CAPÍTULO 26 - CAEL MARTEL
Narrado por Cael Martel
- SÓ SAÍMOS DE LÁ MORTOS ALAN! - respondi aquele ruivo nojento - TOMÉ? - chamei o capataz que observava tudo ao fundo.
Ele correu até perto de mim e começou com o clássico sermão.
- Tem ideia da idiotice que você está tentando fazer? - perguntou ele enquanto caminhávamos para fora da tenda.
- Tenho!
- E mesmo assim vai continuar?
- Vou!
A multidão nos seguia com aquela euforia de briga de colégio de criança. Não é todo dia que podemos mostrar quem somos aqui. Sou Cael Martel, nascido e criado no meio do gado, dono dessa montanha. Eu não tenho porque temer nada daqui.
- Deixa isso pra lá Cael!
- Cala a boca Tomé!
- Nunca me mandou calar a boca!
- Nunca falou demais! Quero acabar com aquele ruivo babaca.
- O problema nunca foi o Alan, o problema é você! Olha a forma que está falando comigo. Olha seu estado. Olha o que você fez com o Yuri. Não tá vendo que você está passando dos limites?
- Ah o problema todo é o Yuri?
- Não, é você! É você que não admite ver as pessoas a sua volta feliz. Está comprando uma briga sem motivos.
- Está protegendo aquele veado por quê? Porque ele encantou a cidade toda dançando e cantando?
- Não, porque você não assume logo que está com ciúmes dele. Que a felicidade dele aqui o incomoda? Que pela primeira vez na vida ele estava sorrindo nesse cu de mundo. Aqui não é a vida dele e nem a casa dele. E digo mais, você está com ciúmes porque não é você quem o está deixando feliz.
Passamos pela entrada da arena. Era um corredor comprido e escuro. Dava para ouvir as pessoas pisoteando as tábuas dá arquibancada.
- Está passando dos limites Tomé! Você é a pessoa mais importante da minha vida mas está passando dos limites.
- Ele é só um rapaz da cidade, não tem culpa de nada que está acontecendo aqui. Você viu o que você fez com ele? Primeiro deu o poder de ele ser o Rei da Montanha, depois o colocou para ser locutor da festa, pediu que ele transformasse essa festa numa festa histórica. Ele a fez! Depois humilhou no meio da cidade toda.
- Vá cuidar dele então!
- É exatamente isso que vou fazer - disse ele virando as costas rumo à saída.
- Está virando as costas para mim Tomé, sabe o que isso significa, não sabe?
Ele continuou a caminhar sem olhar para mim. Agora eu estava sozinho, dentro do corredor. Catei minha foto do meu irmão Cauê que guardava dentro das minhas vestes.
"Com Deus eu me guio,
Com Deus eu me levanto,
Peço sua Graça meu Deus,
E do espírito do meu irmão,
Em nome do Pai, do Filho, do Irmão,
Amém!"
Respirei fundo e entrei na arena. Ouvi gritos e assovios das pessoas que ali estavam. Juan e o Aldo logo estavam na minha cola. retirei meu chapéu, soltei meu rabo de cavalo que era amarrado em vários nós. Arranquei minha camisa ficando apenas com o tórax nu.
- Non tienes frio? Hoje é a noite mais fria do ano.
- Isso mesmo! Estás marcando 0º graus.
- Sabe como eu nasci?
- Non!
- Meu pai era cachaceiro. Minha mãe estava tendo as dores do parto e nada do meu pai aparecer na montanha. Era a noite mais fria do ano. Então, minha mãe montou na charrete com meu irmão Cauê e saiu para ir até a parteira. Precisou parar no rio, no meio da geada para dar a luz. Nasci na noite mais fria daquele ano. A geada cobria o pasto. Minha mãe não tinha aonde me colocar, então pegou um saco de estopa, daqueles que colocavam arroz com casca dentro e me embrulhou enroladinho com meu irmão, porque eu jamais sobreviveria sozinho. Fomos socorridos horas depois pelo leiteiro que levou ela para sua casa aonde a esposa do leiteiro ajudou a minha mãe se recuperar. Eu estava tão gelado que ela chegou a me dar como morto. Minha mãe catou no colo, então eu chorei. Chorava de berrar. Berrei tanto que o pessoal da colônia apareceu ali achando que alguém estava me batendo, mas estava apenas com fome. Sou o filho nascido no frio. Não tenho medo do frio.
Eles apenas me fitavam sérios. As cadelas logo entraram e se juntaram a nós.
- Leve-as de volta para dentro - disse.
- Vai precisar delas para fazer os touros correr.
- Eu não quero fazê-los correr. Quero fazê-los destruir esse lugar.
Gritos e aplausos anunciaram que o Alan entrara na arena.
- AI ESTÁ VOCÊ. ACHEI QUE TIVESSE DESISTIDO - berrei para o cara mais detestável da montanha.
- NÃO TENHO PORQUÊ!
As arquibancadas estavam lotadas. Avistei o Yuri sentado bem na beirada, com a Anna ao seu lado. Ele ainda usava o colete de flores. O Alan retirou suas roupas e entregou ao Yuri.
"Filha da puta, está me provocando?!"
Arranquei os facões e comecei a bater um no outro. Os animais ficaram agitados. Eles ficam agitados quando vê facas. Pressentem que algo ruim está para acontecer.
- CAEL MARTEL - berrou um homem baixinho e barrigudo na arquibancada. Era o delegado - PARE COM ISSO AGORA.
- VAI USAR O FACÃO CONTRA MIM? - perguntou o ruivo arrancando seu facão e apontando para mim.
- NÃO É PARA USAR CONTRA VOCÊ. NÃO HOJE!
Peguei os facões e comecei a bater um no outro. Faíscas voavam ao choque das lâminas. Os touros pulavam de um lado para o outro, batiam em si, trombavam nas arquibancadas. Eu não ia facilitar, eu não queria um tradicional redemoinho de animais, eu queria um tsunami. E foi o que aconteceu. Eles a cada batia iam se assustando até começarem a dar coices uns nos outros. Me esquivava dos grandes animais quando eles vinham minha direção.
- VOCÊ SABE QUE ISSO NÃO É NADA BOM, NÃO SABE? - perguntou o Aldo em pé na beirada da arquibancada.
Continuei a bater mais e mais e fui em direção deles. A poeira subia com uma ferocidade que mal dava para ver as pessoas. Foi então que vi o Zebu vindo em minha direção. Sai correndo e subi na primeira tábua da arquibancada. Procurei pelo ruivo que também fugia dos animais. Respirei fundo e pulei no meio dos animais. Corri até o Zebu que estava encurralado por mais animais. Era a minha chance. Cheguei perto ao ponto de colocar a mão no couro macio, mas precisei sair correndo quando ele me encarou. Nem três passos e BANG, fui acertado em cheio nas costas por um animal. Não conseguia respirar direito. Fiquei zonzo e corri para o meio das tábuas. Olhei para cima e vi o Yuri me encarando. Doía demais para respirar. Enchi-me de ódio, pois aquilo poderia ser meu fim. Foi quando gritos e aplausos fizeram meu estômago afundar. Era o Alan, mas ele estava montado em outro touro. Subir num touro era o mesmo que desistir da prova. Aquele filha da puta estava desistindo da merda toda. Só precisava recuperar o folêgo antes de voltar para arena.
- É ISSO AÍ ALAN! - gritou o Yuri girando o seu chapéu.
"Era isso então? Ele ia pagar pau para aquele ruivo?"
- ELE É SEU HERÓI, NÉ? - DISSE AO YURI.
Ele me olhou e balançou a cabeça negativamente, ignorando meu comentário. Continuou a agitar o chapéu e sorria de canto a canta. Sorria para o maior filha da puta da montanha. Meu peito ardeu de ódio, meu queixo tremia e meus olhos encheu de lágrima. É, eu tinha que admitir que estava apaixonado por aquele veado da cidade grande. Mas não era para mim aquele sorriso, não era para mim a torcida, não era para mim que ele acenava.
- POR QUE NÃO VAI ATÉ LÁ E DÁ UM ABRAÇO NO SEU AMIGUINHO? - disse a ele.
- PARA COM ISSO CAEL. ESTÁ PATÉTICO! ESTÁ VIRANDO PIADA! - respondeu ele sem olhar nos meus olhos.
Foi com todo meu ódio que agarrei a sua perna e o puxei para baixo, derrubando na arena. Os touros se afastaram. Ele se levantou mais rápido que um gato e agarrou na primeira tábua, mas antes que ele subisse, enfiei o pé no meio do seu peito e o derrubei de novo. Pulei ao seu lado e o levantei.
- VAI ENCONTRAR SEU NAMORADINHO - disse empurrando ele no meio dos touros.
- CAEL SEU MALUCO! - berrou o Tomé.
- PARA COM ISSO CAEL. PARE JÁ COM ISSO - berravam as vozes atrás de mim, mas eu as ignorava - AJUDA O RAPAZ. ELE VAI MORRER.
Catei os facões e comecei a bater um no outro. Os animais se agitaram novamente e começaram a correr. O Yuri, sem saber o que fazer começou a correr junto a eles.
- ME AJUDA?
- AJUDA ELE CAEL! - berrou a Anna.
- ME AJUDA. ME AJUDA. ME AJUDA - berrava o rapaz fugindo dos animais.
O Alan desceu do seu touro e foi tentar ajuda-lo, mas era em vão tentar chegar perto do Yuri ele já estava no meio do redemoinho. O Aldo, o Juan, o Tomé, a Anna, o delegado. Todos na arena correndo. Segurei o Alan quando ele passou por mim e o esmurrei. Ele tentava sair dos meus braços, mas com mais dois socos o derrubei.
- VOCÊ FICA AQUI - disse o delegado batendo a algema na minha mão e algemando com a dele - CHEGA DESSA PALHAÇADA. CHEGA. ENTENDEU? EU... DISSE... CHEGA!
- Só eu posso ajudar ele, você sabe disso - disse ao delegado.
- VOCÊ VAI FICAR AQUI! - berrou ele no meu ouvido.
- ME AJUDA - berrava o Yuri chorando - VOU MORRER CAEL. ME AJUDA CAEL. ME AJUDA CAEL. EU NÃO CONSIGO MAIS.
Gritos das pessoas da arquibancada abafavam o som dos animais. O Yuri começou a cambalear, a cambalear até cair no chão. Os animais passavam correndo a sua volta mas nenhum o pisoteou. O pessoal não conseguia penetrar naquele mar de animais. O Yuri com pouca força, conseguiu se levantar, mas caiu novamente de joelhos.
- AGORA FODEU AGORA VOCÊ O MATOU - disse o delegado apontando o rapaz no meio dos animais - EU VOU TER QUE MATÁ-LO.
O Zebu estava a poucos metros do Yuri, investindo nele, fungando e balançando os chifres.
- AGORA SEU TOURO VAI MORRER! - continuava a berrar no meu ouvido.
Ele pegou o revolver 38 e me puxou em direção ao animal.
- Vou matar o touro mais famoso depois do bandido, por causa de você.
- NÃO FAÇA ISSO! TE IMPLORO.
- ELE VAI MATAR O RAPAZ SEU ANIMAL.
- ME SOLTA QUE EU TIRO-O DE LÁ!
- EU JURO QUE PRECISO DE APENAS UMA BALA PARA DERRUBAR AQUELA FERA. UMA GRACINHA E EU ATIRO NA CABEÇA DELE - disse ele furioso e depois soltou as algemas.
- FICA PARADO YURI - Berrei ao rapaz - NINGUÉM SE MEXE - disse ao pessoal que tentava chegar perto do Yuri - E TODO MUNDO CALA A BOCA.
O touro mugiu alto e chegou a poucos centímetros do Yuri que não parava de chorar. O silêncio das pessoas da arena era de assustar. Acho que poderíamos ouvir os carros chegando em Poti a 20 kilômetros dali. Ele ia dando passo por passo e chegando perto do rapaz. O Yuri, que até então estava de olhos fechados, os abriu e encarou o animal. O Zebu ia dando passos assustados, pequenos. Ele estava apenas curioso com aquele homenzarrão ajoelhado. Eu entrava cuidadosamente no meio dos animais que também estavam parados, encarando o homem e o animal no meio da arena. Eu não podia assustá-los ou eles poderia facilmente pisotear o Yuri. Até eu fiquei parado para ver aquela cena. O maior touro do Brasil encarando o tão famoso Yuri. Foi quando meu primo, tremendo, estendeu a mão. O animal afastou assustado, mas voltou para cheirá-lo.
- Não faça movimentos bruscos - disse calmamente ao Yuri.
O Zebu deu mais um passo, depois outro, depois mais um até alcançar a mão dele. Ele a cheirou e começou a lambe-la. O Yuri estava estático vendo aquela cena que seria cômico se não fosse perigosa. Então, a coisa mais improvável e impossível que pudesse acontecer, aconteceu. O touro Zebu, naqueles pequenos passinhos se ajoelhou na frente do Yuri Martel. Meu primo acariciou sua cabeça e abriu um sorriso de alívio.
- MONTA ELE - berrou um cara da plateia.
Meu coração parecia explodir dentro do meu peito. Yuri se levantou, deu a volta pelos chifres e, cuidadosamente, subiu em cima do animal. O Zebu ficou de pé, com o rapaz no lombo e deu uma pequena volta em torno dele mesmo. A plateia explodiu em gritos, chapéus para cima, aplausos. Meus olhos encheram d'água e eu comecei a chorar.
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