VI

Ele estava de joelhos na terra quando percebeu que ninguém olhava para ele. Todo mundo já estava de volta ao trabalho há tempos. Tanto que já estava escurecendo. E assim ele voltou a olhar para a terra vermelha, que escurecia de acordo com sol poente.

Mas de repente ali ficou muito mais escuro, não era só a escuridão. Era a sombra de alguém na sua frente. Ele olhou para cima e viu Zumbi olhando para ele. Seus olhos se encontraram e ele sentiu um medo que passou frio pelo seu corpo.

- Que tipo de salvação é essa que envolve chicotes?

- É o que precisa ser feito. Se eu não fizesse, quem faria? Mais tarde viria, e poderia ser pior - Zumbi respondeu e deu de ombros. - Levante-se, homem.

- Zumbi, escravidão que se vá. Não precisamos disso! - Havia uma tristeza penetrante na sua voz. E continuou sentado, olhando o chão.

- Vamos, levante-se! Eu posso lhe mostrar algo, se quiser.

Por que você se preocuparia comigo? O que eu tenho de diferente desses tantos escravos que você deve ter aqui?

Finalmente se levantou depois de tanto tempo no chão. Incrível como ninguém o houvesse perturbado naquele tempo.

- Mostre-me.

Eles chegaram em uma área vazia, ao lado haviam vários materiais de construção.

- Quem fará isso por vontade própria sem me custar nada? - Zumbi disse, era uma pergunta retórica, mas Osenga abriu a boca para responder:

- Oras, exis... - Foi interrompido por Zumbi.

- Não há ninguém. Agora, venha.

Andaram em silêncio até a fortificação da muralha de madeira. Haviam estacas ali, e muitos tipos de armadilha por lá perto.

- Cuidado onde pisa. - Zumbi avisou enquanto eles chegavam perto da muralha. - Agora, quem faria isso? - Apontou com a cabeça para escravos que vigiavam a muralha e preparavam mais armadilhas. - Nós que estamos aqui, precisamos de alguém para fazer essas coisas por nós.

Osenga achou aquilo meio errado. Olhou para lá e viu escravos negros e brancos, inclusive índios. São nossos irmãos... Ainda viu muitos mortos-vivos carregando as coisas mais pesadas e fazendo as coisas mais fáceis de fazer. Também percebeu que era a primeira vez que viu os mortos desde que chegou no quilombo.

- E o seu discurso? Aquilo tudo era mentira?

- É tudo verdade. Você não vai ter que lutar por sua vida? Sempre foi assim.

Osenga abaixou as sobrancelhas e os olhos. Ele tem mesmo razão? Parecia que sim, ele se sentiu culpado.

- Então é isso? Essa é a desculpa?

Zumbi olhou para Osenga com um ódio camuflado nos olhos.

- Vá ver Zaki, ele deve estar na cabana onde você acordou. Ele lhe dirá o que fazer - e saiu de lá andando, sem nem olhar para trás.

Mas no meio do caminho, parou, e apenas disse, sem olhar para trás:

- Uma guerra está por vir. Voce deve saber disso, além de ser um fato. O que eu posso dizer, é: prepare-se. Em alguma hora, ninguém lutará sua luta por você. Você terá de lutar sozinho. Assim como a maioria de nós.

Osenga franziu o cenho para as costas dele e ficou olhando, contemplativo, sobre como podiam haver tantos músculos nas costas de alguém, e outras coisas. Também olhou para a muralha. Para as armadilhas. Para os mortos-vivos soltos que não atacavam ninguém. Viu alguns cavando buracos do lado de fora - já que a muralha apresentava algumas frestas que liberavam a visão -, posicionando estacas dentro e fora dos buracos. Cobrindo algumas coisas afiadas e pontudas com plantas secas, verdes e um pouco de terra.

Até que só lhe restou voltar para a cabana.

Chegou lá e estava vazia. Sentou-se onde havia acordado e observou a escuridão tomando conta da cabana.

Eu quero você. Lembrou-se da sua esposa. Mas ele sabia, sabia no fundo, que era melhor esquecê-la. Todos provavelmente já esqueceram do que deixaram para trás, parecia uma vida inteira atrás, ou não. Ele não sabia, não conversava com ninguém. Não tinha um amigo para poder falar sobre Zumbi e seus monstros negros e seus escravos, sobre sua mulher do outro lado do oceano.

Mesmo naquele quilombo tão cheio — não sabia como eram os outros, mas esse era incrivelmente grande —, tão cheio de gente e mortos, não havia com quem conversar. Ele se sentia sozinho em meio a multidão. E agora, no escuro... Onde os pensamentos mais demoníacos sobem à pele, à cabeça, giram e rodam, arranham e mordem com força, para doer, para machucar, para levar como uma cicatriz. Os demônios da escuridão atuavam ali dentro e sobre ele. E ele então de novo pensava, tentava se proteger do desespero. Mas veio ele, o sentido oposto ao proposto.

Uma lágrima caiu. E foi quando alguém apareceu no meio do arco:

— Osenga? — disse o recém chegado. Trazia uma voz de alguém experiente e às vezes carrancudo. Com um pouco da luz, pôde ver uma barba e cabelos brancos contrastando contra a pele negra.

Me abrace.

— Sim, sou eu — disse enquanto se levantava da cama improvisada, tentando esconder a lágrima. — Zaki?

— Zumbi me mandou achar algo para você. Eu preciso saber, você luta bem?  Precisamos tanto de guerreiros como de construtores.

— Eu diria que sim, mas não sei se estou na minha melhor forma. Eu treinava antes... — começou a responder quando foi interrompido.

— É por isso que ainda treinamos aqui. Enxugue as lágrimas — como ele viu aquilo? — Também vista aquela calça bem ali — apontou para uma calça branca em meio a outras roupas em cima de uma cama. — E depois siga o som do berimbau para o treino. Não se atrase. Com a noite, temos uma brisa maravilhosa e a luz do caos do fogo e das estrelas. Acostume-se ao caos.

Depois do aviso ele se virou e saiu, passando a mão no arco e virando, andando calmamente.

Osenga arfou e se sentou de novo. Não se importou com aquilo, faria logo mais, não agora. Agora ele só sentia a luta dentro de si. Uma batalha entre anjos e demônios implacáveis.

Ele não se importava até se lembrar dos chicotes. Foi o que o fez vestir a calça e sair para procurar a roda.

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