CAPÍTULO 29 - YURI MARTEL - PARTE 02
Narrado por Yuri Martel
Demorei muito a dormir aquela madrugada. Acordei como de costume 04:30 da manhã, depois fui até o celeiro aonde o Alan me passou uma boa quantidade de notas e anotações de tudo que entrava e saia. Precisaria de toda papelada para entregar ao tio Caio. Era difícil ficar ao lado do Alan e não poder relar nele. Mas sempre que dava um tempinho nós íamos até o seu quarto e aproveitava para nos beijarmos. Cael fora cuidar ainda do desmanche da arena que iria consumir a semana toda. O mais gostoso do celeiro é a mistura de cheiros. Lembrava um Mercadão Municipal, com um "plus" de mistura de rações e feno. Era, sem dúvida, o lugar mais movimentado, pois ele abastece a montanha por completo.
- O que ainda me surpreende é você estar perto daquele animal do seu primo. Tem ideia do que ele fez anteontem?
- Eu sei!
- Se soubesse, já teria pedido ao seu tio que o visse buscar e leva-lo embora. Aquele animal quase o matou!
- Mas eu domei o Zebu! Agora ele já não quer mais matar ninguém!
- Estou falando do animal do seu primo! – disse ele balançando a cabeça negativamente.
- Ah, ok!
- E você não vai fazer nada? Vai continuar a morar com ele?
- Ele mudou minha cara. Agora todos aqui me conhecem e tem um pouco mais de respeito!
- Eu não acredito que você ainda o defende.
- Ninguém o conhece para saber o que houve e, além do mais, vocês aqui da montanha bebem como se o mundo fosse acabar em bebida. bebem até perder o sentido. Eu fico indignado com a capacidade de um apontar o dedo na cara do outro, como se fosse melhor.
Ele soltou o saco de café no chão levantando uma boa quantidade de poeira.
- É impressionante o quão burro você é!
"Burro? Tenho certeza que se eu tivesse em São Paulo já o teria acertado um murro no meio da boca, mas, como eu ainda estou de custódia, vou contentar apenas com o elogio!"
- Cada um com seu defeito, não acha?
- Só que você, Yuri Martel, de longe, não é um homem burro. Das duas a uma, ou você está apaixonado por aquele desmiolado ou você está aprontando algo para o seu tio.
- Não estou fazendo nada para o meu tio, além de pegar os dados e passar no papel! Dados que vim conferir com você. Dados que preciso para entregar o relatório dos gastos dessa montanha.
- Olhe pra você! Um playboyzinho falando como um empresário.
- Prefiro ser chamado de empregado! Cabe mais a minha função!
- Não tem ideia mesmo do que irá acontecer quando você entregar esse relatório? Ou está me fazendo de bobo?
- Sabe, eu gostava mais de você nos dias das festas. Atencioso, carinhoso, cheio de elogios. Só que esse Alan, está parecendo até um estranho! Não está tão diferente do meu primo. Só falta me jogar dentro dessas baias ai.
- Não é isso! É que me preocupo com você. Gostei de você. Gostaria muito mais de continuar a conhece-lo.
- Continue sendo aquele Alan que conheci há uns dias atrás. É disso que gosto. Atenção!
- Ok! Mas sou homem também e sei me valorizar. Eu sou mais eu. Também não fico correndo atrás de quem não me trata bem.
- E quando é que deixei de trata-lo bem?
- No dia que não parou de falar com seu primo!
- Isso não é de deixa-lo de tratar bem! Isso é ciúmes!
Ele apenas abriu um sorriso e coçou minha cabeça, assim como fazemos com um cão. Aquela conversa estava chegando ao fim. Então de volta aos negócios.
- Mas o que vai acontecer com o Cael depois que eu entregar os dados ao pai dele?
- Tem certeza que não sabe?
Apenas o encarei sério.
- Ele vai ficar com tudo Yuri.
- Isso não é novidade. O Cael vem gastando toda a fortuna do pai dele agregando coisas a essa montanha.
- Há um mês o pai dele vem procurando motivos para tirá-lo daqui, agora de forma judicial. Na noite que você se tornou o ídolo da cidade, o Cael deu mais que qualquer motivo para dizer que ele não tem capacidade para comandar esse lugar. Que ele tem sérios problemas de convivência. Sérios problemas mentais.
- Ele faria isso? – perguntei atônito – Alguém precisa avisá-lo, antes que ele faça uma besteira.
- Fazendo besteira ou não, sei tio está disposto a fechar tudo isso aqui!
Fitei-o o ruivo com uma dor no coração.
- E as pessoas daqui? Para onde vão?
- Eu sei para aonde eu vou. Provavelmente para aonde você vai também – disse ele apontando a outra montanha, bem ao fundo da cidade.
- Após esses anos todos, você deixaria o Cael!
- Eu sou reconhecido pelo meu trabalho aqui! O pai dele está interessado apenas nos meus serviços. Já os demais, voltariam para suas casas.
- O Cael morreria.
- Yuri Martel quase morreu e ainda sim defende o Cael? Decepcionante!
- Sabe, eu moro com o Cael e sei um pouco dele. Esse pouquinho que eu sei sobre ele é anos luz que qualquer um aqui. Então, não seja um arrogante e prepotente. Você não o conhece.
- Ok! Fique bem você e seu namoradinho, continue sendo humilhado em público e correndo risco de vida. Se você quiser, a minha casa ainda está a disposição – disse ele virando as costas para mim e indo embora.
Fui até a sede para almoçar e tentar conversar com o Cael, mas ele não estava lá. Engoli a comida e logo desci a montanha para procura-lo, mas todos disseram que ele tinha saído.
- O que há de errado com o Cael, Yuri? – perguntou o Tomé passando de camionete ao meu lado – Fiquei sabendo que está procurando ele que nem um desesperado?
- Está indo para aonde?
- Pra cidade!
- Me arruma uma carona, eu preciso achar o Cael. Te conto tudo no caminho.
- Entra aí!
Descemos a montanha e pegamos a estrada de terra rumo a Poti. Contei tudo o que estava para acontecer. O Tomé ficava tão atônito quanto eu.
- Ele não pode fazer isso com o Cael, ele morreria – disse o Tomé.
- Exatamente por isso que estou tão apreensivo!
Continuamos pela estrada de terra que tinha araucárias de lado a lado. Passamos pela entrada da cidade e fomos direto até a Igreja aonde ocorriam às compras e vendas de produtos vendidos na cidade.
- De verdade, nunca vi uma igreja de cidade pequena tão alta assim – disse ao ver a torre alta.
A Igreja da Matriz era bem grande, mas velha também. Dava par vê-la a quilômetros de distancia.
- Fora construída por um padre muito famoso da época. Diz que ele fez muitos milagres e até hoje as pessoas vem aqui pagar promessa e conhecer o tal "Santo Padre". Romeiros vem todos os domingos, em grandes excursões, visitar o túmulo dele e pedir a graça – disse o Tomé fazendo o sinal da cruz ao passar na entrada.
- Por que tão grande assim?
- Exatamente por causa dos romeiros que vem. Na época Poti tinha cerca de 5000 mil habitantes e recebia cerca de 60 mil pessoas por missa.
- Mas não cabe tudo isso lá dentro!
Ele ria alto.
- Lógico que não! Cabe 700 pessoas. Essa daqui era antiga Aparecida do Norte. A ultima missa foi marcada por 200 mil pessoas?
- 200 MIL PESSOAS? Como? Aonde?
- Foi exatamente por esse número grande de fiéis que acabou-se com as missas por aqui.
- Impressionante! E por que ela é tão alta?
- 60 metros de altura para ser vista de longe. Estamos no cu-do-mundo, lembra? É católico Yuri?
- Nem um pouco! Mas por favor, não fale pra ninguém!
Descemos da camionete para procurar pelo Cael, mas ainda a minha fama me perseguia. O que era para ser um passeio rápido, acabou durando mais de 04 horas entre bate papos e fotos. O Cael apareceu por duas vezes me chamando para irmos embora, mas era impossível. Tinha muita gente e todos perguntavam sempre as mesmas coisas: "Como eu fiz aquilo?" "Se eu poderia ensinar?" "Posso passar lá pra tirar uma foto?" "O que vai fazer com ele?".
- Estamos indo "Senhor Famoso". Fique com a camionete do Tomé. Esteja lá antes do sol se pôr.
- Ok! – respondi segurando a chave no ar.
Fiquei ali na praça até o povo todo sair e fui contemplar aquela Igreja. De fato era muito grande para aquele lugar. Na porta marcava 1926, o ano que ela fora construída.
- Não vai me dizer que gosta de igrejas? – perguntou uma voz feminina atrás de mim.
- UOU! – disse dando um pulo – gosto mais de filmes de terror.
- Sempre acontece comigo! Está livre agora? – perguntou ela abrindo um largo sorriso – ainda vai recusar aquela entrevista?
- Lógico que não! O Cael que é exagerado!
- É porque, acredito eu, ele nem saiba ler.
Apenas ri concordando com ela. Sentamos no banco que ficava debaixo de uma árvore, bem em frente a igreja. Ela abriu sua bolsa, pegou seu celular para gravar e um caderninho de anotações.
- Esse aqui é a autorização que você precisa preencher para usarmos seu nome e imagem no jornal.
Peguei o papel e logo assinei. Ela recolheu num largo sorriso.
- Conte para mim qual foi a sensação de montar no touro mais temido?
- Bom, como você mesmo disse, fora indescritível. Meu coração realmente parou aquela hora. Eu ainda sinto aquela coisa toda.
- E como fez para montá-lo?
- Foi aquilo que você viu, eu estava ajoelhado lá e ele foi chegando, cheirando, lambendo e se ajoelhou. Sem mais!
- Mas como você aprendeu essa técnica tão especial?
- A única técnica que sei é gastar dinheiro Vera!
- Pode nos contar! Eu faço questão de ser a primeira a saber. Peões do Brasil todo vão querer saber como um desconhecido conseguiu domar o touro mais feroz. Uma hora você terá que se abrir.
- Como já disse, ele apenas se ajoelhou. Agora se isso me torna um X-MEN ou qualquer outra coisa sobrenatural, ai já não sei!
- Enfim. Como está sendo morar aqui em Poti?
- Já estou me acostumando! Tinha uma vida agitada e agora estou num lugar aonde tudo é muito parado! É bem fora da minha realidade, mas eu estou me adaptando bem!
- Bacana! Já está bem adaptado, pelo menos, a vestimenta está impecável. Um verdadeiro gaúcho. Então seja bem vindo, agora falando pelo povo de Poti!
- Obrigado!
- Aproveitando que estamos sentados em frente à igreja, me diga, você é religioso?
- Não sou frequentador de nenhum tipo de religião! Acredito em Deus. Acredito e exista um Deus e que ele criou a todos nós, mas que ele fica nos ouvindo ou nos influenciando, isso não! Minha religião e devoção é a natureza.
- Como? – perguntou ela toda encabulada.
- Você tem cara de religiosa, sabe? Cara de ser católica! Devota desse santo padre que eu só fui conhecer a história hoje. Mas não é tão santinha assim! Gosta de testar e apontar os pecados dos outros! Vem apenas uma vez na semana para bater cartão, mas não faz caridades!
- Além de encantador de touros, você lê a mente?
- Até já tinha esquecido desse meu dom! – disse arrancando uma gargalhada dela.
- Sou sim Católica! E acredito muito Nele. Mas o entrevistado aqui é você. E me explique o que ser devoto da natureza?
- Nasci com todos os meus músculos, nasci com todos os meus ossos, nasci com todos os meus dentes, nasci com minha pele lisa. Por que eu deveria passar todos os anos na minha vida tudo em perfeita ordem. Por que eu deveria passar toda minha vida sem quebrar um osso, sem ter uma cicatriz, sem conhecer tudo o que o meu corpo pode fazer?
- Quer dizer que temos que nos quebrarmos e nos rasgarmos todo antes de morrer?
- Sim e não! Se da terra viemos e da terra voltaremos, por que eu deveria devolver meu corpo "perfeitinho" conforme Deus fez? Jamais! Ele me deu a mais perfeita máquina então eu vou usá-la e abusá-la de todas as formas até o dia que morrer. Se usar e abusar incluir quebrar ossos, ter cicatrizes, dentre outras coisas, então ficarei feliz. É como ganhar um caro Zero Kilometro para usar durante a vida toda. Por que eu vou deixar de usar o meu carro? Quando eu morrer, quero dar o prazer Dele dizer "Esse aí fez bom uso da máquina que eu dei pra ele!".
- Ok! Você é um cara muito conhecido aqui no Brasil. Já viveu tudo que muitas pessoas jamais conseguirá viver. Há algum sonho do Yuri Martel que não tenha sido revelado?
- Um sonho? Voltar a viver à vida que tinha!
- Ah, isso não vale!
- Eu já vivi todo luxo desse País, mas nunca fui surpreendido nada humilde. Quer dizer, fui surpreendido pelo Zebu. Mas falarei do ser humano. Nunca fui surpreendido por uma pessoa, com um gesto de amor. Nunca vivi um amor, aonde a pessoa se apaixonasse por mim – disse pegando a mão dela e colocando no meu coração - ao invés de se apaixonar pela minha fama. Por mais que sempre vivi no dinheiro, sou um homem de sonhos simples!
- E agora que montou no Zebu, prenda é que não vai faltar a você, não acha?
- Sim, sim! – respondi ficando corado.
- Só para finalizar, posso completar a reportagem com os dados que eu tinha de você na internet?
- Lógico!
- Que bom! Yuri foi um grande prazer conhece-lo. Obrigada pela gentileza e espero vê-lo brilhando nessa Poti, como fez no domingo.
- Obrigado!
Despedimos com beijinhos no rosto e esperei ela levantar do banco. Olhei para o alto da torre da igreja que estava iluminada pelo luz alaranjada do pôr-do-sol. Isso significava para que era hora de ir embora. Catei camionete e segui para montanha. Abri os vidros e deixei o cheiro do mato contagiar minhas meu corpo. Adorava aquele cheiro. Passei pela porteira e depois pelo pouco que ainda sobrara da festa do outro dia. Continuei rumo à montanha aonde esperava encontrar meu primo sóbrio. As pessoas da estrada de terra rumo a minha casa paravam para me cumprimentar. Cheguei à sede e lá estava o Cael, sentado, sem camisa.
"Fica aí sem camiseta e depois reclama que sou abusado. NÃO SOU DE FERRO!" – disse a mim mesmo.
Por um milagre da natureza ou pelo efeito do álcool, ele fizera a gentileza de abrir a porteira para mim. Estacionei a camionete e fui me encontrar com ele.
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