conforto naquele simples toque.

— Você precisa ficar bem, tá? Porque eu não sei o que vou fazer sem você. A gente tem tanto ainda pra viver juntas. Tantas coisas que você precisa me contar, tantas brigas pra resolver e besteiras pra rir. Você prometeu, lembra? Que a gente sempre ia estar lá uma pra outra. Então, por favor, não me deixa agora.

Eu senti meu peito apertar mais uma vez. Era doloroso demais ver Zara, sempre tão confiante e determinada, se desfazer daquela maneira. Mas, ao mesmo tempo, era como se eu finalmente estivesse vendo a profundidade do vínculo que as duas compartilhavam.

Zara inclinou-se, despejando um beijo suave na bochecha de Calista. Aquele gesto foi tão cheio de carinho e arrependimento que era impossível não sentir o impacto.

Ela secou as lágrimas com as costas da mão e levantou-se, ajeitando a coberta sobre Calista com cuidado.

— Eu vou voltar amanhã, viu? Vou trazer um daqueles frappuccinos de caramelo que você ama do Starbucks. Aposto que você vai querer tomar um assim que acordar.

Eu fiquei em silêncio enquanto Zara saía do quarto, mas não sem antes olhar para mim por cima do ombro. Seu olhar estava cheio de uma mistura de dor e determinação. Era como se, por mais que ela me odiasse, houvesse algo maior naquele momento que nos unia.

Assim que ela fechou a porta, o silêncio tomou conta novamente. Voltei a sentar ao lado de Calista, pegando sua mão mais uma vez. Por mais que Zara tivesse prometido voltar, por mais que tivéssemos médicos e esperanças, tudo o que eu queria era que ela abrisse os olhos agora. Que me olhasse, sorrisse, me chamasse de "gênio" e dissesse que tudo isso era só um pesadelo ruim.

Mas tudo o que eu podia fazer era esperar. Esperar e torcer para que ela voltasse para nós.

A enfermeira entrou no quarto com passos leves, mas sua presença foi um lembrete brusco da realidade. Ela ajeitou um sorriso profissional, mas seu olhar mostrava compreensão pelo peso da situação.

— Desculpe, mas o horário de visitas acabou. Precisamos que vocês se retirem por enquanto.

Eu olhei para Calista mais uma vez, minha mão ainda segurando a dela. Aquele era o último momento que teria com ela até sabe-se lá quando. Por mais que quisesse ficar, sabia que não tinha escolha. Minha garganta apertou, e eu senti as emoções se acumulando, ameaçando transbordar.

Apertei a mão dela suavemente antes de soltá-la.

— Eu volto amanhã, Dinamite. Prometo. Fica bem até lá, tá me ouvindo?

Minha voz saiu baixa, quase como um sussurro. Era como se as palavras fossem para ela, mesmo que não pudesse me ouvir. Eu me levantei devagar, minhas pernas parecendo de chumbo enquanto me afastava da cama. Cada passo era mais difícil que o anterior.

Zara já estava esperando perto da porta, o rosto ainda marcado pelas lágrimas. Ela também lançou um último olhar para Calista antes de sair comigo. Assim que passamos pela porta, o silêncio do corredor me atingiu como um golpe. Tudo parecia mais pesado fora daquele quarto.

Lá fora, à entrada do hospital, o ar frio da noite foi um choque contra minha pele quente. Mas não era suficiente para clarear minha mente ou aliviar a pressão no meu peito. Alguns rostos familiares estavam reunidos perto das escadas. Tory e Yoon estavam lá, e ao me verem, caminharam em nossa direção imediatamente.

— Kwon! — Tory chamou, seu tom preocupado. — Como ela está? Ela... Está bem?

Parei, respirando fundo antes de responder. Não queria que minha voz tremesse.

— Ela... Vai ficar na UTI por enquanto. Teve uma concussão forte. Os médicos disseram que ela vai precisar de repouso e tratamento.

Yoon arregalou os olhos, o choque evidente em seu rosto.

— Mas... Isso é sério? Tipo, ela vai perder os movimentos? Ou não vai conseguir andar? Se isso acontecer, ela não vai mais...

Ele não terminou a frase, mas eu sabia exatamente o que ele queria dizer. Minha mandíbula apertou, e antes que pudesse responder, Tory interveio, colocando uma mão no ombro de Yoon.

— Para com isso, Yoon. Não vamos pensar no pior. Ela vai ficar bem, tá? É a Calista. Ela sabe ser tão forte quanto qualquer um aqui.

Sua voz era firme, mas havia uma hesitação nela que denunciava seu próprio medo. Eu sabia que Tory estava tentando ser positiva, mas tudo aquilo era demais para mim.

— A gente podia aliviar o clima comendo alguma coisa... — Tory iniciou, após um suspiro profundo — Tem uma lanchonete que fica perto daqui.

— Eu... Só quero ficar sozinho. – Minha voz saiu baixa, mas carregada de exaustão.

Tory me olhou, surpresa, mas não insistiu.

– Tudo bem. Se precisar de alguma coisa no hospital... Qualquer coisa, só avisa a gente, tá legal?

Fiz um leve aceno com a cabeça e peguei meu telefone, chamando um táxi. Enquanto esperava, fiquei de pé na calçada, sentindo o peso de todos os olhares em mim. Ninguém dizia nada, mas o silêncio era tão alto quanto um grito. Eles sabiam que eu estava desmoronando, mas ninguém sabia como lidar com isso.

Quando o táxi chegou, subi sem olhar para trás. Eu não podia lidar com a compaixão nos rostos deles ou com as palavras de conforto que eu sabia que eram vazias. Tudo o que queria era escapar, mesmo que fosse apenas para me perder em meus próprios pensamentos sombrios.

Enquanto o carro se afastava, o hospital ficou para trás, mas a sensação de vazio não diminuiu. Calista ainda estava lá, sozinha, e tudo o que eu podia fazer era esperar.

O caminho até o hotel foi um turbilhão de pensamentos. Eu não conseguia afastar a ideia de Silver. Ele estava no hospital? Ou havia fugido como o covarde que era? A lembrança de sua expressão assombrada quando Calista caiu no chão me assombrava, mas não era suficiente para aliviar minha raiva. Se ele fosse mesmo da família dela, deveria estar ao lado dela agora, segurando sua mão, pedindo desculpas, fazendo algo além de tratar tudo como um jogo.

Mas, claro, Silver sempre via tudo como estratégia, como se as pessoas fossem peças de xadrez. E Calista era só mais uma peça para ele, descartável. Essa ideia queimava meu peito, alimentando uma raiva que parecia impossível de controlar.

O táxi parou em frente ao hotel. Paguei ao motorista e saí, ainda preso nos meus próprios pensamentos, sentindo como se meu corpo se movesse no automático. O saguão estava silencioso, quase vazio, exceto por alguns poucos funcionários. Subi as escadas com passos pesados, dirigindo-me ao meu quarto, mas antes de chegar lá, ouvi uma voz conhecida.

— Kwon.

Parei imediatamente, meu corpo ficando tenso. Respirei fundo, tentando me preparar para o que viria, antes de me virar. Era Axel. Ele estava encostado na parede do corredor, as mãos nos bolsos, o rosto cansado e um pouco abatido, mas ainda havia aquele brilho nos olhos dele, como se estivesse analisando cada movimento meu.

— O que você quer? — Perguntei, minha voz carregada de irritação.

Axel levantou as mãos, como se estivesse mostrando que não trazia ameaças.

— Não estou aqui para brigar. — Ele deu alguns passos em minha direção, parando a uma distância segura. — Quero uma trégua. Por ela. Pelo que aconteceu hoje.

Minha mandíbula apertou, o sangue fervendo com as palavras dele. Uma trégua? Agora? Depois de tudo?

— Que ótimo. Uma trégua. — Minha voz estava cheia de sarcasmo. — Mas deixa eu te dizer uma coisa, Axel. Isso aqui... — Apontei para o espaço entre nós. — Entre a gente... Isso ainda não está nem perto de resolvido.

Axel suspirou, cruzando os braços.

— Eu sei. Não espero que esteja. Mas, pelo menos agora, podemos fingir que não queremos nos matar.

A forma casual como ele disse aquilo só aumentou minha irritação. Dei um passo à frente, minha voz saindo mais firme e carregada de raiva.

— Você acha que é só isso? Fingir que está tudo bem até a poeira baixar? Não, Axel. Eu ainda quero te ver sentir dor. Quero que você saiba como é ter alguém com quem você se importa se machucando por sua causa. Quero que sinta isso na pele.

Ele não respondeu de imediato, mas seu olhar ficou mais sombrio, como se minhas palavras tivessem acertado algo dentro dele.

— Acha que não estou sentindo isso agora? Acha que não estou me culpando por cada segundo disso? Ela caiu tentando impedir a gente. Tentando salvar a gente da nossa própria estupidez. E olha onde isso a deixou.

Por um momento, o corredor ficou em silêncio, exceto pelo som da minha respiração pesada. Axel parecia tão perdido quanto eu, mas isso não apagava a raiva que eu sentia. Eu estava prestes a responder, mas ele continuou.

— Eu não estou pedindo desculpas, Kwon. Não espero que você me perdoe. Mas estou tentando, pelo menos por agora, fazer a coisa certa por ela. Então, se não pode aceitar uma trégua, só fique longe de mim. Porque a última coisa que ela precisa agora é mais briga.

Ele deu meia-volta e começou a se afastar, mas parou e olhou por cima do ombro.

— E se quiser mesmo que ela melhore... Talvez comece com você mesmo. Ela não precisa de mais alguém se afundando em culpa. Ela precisa de alguém que a levante. Pense nisso.

Fiquei parado ali, minhas mãos fechadas em punhos, enquanto ele desaparecia no corredor. As palavras dele ecoavam na minha mente, me irritando mais do que deveriam, porque parte de mim sabia que ele tinha razão.

Mas isso não diminuía a raiva. Não apagava o desejo de vingança que fervia dentro de mim. Eu ainda queria que ele pagasse. Eu ainda queria fazê-lo sentir dor.

O caminho até meu quarto parecia um corredor interminável. As palavras de Axel ressoavam na minha cabeça como um tambor incessante, misturadas com o som abafado dos meus próprios passos. "Talvez comece com você mesmo." Ele não tinha ideia de como isso cortava fundo, porque ele estava certo, e eu odiava admitir isso.

A raiva queimava em cada músculo do meu corpo. Raiva de Axel, de Silver, de Kreese... E de mim mesmo. Era como uma tempestade dentro de mim, cada pensamento me empurrando ainda mais para o fundo. Eles diziam que devíamos ser cruéis, que devíamos esmagar nossos inimigos sem compaixão, que a vitória era tudo.

"Sem compaixão."

As palavras de Kreese eram um mantra, gravadas na minha mente desde o primeiro dia no Cobra Kai. Ele pregava isso como se fosse a única verdade que importava. "O mundo não terá compaixão por você, garoto. Então, por que deveria demonstrar compaixão por ele?"

E depois vinha meu pai. Suas palavras eram mais cortantes que qualquer golpe que já recebi. "Fraqueza é derrota, Kwon. E derrota não tem lugar nessa casa." Lembro-me de ouvir isso enquanto ainda estava no chão do dojô, meu corpo moído de tanto treinar, mas sem coragem de mostrar dor. Porque mostrar dor era inadmissível. Era isso que ele dizia.

Fechei a porta do quarto atrás de mim com um estrondo, largando a mochila no chão sem cuidado algum. Aquela raiva ainda estava lá, borbulhando sob minha pele, mas agora se misturava com algo ainda mais pesado, a culpa.

Eu olhei para as minhas mãos, ainda tremendo levemente, como se o peso delas fosse demais. E, em um instante, era como se eu visse de novo, o sangue. Não era meu, mas parecia estar marcado na minha pele, uma lembrança cruel do que aconteceu.

"Você é o culpado." Essa voz soava como a do meu pai, mas eu sabia que vinha de dentro de mim.

Eu me sentei na beira da cama, enterrando o rosto nas mãos. Nunca imaginei que poderia me sentir assim. A dor que meu pai dizia ser necessária, aquela que eu sentia diariamente dentro da própria casa, não parecia nada comparada ao que eu sentia agora. Aquela dor era física, superficial. Essa... Essa era algo muito mais profundo, algo que me consumia por dentro.

Calista.

Ela pagou o preço por tudo isso. Por meu orgulho, minha obsessão, minha raiva. Todos eles disseram que não haveria espaço para fraqueza. Mas não era fraqueza querer protegê-la. Não era fraqueza se importar. Então por que parecia que eu tinha falhado em tudo?

Fechei os olhos, tentando afastar as memórias, mas elas voltavam com força total. O som abafado dos gritos, o olhar de pânico de Zara, o corpo imóvel de Calista no chão. Era como se tudo estivesse gravado em minha mente, incapaz de ser apagado.

Eu sabia que havia ido longe demais. Muito além do que deveria. Essa ideia de vitória a qualquer custo, de ser o mais forte, o mais cruel, me levou até aqui. E agora eu entendia o preço. A vitória não significava nada se, no processo, eu perdesse tudo que realmente importava.

Apoiei os cotovelos nos joelhos e passei as mãos pelo rosto. Minha respiração estava pesada, os pensamentos me sufocando. Tudo o que eu queria era poder voltar no tempo, só para mudar o que aconteceu. Para não deixar que meu orgulho me guiasse até este ponto.

Mas o tempo não voltava, e eu precisava viver com isso. Com o que fiz. Com o que ela pagou por mim.

"Ela vai ficar bem", disse uma voz dentro de mim. Quase parecia um sussurro, como se fosse a única esperança que ainda restava. Mas e se ela não ficar?

Essa dúvida era como um punhal, girando cada vez que eu tentava acreditar no contrário. Engoli em seco, encarando o teto do quarto, enquanto as palavras do médico voltavam à minha mente.

"Sequelas."

E, de repente, o que mais ecoava na minha cabeça não era Silver, nem Kreese, nem meu pai. Era a voz dela. Calista. A lembrança dela rindo, debochando de mim, falando sobre "algo com um rótulo." Aquela ideia, tão simples e esperançosa, agora parecia algo tão distante que meu peito doía.

Deitei na cama sem nem tirar os sapatos, olhando para o teto. O vazio parecia maior do que nunca. Não era apenas raiva. Era arrependimento. E essa dor... Essa era muito pior do que qualquer derrota que eu já experimentei.

⋆౨˚ ˖

O dojô do Cobra Kai estava mais silencioso do que nunca naquela manhã. A energia tensa no ar era quase palpável enquanto todos se preparavam para o que viria. Quando entrei, meu corpo ainda estava cansado, a mente mais ainda. Cada passo parecia pesado, como se fosse um lembrete do que aconteceu na noite anterior.

Sensei Kim estava no centro do dojô, impecável como sempre, a postura rígida e o olhar severo. Seus olhos passaram por cada um de nós, analisando, pesando nossas expressões como se procurasse alguma fraqueza. Ela não era como Kreese ou Silver. Havia algo no jeito dela que fazia até mesmo os alunos mais confiantes ficarem em silêncio absoluto.

— Hoje, nós começamos de novo. — A voz dela cortou o ar como uma lâmina, fria e precisa. Todos se alinharam instantaneamente, as costas retas, os olhares atentos. — Vocês acham que o torneio acabou? Acham que a confusão de ontem encerrou o Sekai Taikai? Estão errados. O Comitê decidiu, por unanimidade, que haverá uma continuidade.

A sala inteira murmurou por um breve segundo, mas o olhar afiado de Sensei Kim cortou qualquer tentativa de conversa.

— As semifinais serão realizadas no All Valley, um palco que carrega uma história significativa. — Ela deu alguns passos à frente, sua voz ficando mais firme. — A decisão foi estratégica. Esse é o lugar onde grandes campeões foram moldados, onde os melhores competidores desta geração lutaram. Agora, vocês terão a chance de escrever seus próprios nomes nessa história.

Eu podia sentir as palavras dela penetrando cada um de nós. Mesmo exausto, a ideia de continuar competindo trouxe um misto de alívio e apreensão. Era outra chance, mas ao mesmo tempo, o peso disso parecia maior do que nunca.

— Quatro equipes lutarão. — Ela ergueu quatro dedos, o olhar passeando por nós. — A equipe da Espanha, os Iron Dragons, o Miyagi-Do e... Nós. Cobra Kai.

O nome do Miyagi-Do soou como um lembrete amargo. Eram eles que eu deveria vencer. Eles eram os inimigos. Ou pelo menos, era o que eu havia aprendido durante todo o tempo que estive ali. Mas agora, com tudo o que aconteceu, a vitória parecia quase insignificante.

— Isso não é apenas sobre ganhar. — A voz de Sensei Kim interrompeu meus pensamentos, e eu percebi que ela estava olhando diretamente para mim. — Isso é sobre provar quem vocês são. O Cobra Kai está sob os olhos do mundo agora, e vocês vão mostrar a eles o que significa ser invencível.

As palavras dela ecoaram pela sala, mas eu sabia que o peso delas era maior para mim. Eu não me sentia invencível. Não depois do que aconteceu.

Kreese não estava ali. Ele estava lidando com a polícia, respondendo sobre a arma branca que havia sido encontrada em sua posse dentro de um torneio repleto de jovens. Era estranho pensar nisso, mas, pela primeira vez, ele parecia estar tentando fazer a coisa certa. Ou pelo menos, protegendo os alunos de levar a culpa pelo que aconteceu. Eu deveria estar aliviado, mas não estava.

Eu queria levar a culpa. Eu sentia que merecia.

— O treinamento começa agora. — Sensei Kim não deu espaço para mais reflexões. O treinamento começou com intensidade, cada golpe, cada bloqueio exigindo toda a nossa concentração.

Enquanto eu me movia no tatame, não podia deixar de pensar na noite anterior. Na raiva que ainda fervilhava dentro de mim. Nas palavras de Axel, no olhar de Zara, na imagem de Calista desacordada no chão. Cada golpe que eu desferia parecia carregado de algo além de técnica, era raiva, culpa, desespero.

E, ao mesmo tempo, havia algo mais. Um tipo estranho de clareza. A percepção de que toda a mentalidade que eu havia abraçado até agora me trouxe até aqui, ao fundo do poço.

O treinamento continuou, mas a tensão era palpável. Os outros alunos estavam cientes de que algo grande havia mudado. O Cobra Kai não era mais invencível aos olhos do mundo. O torneio não havia acabado, e agora tínhamos mais uma chance. Mas a que custo?

O All Valley seria o palco de tudo isso. Outro campo de batalha. Outra oportunidade de vencer. Mas, pela primeira vez, eu me perguntei se vencer era realmente o que eu queria.

E essa dúvida... Era a coisa mais assustadora de todas.

Os movimentos no tatame eram automáticos, quase mecânicos. Meus punhos se fechavam e abriam, os golpes saíam com precisão, mas sem alma. Cada chute, cada bloqueio parecia acontecer em piloto automático, enquanto minha mente era invadida pela imagem de Calista.

Eu me lembrava das nossas conversas, das promessas que fizemos. Seríamos invencíveis juntos. A ideia de que ela estaria ao meu lado no torneio, na mesma equipe, parecia tão sólida há pouco tempo. Agora, era apenas um borrão doloroso, uma lembrança que doía mais do que qualquer golpe que já recebi.

Minha mente traía minha concentração. Via o sorriso de Calista quando ela falava sobre vencer, sobre como seria incrível derrotar o Miyagi-Do, provar a todos que o Cobra Kai era mais forte. Lembrei-me do jeito que ela me olhava, com uma confiança que fazia parecer que nada poderia dar errado.

Mas deu errado. Tudo deu errado.

Olhei para Sensei Kim enquanto treinávamos. Ela parecia inabalável, a postura rígida, os olhos frios, como se o que aconteceu ontem não tivesse abalado a estrutura que ela construiu. Mas, observando mais de perto, percebi algo. Havia algo diferente em seu olhar. Era sutil, quase imperceptível, mas estava lá, um peso. Uma sombra.

Ela não podia estar imune ao que aconteceu. Mesmo com toda sua rigidez, com toda a sua filosofia de força absoluta, aquilo mexeu com ela. Não podia não ter mexido. Calista era parte do Cobra Kai, parte da equipe. Talvez ela não estivesse no dojô há tanto tempo quanto os outros, mas era uma de nós.

A ideia de que isso poderia ter acontecido com qualquer outro, ou até mesmo comigo, cruzou minha mente. Era um lembrete cruel de como estávamos jogando em uma arena perigosa, onde a linha entre vitória e tragédia era muito mais fina do que eu imaginava.

Voltei ao treino, tentando me focar, mas as palavras de Sensei Kim sobre o All Valley pareciam ecoar junto com minhas próprias esperanças. Duas semanas. Era tudo o que tínhamos. Duas semanas para as coisas mudarem. Para Calista melhorar. Para ela estar ao meu lado, como sempre sonhamos.

A ideia de competir sem ela era insuportável. O Sekai Taikai, o All Valley... Nada disso significaria algo se ela não estivesse lá. Eu precisava acreditar que ela se recuperaria. Que as palavras do médico sobre sequelas não seriam definitivas. Que tudo começaria a se alinhar.

Enquanto executava os movimentos exigidos no treino, visualizava nós dois no torneio. Ela, com aquele sorriso confiante, vibrando com cada vitória. Eu, ao lado dela, como prometemos. Lado a lado, invencíveis.

Mas a dor no meu peito não diminuía. Não era apenas o medo de não tê-la lá. Era a culpa, a culpa de saber que talvez eu fosse o motivo de tudo isso. O motivo pelo qual aquele sonho poderia nunca se realizar.

Mesmo assim, no fundo, ainda havia uma fagulha de esperança. Pequena, mas teimosa. Duas semanas podiam mudar muita coisa. Talvez, apenas talvez, o universo nos desse uma chance de acertar as coisas.

E, no torneio decisivo das nossas vidas, eu queria ela ali. Ao meu lado. Como deveria ser. Como eu sempre quis que fosse.

O som dos passos ecoava pelo dojô vazio enquanto eu permanecia em silêncio, observando os outros alunos saírem. Sensei Kim havia me chamado, e isso já era o suficiente para prender minha atenção. Apesar de tudo o que aconteceu, eu ainda a respeitava. Ela não era como Kreese, que usava o medo e a manipulação para se impor. Ela era rígida, exigente, mas não desumana.

Fiquei de pé, a postura comportada, esperando que ela falasse. Seus olhos, sempre tão frios e calculistas, carregavam um peso que eu não conseguia decifrar. Então, ela me pegou de surpresa.

— Como ela está? — Perguntou, com o mesmo tom firme de sempre, mas algo sutilmente diferente.

Franzi o cenho, confuso.

— Está falando da Calista?

Sensei Kim revirou os olhos de maneira quase imperceptível, como se minha pergunta tivesse sido desnecessária.

— Claro que estou falando dela. Responda, Kwon.

Engoli seco. Não esperava isso dela, uma demonstração de interesse, mesmo que fosse mínima. Respirei fundo e expliquei, quase engasgando com as palavras:

— Ela está estável, mas... Ainda precisa de tempo. Sofreu uma concussão forte, e o médico disse que pode haver sequelas. Nada confirmado, mas... — Minha voz falhou por um instante. Eu não conseguia encarar os olhos dela por muito tempo, como se aquilo fosse admitir ainda mais a gravidade da situação.

Sensei Kim deu um suspiro longo, carregado de frustração. Sua expressão endureceu ainda mais, mas eu percebi o tensionar de seus ombros, um gesto que entregava algo além da fachada inabalável.

— Você vai me acompanhar até o hospital amanhã. Quero ver como ela está pessoalmente. — Anunciou, sua voz cortante como sempre, mas havia algo no tom... Uma sombra de preocupação escondida entre as palavras.

Eu pisquei, surpreso.

— Quer... Quer ir ao hospital?

Ela estreitou os olhos.

— Sim. Não repita o óbvio.

Pensei em protestar, mas percebi que não havia por que fazê-lo. Kim era inflexível, mas o que mais me surpreendeu foi o que ela disse em seguida:

— Espero que ela possa voltar a tempo para o torneio. Não apenas porque ela mantém a equipe mais forte, mas porque ela mantém você mais forte.

Fiquei estático por um momento, desconcertado. Aquelas palavras eram como um golpe que eu não esperava. Ela estava certa, e eu sabia disso. Calista não era apenas uma lutadora incrível, ela havia se tornado meu pilar, a única calmaria em meio à tempestade constante que minha vida se tornou.

Kim não era do tipo que fazia discursos sentimentais. Seu tom continuava frio, mas suas palavras carregavam um peso sincero que eu não podia ignorar.

— Você a quer de volta no tatame. Eu também. Certifique-se de que ela saiba disso — Finalizou, gesticulando com a mão para me dispensar.

Eu apenas assenti, ainda tentando processar o que ela havia dito. Enquanto saía, sentia o impacto das palavras dela reverberando dentro de mim. Calista não era só uma companheira de equipe. Ela era mais do que isso.

E, no fundo, eu sabia que precisava lutar não apenas por mim, mas por ela. Por nós dois.

Enquanto caminhava lentamente até o ponto de ônibus, as palavras de Kim ecoavam na minha cabeça, como um mantra difícil de ignorar. "Ela mantém você mais forte." Não havia como negar. Calista tinha se tornado uma parte de mim que eu não sabia que precisava, um equilíbrio que me ancorava mesmo nos momentos mais caóticos.

A brisa noturna era gelada, mas não era o frio que me fazia tremer. Eram os pensamentos. As preocupações. A culpa. Cada passo que eu dava parecia mais pesado que o anterior, como se meus pés estivessem presos a correntes invisíveis.

Eu não conseguia evitar imaginar como Calista reagiria ao saber que tantas pessoas estavam preocupadas com ela. Zara, Tory, Yoon... Até Sensei Kim, com toda sua postura rígida e quase impenetrável, mostrava sinais de preocupação. Era como se, no fundo, ela reconhecesse que Calista não era apenas uma lutadora talentosa, mas alguém essencial para todos ao seu redor.

Será que ela sabia disso? Será que ela entendia o impacto que tinha em nossas vidas?

Quando cheguei ao ponto de ônibus, sentei-me no banco de metal frio, apoiando os cotovelos nos joelhos e as mãos no rosto. O mundo ao meu redor parecia desfocado, as luzes dos postes misturando-se à escuridão como pinceladas borradas em uma tela. O som distante de carros passando era apenas um zumbido de fundo, incapaz de romper a tempestade dentro de mim.

"Amanhã."

Amanhã, eu e Sensei Kim iríamos visitá-la. Kim queria vê-la pessoalmente, e eu... Bem, eu precisava vê-la. Precisava confirmar com meus próprios olhos que ela estava bem, que tudo isso não era o começo de algo pior.

O que eu mais suplicava, enquanto encarava o chão vazio à minha frente, era que ela já tivesse acordado. Sem sequelas. Sem sinais de trauma. Apenas Calista, com o sorriso teimoso que ela sempre usava para desafiar o mundo.

Uma parte de mim sabia que não era tão simples. O médico havia falado sobre possibilidades, memórias apagadas, movimentos prejudicados, lapsos cognitivos. Essas palavras eram como facas cravadas na minha mente, impossíveis de ignorar. E se ela não fosse mais a mesma? E se ela olhasse para mim e não se lembrasse de nada?

Balancei a cabeça, tentando afastar esses pensamentos. Era cedo demais para entrar nessa espiral. Precisava acreditar que ela iria superar isso, como sempre superava tudo.

O ônibus finalmente chegou, os faróis iluminando o ponto como dois olhos brilhantes na escuridão. Entrei e me sentei perto da janela, observando as ruas passarem em um borrão de luzes e sombras.

Tudo o que eu conseguia fazer era esperar. Esperar e acreditar que, quando a manhã chegasse, a Calista que eu conhecia ainda estaria lá, pronta para lutar, não apenas no tatame, mas pela vida que merecia viver. E, se ela precisasse de alguém ao lado dela para enfrentar isso, eu estaria lá. Sempre.

E assim que cheguei no hotel, o lugar parecia mais vazio e escuro do que de costume, como se a presença dela preenchesse o vazio que eu sentia agora, e enquanto andava na direção do corredor, Kenny esbarrou no meu ombro com força, o suficiente para me desequilibrar por um segundo. Meu primeiro instinto foi me virar e revidar, encará-lo com a mesma raiva que ele claramente sentia, mas parei antes que pudesse fazer qualquer coisa.

A imagem de Calista invadiu minha mente como um soco no estômago. O rosto dela pálido, os olhos fechados, o sangue... Tudo aquilo era resultado do meu descontrole, da raiva que me cegou naquele momento. Eu não podia deixar isso acontecer de novo. Não agora.

Respirei fundo, deixando o ar escapar lentamente enquanto me forçava a ignorar a dor latente no meu peito.

— Kenny. — Minha voz saiu mais controlada do que eu esperava, mas ainda assim carregava o peso da situação.

Ele parou abruptamente, virando-se para me encarar com olhos estreitos e fervendo de raiva.

— O que você quer, hm? — Ele disparou, cruzando os braços com força, como se isso fosse uma armadura contra qualquer coisa que eu dissesse.

Eu o encarei por um momento, tentando encontrar as palavras certas. Ele estava pronto para explodir, cada movimento dele deixava isso claro. Mas, por mais que parte de mim quisesse responder na mesma moeda, eu sabia que isso não levaria a nada.

— Podemos conversar? — Perguntei, tentando manter o tom o mais neutro possível, mesmo sentindo a tensão crescer no ar entre nós.

Kenny ficou quieto por alguns segundos, seus olhos fixos em mim como se estivesse tentando decidir se valia a pena sequer me ouvir. Eu podia ver as emoções conflitantes estampadas no rosto dele: raiva, frustração, e algo mais profundo, quase como dor.

Finalmente, ele soltou um suspiro pesado e deu um pequeno aceno com a cabeça.

Caminhamos até o sofá no hall, o som dos nossos passos ecoando no espaço silencioso. Sentei primeiro, tentando manter minha postura relaxada, embora por dentro eu estivesse uma bagunça. Kenny se jogou no assento ao lado, de maneira brusca, cruzando os braços novamente enquanto me lançava um olhar que poderia perfurar aço.

O silêncio entre nós era sufocante, tão denso que parecia encher a sala inteira. Eu sabia que precisava começar a falar, mas as palavras não vinham. Cada frase que eu ensaiava na cabeça soava errada.

Finalmente, respirei fundo mais uma vez, preparando-me para enfrentar o peso daquela conversa.

— Sobre tudo isso... — Comecei, minha voz baixa, mas firme. — Eu sei que você está com raiva. E eu entendo.

Ele me cortou imediatamente, a voz carregada de hostilidade.

— Entende? Você não entende nada.

Eu deixei ele desabafar, me segurando para não responder no mesmo tom. Não era uma briga que eu queria ali. Era algo que precisava ser dito, para ambos.

Kenny começou a despejar sua raiva em mim, as palavras saindo como balas disparadas de uma metralhadora.

— Você foi um idiota desde o começo, Kwon! Desde o momento em que se aproximou dela. Você a machucou, jogou sua raiva nela, e olha onde estamos agora! Se você não tivesse deixado essa droga de raiva te dominar, se não tivesse levado tudo isso para o lado pessoal... Ela não estaria nesse estado!

Eu tentei manter a calma enquanto ele falava, mas a cada palavra, sentia como se ele estivesse arrancando pedaços de mim. A culpa já estava ali, esmagadora, e ouvir tudo aquilo era como sal em uma ferida aberta.

— Se você tivesse simplesmente ficado longe, nada disso teria acontecido! Você só fez isso tudo porque...

Eu não consegui mais me segurar.

— Porque eu amo ela! — Gritei, minha voz ecoando no hall vazio.

Kenny congelou no lugar, os olhos arregalados. Ele ficou imóvel por alguns segundos, como se não tivesse certeza se tinha ouvido direito.

— O quê? — Perguntou, ainda tentando processar.

Senti o peso das palavras que haviam escapado sem controle, mas agora que estavam fora, eu sabia que não podia mais voltar atrás. Suspirei, passando as mãos pelo rosto, tentando organizar os pensamentos que explodiam na minha mente.

— Eu disse que amo ela, Kenny. — Minha voz saiu mais baixa dessa vez, mas com o mesmo peso. — Eu a amo, e só quero que ela fique bem.

O choque ainda estava estampado no rosto dele, mas eu continuei, como se finalmente estivesse deixando sair tudo o que estava preso dentro de mim.

— Eu sei que fui um idiota. Eu sei que a machuquei, e isso me mata todos os dias. Mas eu nunca quis fazer isso. Nunca quis que fosse assim.

Eu engoli em seco, lutando para manter a compostura.

— Desde que conheci Calista, ela virou minha vida de cabeça para baixo. Ela é como... Um furacão. Entrou no meu coração e destruiu tudo o que eu achava que sabia. E eu não sabia como lidar com isso.

Fiz uma pausa, sentindo a garganta apertar, mas continuei.

— Eu ouvi péssimos conselhos, Kenny. De pessoas que eu achava que se importavam, mas que só estavam me manipulando. E eu segui esses conselhos porque achei que era o certo, mas só fiz tudo piorar.

Eu ri, mas sem nenhum humor.

— Se eu pudesse fazer tudo de novo... Eu faria. Porque mesmo com tudo isso, ela foi a melhor coisa que já aconteceu comigo.

Kenny abaixou os braços, o olhar dele mudando lentamente. Ele parecia menos agressivo agora, mais introspectivo. Talvez porque ele soubesse exatamente do que eu estava falando.

— Eu entendo. — Ele suspirou, cruzando os braços novamente, mas sem o mesmo peso de antes. — Silver fez a mesma coisa comigo. Me fez achar que precisava ser cruel pra ser forte. E eu perdi tanto por causa disso.

Ficamos em silêncio por um momento, as palavras pairando no ar entre nós. Era estranho, mas naquele momento, senti que talvez, só talvez, ele entendesse. Que ele soubesse o quanto Calista significava para mim, e o quanto eu estava disposto a fazer para consertar tudo.

Mas o breve silêncio fora quebrado pelo som agudo de seu celular. Ele franziu o cenho, levantando o olhar para mim por um instante, mas não foi capaz de dizer nada, ele apenas se levantou, colocando o celular no ouvido, parecia exasperado.

— Isso é sério? Tudo bem, eu chego em 15 minutos. — Ele desligou o telefone, sua respiração acelerada, e eu não conseguia controlar a ansiedade em meu peito, mesclada à uma curiosidade.

— O que foi? — Perguntei em um tom quase urgente.

— É a Calista — Ele suspirou, um sorriso finalmente surgindo em seus lábios — Ela acordou.


Obra autoral ©

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