CAPÍTULO 24 - YURI MARTEL - PARTE 03

Narrado por Yuri Martel

- Você está louco? – perguntei ao meu primo que sorria de canto-a-canto.

- Não!

- Se as pessoas aqui já me odiavam, agora então?

- Problema é seu! Mal agradecido – disse ele ficando carrancudo – Agora vou mostrar você a Poti.

Ele segurou a minha mão enquanto passava pelo corredor escuro que dava para as arenas. Ele me levou até uma escada marinheiro que dava para o palanque. Subimos os 20 metros de escada até ficarmos numa plataforma de 02 metros de comprimento por 04 metros de largura. Havia um rapaz jovem com uma aparelhagem tosca de som e um microfone. Respirei fundo e fui em frente ao microfone. Vozes e assovios iam ficando mais alto e mais constante. O Cael levantou minha mão, assim como um juiz levanta a mão de boxeador campeão. Uma explosão de palmas aliviou meu peito ao saber que eu estava sendo aceito por centenas de pessoas ali.

- Faça esse dia valer a pena – disse ele dando um tapa de leve no meu rosto – E lembre-se, eu sou o ultimo.

Esperei ele descer a escada. O jovem que controlava o som bombardeava a gente com músicas gauchescas. Fiz um sinal para ele diminuir o volume, respirei fundo, abri um sorriso amarelo e:

- BOAAAAAAAAAAAAAAAAAA NOITE POTI – berrei e muitos riram. Olhei para o rapaz do som e ele deu de ombros – Pois é! Hoje é último dia de vocês aqui. Sou Yuri Martel, tirando o povo da montanha, o restante de vocês jamais ouvira meu nome. Mas estou aqui. E mais que nunca eu preciso de vocês, sabem por quê? Eu venho lá de Sampa. Conheci muitos lugares no Brasil, mas que nem Poti? NUNCA! – disse arrancando uns berros – É COM SILÊNCIO QUE VOCÊS QUEREM COMEMORAR O ÚLTIMO DIA DA MAIOR FESTA DE BOIADEIRO? É COM SILÊNCIO QUE VOCÊS QUEREM QUE NOSSS CAMPEÕES ARRISQUEM A VIDA? É COM SILÊNCIO QUE VOCÊS VÃO SE LEMBRAR DO DIA DE HOJE? NÃO! EU QUERO QUE O PESSOAL DE PORTO ALEGRE NOS OUÇAM, QUERO O PESSOAL DA ARGENTINA NOS OUÇAM, QUERO PESSOAL DO URUGUAI NOS OUÇAM, QUERO QUE MEUS AMIGOS DE SAMPA NOS OUÇAM. SERÁ QUE CONSIGO ISSO DE VOCÊS OU MEU NÃO CONSEGUEM ENTENDER MEU SOTAQUE, CHÊ?

Pude sentir o berro de milhares de pessoas nas arquibancadas. Pude sentir todos pisoteando as tábuas da arena. O chão tremia.

- BOA NOITE POTIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII.

E foi o maior berro que ouvi naqueles 06 dias de festas. Aquilo me arrepiou por inteiro. Agora sim, senti que havia um dom dentro de mim.

- Senhoras e senhores, primeiramente eu quero agradecer aos novos campeões dessa que foi a maior festa de todas. Foram 104 jovens, meninos, que entraram nessa arena e saíram daqui como homens. Quando eu chamar, quero que todos recebam de pé, com muito barulho, com muita bateção de pé, essa garotada que fizeram alegria dessa festa. SEJAM BEM VINDO OS CAMPEÕÕÕÕÕÕÕEEEEESSS.

A galera surtou. Eles pisoteavam tanto aquela arena que eu precisei-me segurar numa viga para ficar em pé. Um a um, os campeões entraram montado nos touros que eles conseguiram subir. Ficaram andando em círculos e acenando para a plateia sob o chuva de plmas. Pedi ao cara do som que colocasse Cavalo de Fogo. Eu achava a música muito brega, mas eles ali, no Cu do Mundo, estavam tendo um orgasmo. Era como se fosse a nossa Olímpiada.

- Quero mais palmas a esses bravos jovens que hoje são homens. Agora gostaria de falar direto com os campões, tem como? Tem como falar com esses homens?

Um a um foram parando e ficando de frente a mim. Pedi ao cara do novamente que colocasse um sertanejo romântico, bem baixinho.

- É nesse ritmo que quero falar direto com vocês. Tem algum macho, mas macho mesmo que gostaria de aproveitar, no meio da maior Festa de Boiadeiro, e pedir sua prenda em casamento?

"Prenda, para quem não conhece o Rio Grande do Sul, é a gíria para moça, mulher. É muito usado pelos gaúchos!"

Eles se entreolharam, começaram a rir.

- Pessoal da plateia, o que vocês acham? – perguntei a todos – Lá de onde eu venho, campeão que é campeão já laça sua mulher. Vocês não acham uma boa ideia?

- Agora eu deixa eu falar com as prendas – disse e a plateia ria do meu jeito de conversar, tenho certeza que ninguém tinha visto algo igual – ôh mulherada? Eles agora não são mais meninos não. Tem que ser macho pra tá naquele lombo. Poxa, 104 homens (meninos que não deviam ter mais de 20 anos, sem barba) ali se arriscou pra vocês. Com tantas prendas lindas, acho que até eu vou aproveitar e pedir um touro desses. Será eu consigo ou monto um bezerro?

A galera batia palma, ria, assoviava. E, pra minha surpresa e alívio, três rapazes subiram até a beirada da arena e puxaram suas mulheres. Elas estavam roxas de vergonha. No mínimo isso nunca deveria ter acontecido algo daquele tipo naquela cidade. Os rapazes agacharam e pediram a mão das moças.. Houve muita comoção, muitos aplausos. Os homens as ajudaram a subir nos touros e, em círculos, todos iam se despedindo da arena. Pedi para que o DJ (se assim posso chamar) colocasse músicas sertanejas bem dançantes enquanto os organizadores iam trazendo os touros maiores para arena. Eu chamava atenção do pessoal para imitar minhas coreografias. Bater palmas, ficar de mãos dadas, balançar as mãos para o alto.

"Sim Yuri, você conseguiu!"

Para vocês terem ideia, nos dias normais eles colocavam 200 cabeças para os campeões competirem. Hoje, ele dobraram o número, os organizadores colocaram 400 touros para 05 homens. O barulho da galera ia aumentando a medida que os espaços iam ficando pequeno. A música parou apenas quando entrou o Zebu.

- Estamos de volta pessoal e agora a brincadeira ficou séria. Aqui é brincadeira de gente grande. HÁ 400 TOUROS DENTRO DESSA ARENA. Entrar nessa AQUI é para cara muito macho. Independente de como acabar esse último Estouro da Boiada, quero que todos saibam que esses homens são "os caras". Eles eram em 120 campeões e hoje sobraram apenas cinco. Dê uma olhada na minha mão aqui – disse estendendo minha mão pra plateia – Hoje, cabe aqui ó... ná minha mão. Um, dois, três, quatro e cinco, dos 120 que chegaram aqui no primeiro dia. Éu não quero silêncio não. QUERO QUE TODOS TIEM OS CHAPÉUS PARA ESSES HOMENS QUE VÃO ENTRAR.

A galera ia ao delírio. Além de rir do meu sotaque paulista.

- Será que há homem aqui que vai montar o Zebu? Dá uma olhada naquela fera de uma tonelada. Todos já fizeram suas apostas, já? Então vamos fazer muito barulho para os campeões. Quero muita bateção de pé, quero derrubar essa arena agora. Quero que eles lá dentro sintam nossa força. Será que o Aldo fica bem em cima do lombo do Zebu? – perguntei e o argentino entrou no meio de um barulho imenso da plateia. – Será que serve pro Juan? - e mais gritos – Ou será que o Zebu vai lá com o Toni de Porto Alegre ? – todos vaiaram o único estrangeiro a sobreviver. Mas ainda temos o ALAAAN - a galera pisava tanto na arena que tive medo que ela partisse ao meio.

Esperei o ruivo entrar, cumprimentar a todos. Eu fiquei até emocionado com o quão adorado era o meu ruivo.

- Da uma olhada para aquele touro preto. Negro como a noite. Acho que há alguém que combina muito com ele. Quero que vocês recebam outro cara que é meio homem/ meio touro. Aquele que usa o negro. Aquele que nunca perdera nenhum estouro da boiada. Aquele que o Zebu corre de medo. Recebam com muito barulho, o Rei da Montanha, CAEEEEEEEEL.

Andando em passos largos e olhar carrancudo, não conseguira conter o sorriso ao ouvir explosão de gritos, urros, palmas o receberam. Achei que fossem parar quando ele desse uma volta na arena, mas não. Eles continuavam e continuavam.

CAEL, CAEL, CAEL, CAEL, CAEL – berravam as centenas de pessoas ali.

Era tão lindo ver aquela alegria toda. Era tão forte o sentimento que eles sentiam por ele. Agora sim não havia mais dúvidas sobre o amor daquelas pessoas pelo Cael. Ele era adorado, amado, querido. Era tão lindo que não contive a emoção e lágrimas corriam pelo meu rosto. A partir daquele momento, todas as minhas dúvidas sobre se gostavam ou não dele, vieram abaixo. Ele não era o Rei atoa. Ele era adorado

Emocionante também fora aquele coro de vozes rezando Ave Maria e Pai Nosso. Até para um cara cético como eu, era impossível na arrepiar. Quando por fim pararam, o Tomé entrou com um rojão na mão e as cadelas ao seu pé. Eu não tinha visto ninguém usar rojão nos dias anteriores, eram apenas os cães. Me gelou o estômago só de imaginar o que viria.

- Senhoras e senhores, vamos começar o ultimo estou da boiada. BANDA BALA TOMÉ – berrei ao capataz.

Os homens dentro da arena fizeram o sinal da cruz. O Tomé acendeu o rojão e mirou pra cima. Após os doze estalos, as cadelas foram pra cima dos animais. Os peões ficavam no centro do turbilhão de gado. O chão tremia e a poeira ia subindo. Ali não era lugar para brincar. Ali você não podia bobear, se não era pisoteado até a morte. Não poderia se dar ao luxo de ficar escolhendo o touro, como o Alan e Cael fazia. Em menos de um minuto, o rapaz magro e alto estava montado.

- E dá-lhe Porto Alegre – disse ao ver o estrangeiro em cima do touro.

O primeiro a subir fora o rapaz de Porto Alegre. Mas a concentração maior estavam nos caras de Poti. O Zebu trotava imponente, sem ao menos dar atenção ao Alan que estava poucos metros dele. O Cael corria junto com a boiada, mas estava muito longe. Naquele rítmio, jamais ele alcançaria o animal. Berros e mais berros da torcida iam aumentando.

- Senhoras e senhores, mais um campeão para vossa felicidade. Todos batam palmas para o Aldo.

Mas todos ali nem ligaram, o silêncio tomou conta quando o Alan foi esguiando, se espreitando, até que num pulo ele conseguiu subir no touro Zebu. A galera foi ao delírio, mas num piscar de olhos ouve vaias, o touro havia o derrubado.

- É para matar qualquer um do coração. Esse Zebu não quer ser montado.

Todos aplaudiam o feito do Alan. Já passavam dos 5 minutos e nada desses dois rapazes fazer algo. Dando sinais de cansaço, o Juan subira num touro parto e um segundo depois o Alan.

- Vamos parabenizar mais dois grandes campeões de Poti – disse para a plateia e todos aplaudiam.

O Alan estava tão cansado que abraçou seu touro e ficou deitado em cima dele. Mas o Cael continuou. Ele conhecia uma manada mais que ninguém, sabia exatamente aonde cada touro iria. Por 20 minutos ele ficou gingando entre os animais, até que por fim ele montou num touro caramelado.

- E ESTÁ TERMINADO DO ÚLTIMO ESTOURO DA BOIADA DE 2016. Vamos aplaudir todos os campeões e o mais valente de todos, o Cael.

Todos ficaram de pé e por uns 05 minutos houve muito barulho, muito grito, muitas palmas. Deixamos a música rolar enquanto o público ia saindo. Desci do palanque e fui até os campeões. Corri para o Alan que estava sentado e encostado numa tábua. Estava completamente ensopado e ofegante. O olhar de tristeza era o que deixara com mais vontade de abraça-lo.

- E ai Rei da Montanha – disse ele num sorriso frouxo – Ficou bem de preto.

- É um colete bacana – disse estendendo e apertando a sua mão.

- É o colete que todos se matariam para ter. Use-o bem.

O mestres que passavam por mim nem olhavam na minha cara, mas fazia questão de esbarrar e xingar bem alto.

- Veio numa boa hora esse facão – disse, mas até o Alan estava me ignorando – fiz algo de errado?

- Você nada, mas aquele babaca fez! Detesto o Cael. Ele é invejoso.

- Eu sempre achei ele tão "foda-se" para o mundo!

- Ele é "foda-se" quando se trata dos assuntos dele, mas ele não pode ver felicidade alheia que logo ele vai lá e arranca pela raíz.

Eu tinha que concordar. Quantas vezes o Cael jogou pedras na minha boca enquanto ria, quantas vezes ele batera na minha cara para eu acordar. Quantas vezes ele me chamou de bobo, apenas por estar sorrindo?

- Entendo você!

- Não... não entende – disse ele fazendo forças para levantar – ele me odeia mais que todos aqui. Sempre quer tudo o que conquisto.

- Mas ele o fez Mestre. Algo de bom você deve ter.

- Ele sabe reconhecer o potencial de cada um aqui. Comandar o celeiro é uma função muito árdua. Não é qualquer um que contabiliza tudo que entra e sai da montanha. Sou formado, lembra? Agora tem você! Mas ai eu comecei a montar touros também. Vi que tinha dom para isso. Fui ganhando um touro atrás do outro. Isso o irritou demais. Todos os anos, ele tenta me ferrar quando chega o Estouro da Boiada.

- Mas é só um touro! Vocês dão valor demais pra isso.

- Cuidado com o que fala aqui garoto.

"Garoto? Sou 05 anos mais velhos que ele e me chama de garoto?!"

- Me desculpe!

Ele ficou em silêncio fitando suas botas.

- Ei, você conseguiu outro touro aqui, lembra? – disse arrancando um sorriso dele.

- É, lembro sim! Já até estou ficando com saudades dele, sabia? – disse ele num sorriso malicioso – O locutor da festa disse que deveríamos aproveitar a noite para pedir nossas prendas. Eu não tenho nenhuma prenda, mas tenho um prendo aqui.

Ambos caíram na gargalhada. Ajudei-o a levantar e ele montou no seu touro. Em seguida ele me ajudou a subir e fomos dar um passeio pelo local. As pessoas parabenizava-o dando tapas no lombo no bicho. Ele, a cada aceno, tirava o chapéu para agradecer. Fomos novamente para a estrada de terra, aonde nos acariciamos, nos beijamos, nos sentimos. Era muito bom, saber que alguém ali na montanha me desejava.

- E aí, pensou na minha proposta de morar no celeiro? – perguntou o ruivo me puxando para um beijo – Teria isso todos os dias.

- Claro! Seria um prazer imenso – disse retribuindo o beijo.

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