CAPÍTULO 14 - YURI MARTEL
Narrado por Yuri Martel
Não sabia direito se eu estava sonhando ou acordado quando abri meus olhos e fitei o teto sem forro. Sentia muito frio. Minhas pernas e meu queixo tremia descompassadamente. O lugar que eu estava deitado era duro e cheirava mal ao ponto de me deixar nauseado. Aos poucos, minha cabeça embriagada ia voltando ao normal. Sim, eu podia reconhecer o local. Era a casa do Cael. Minha cabeça doía demais. Sentia uma faca em brasas entrando na minha cabeça a cada batida de coração.
- Está se sentindo melhor? – perguntou uma voz feminina ao fundo.
- Onde estou? – perguntei sentindo o meu estômago revirar.
- Você está na sua nova casa! – respondeu a voz sentando ao lado da minha cama.
- Preciso vomitar – disse fazendo força para levantar.
Infelizmente não dera tempo de correr para qualquer lugar que não fosse o chão do meu quarto. A cada forçada que fazia para o vomito sair, era como seu minha cabeça estivesse partindo ao meio.
"O que estava acontecendo comigo?!"
- Não tem problema querido – disse a moça passando a mão nas minhas costas – Vou até a varanda buscar um balde para limpar tudo isso.
- Não vai não! – disse uma voz grave vindo da porta – Ele limpa.
- Mas Cael, ele ainda está muito mal – disse a moça novamente.
- O quarto é dele. Então quando ele melhorar, ele limpa – disse o Cael mais uma vez.
Ela se retirou do quarto após o rapaz insistir que ela não limparia minha bagunça.
- O que há de errado comigo? Por que estou me sentindo tão mal? – perguntei sem olhar o meu primo.
- Porque você é um fresco! Eu tenho que estar no curral em meia hora. Quero te ver pronto na metade desse tempo.
- Aonde vamos?
- Trabalhar leitão, trabalhar – disse ele saindo do quarto.
Logo em seguida, mais outra pessoa entra no quarto e, dessa vez, ascendeu à luz fazendo meus olhos lacrimejarem.
- Que bagunça rapaz! – disse um moço alto e moreno.
- Você sabe o que está acontecendo comigo? – perguntei ficando de quatro e depois me sentando na cama.
Aquele negro, forte e alto apenas sorria.
- Não se preocupe com essa bagunça. Deve ser a anestesia que deu esse vômito todo.
- Anestesia? – perguntei fazendo forças para ficar sentado.
- É leitão! – disse o Cael jogando um balde e um rodinho os meus pés.
O negro apenas balançava a cabeça negativamente.
- Precisamos dar anestesia para fazer o curativo da sua cabeça. Ela abriu bem!
Tanto o Cael quanto o moço usavam aqueles trajes engraçados dos gaúchos. Mas o dele era diferente. O chapéu, o lenço, a camisa, o colete, a bombacha, o tirador (que é um avental de couro, cobrindo a bombacha e as botas. Chegando até a bota. Usado apenas do lado esquerdo. O tirador é usado, na maioria das vezes, por laçadores. Ele protege a perna contra o ataque dos animais) eram completamente negros. Até as bainhas que guardavam, de um lado um facão e de outo lado uma faca, eram de couro tingido de negro. Apenas o metal dava uma diferença naquele traje. O Cabelo dele formava um rabo-de-cavalo, lembrando um cavaleiro argentino, amarrado em 03 lugares. Já o moço moreno, usava cada peça de uma cor. Passei a mão atrás da minha cabeça e senti da onde vinha aquela dor.
- Não fica passando a mão – disse o moço que acompanhava meu primo ao ver-me fazendo cara de dor – Está recém feito.
- Mas o que houve comigo?
- Você desmaiou. Como desmaiam essas moças quando vê sangue – respondeu o Cael.
Fazia forças para lembrar o que acontecera, mas era impossível. Não lembro de nada que não seja eu indo ao bar.
- Vamos rapaz, tome isso - disse moça que estava no quarto quando eu acordei.
- O que é isso? – perguntei ao entregar a xicara para ela.
Tomei o liquido amargo que estava dentro de uma xícara. Respirei fundo para não vomitar o que já não tinha em meu estômago. Em seguida, tomei um copo de água gelada.
- Apenas tome! – disse o Cael novamente.
Fiquei encarando aquele rapaz robusto, mal encarado, carrancudo, mexendo nas minhas coisas, abrindo minhas gavetas, meus armários, minhas malas, criado-mudo.
"Que petulância daquele idiota!"
- Dá para alguém dizer o que está acontecendo? – perguntei calmamente.
- Já disse! Você desmaiou – disse ele pegando minhas roupas e jogando no meu pé.
- Eu jamais desmaiaria sem um motivo! – continuei agora olhando para aqueles olhos negros.
- Eu não costumo repetir o que eu digo, por isso, posso te dar outro motivo para você desmaiar – disse ele encostando seu rosto centímetros do meu e, com sua mão, ele esfregava minha face, dando uns tapinhas até pesadinhos para alguém que queria apenas me dar um recado – VAMOS EM-BO-RA.
- Aonde vamos? – perguntei começando a me trocar.
Mas nem dera tempo de finalizar minha pergunta quando ele me empurrara de volta na cama.
- Trabalhar! – disse o Tomé segurando aquele filha da puta – Agora você saia daqui – continuou o negro empurrando o meu primo para fora do quarto.
- 02 minutos Tomé – disse meu primo encarando o moço.
- Por favor Tomé, me diga o que houve?
Ele me encarou por um momento, balbuciou um pouco, mas tomou coragem de vir falar comigo.
- Cael não vai gostar de saber que estou lhe dizendo isso...
- Tudo bem, não contarei nada – disse ao interrompê-lo.
- Cael é muito sério. Ele não gosta de fofocas. Por isso eu preferia que você fosse até ele e perguntasse – disse o Tomé me puxando e me levantando – ele não é muito paciente com as pessoas. Não gosta de falar duas vezes.
- O que ele diz, é lei aqui – disse a mulher entrando mais uma vez no meu quarto.
- Mas ele é incomunicável – disse tirando toda a minha roupa e me vestindo em seguida. Era quase impossível ficar pronto em 02 minutos com tantas roupas e tantos abrigos – Por favor, me conta então o que houve para não repetir novamente?
- Ele te socou – disse o Tomé sussurrando.
- Por quê?
- Porque ele não gosta de você!
- E...?
- E que ele não gosta mesmo de você – continuo o Tomé pegando meus agasalhos – Tome isso, você vai precisar.
"Mais agasalhos?!" – perguntei a mim mesmo.
- Agora vou apanhar apenas pelo fato que ele não gosta de mim?
Ele deu de ombros.
Uma buzina alta e longa fez o moço a minha frente sair as pressas.
Saímos da sede já de noite. Agora entendia o motivo do Tomé ter me dado mais dois abrigos para vestir. Até mesmo o meu primo e o Tomé, que gozavam de todos por não sentirem frio, estavam bem trajados, com um poncho grosso que cobria até os pés. Meu primo ainda vestia o seu poncho negro quando montávamos na camionete. O Nevoeiro estava tão denso que mal dava para saber aonde estávamos. Me senti no Silent Hill.
- Estamos indo trabalhar com o quê?
- Gado! – respondeu o Cael seco..
- Mas nem jantamos ainda – disse arrancando gargalhada dos dois.
Por mais irritante que fosse a presença do meu primo e do seu "lacaio", eu decidi que não iria ceder às provocações.
- Jantamos antes mesmo das 20 horas. Você que dormiu muito.
- Jantaram às 20 horas? E que horas são agora?
- Quase 05 da manhã rapaz! – disse o Tomé.
"Quase 05 da manhã? – disse a minha mesmo – Onde eu estive todo esse tempo?"
Descemos a montanha onde inúmeras casas estavam acesas e várias pessoas andando com lampiões pela estrada de terra.
- Por que estão todos acordados? – perguntei ao ver que não eram apenas uma ou duas pessoas, mas sim, dezenas.
- Esses aí são seus novos vizinhos. Para ser mais exato, maioria deles tira leite e o restante cuidam da hortifrúti – respondeu o Tomé.
- Os que tiram leite levantam cedo para ordenhar as vacas. Já que os leiteiros estarão na porteira ainda de madrugada. O pessoal que cuida das plantações já estão acordados porque os compradores de legumes, verduras e frutas, já estão aqui há 01 hora. Sem falar que eles precisam regar as verduras antes da geada.
- Por que regar tão cedo?
Ele abriu os vidros, deixando aquele ar congelante entrar. Até eu que estava muito bem agasalhado, senti meu corpo tremer.
- O que sente? – perguntou ele acelerando a camionete, derrapando nas curvas, me fazendo espremer com o Tomé.
O frio queimava minhas bochechas e meus olhos lacrimejavam.
- Frio! – respondi seco – Já entendi Cael.
- Você não prestou atenção onde você está? Onde fica Poti?
- Longe – respondi seco.
- Longe é São Paulo! Aqui é o "Cu-do-Mundo". Apenas uma rodovia para chegar aqui e, a próxima cidade fica só 120 kilômetros daqui. Eles acordam cedo para estar ainda cedo em suas cidades.
- Entendi! Fico feliz que trabalharei no escritório. Não vou precisar acordar de madrugada e no frio.
O Cael soltou uma risada grave. Daquelas que dava uma imensa vontade de arrancar os dentes dele com um porrete.
- Eu sou o dono daqui e acordo sempre esse horário. Você foi intitulado como segundo dono. Aquele que colocara tudo isso e todas as coisas no papel. Será o cara que meu pai tanto quer que seja.
- Ok!
- Espero que tenha entendido que, como segundo dono, você estará ao meu lado até entender como às coisas funcionam.
- Seu pai disse que ficaria apenas no escritório.
O Cael pisou com toda força no freio, fazendo eu quase bater a cabeça no painel da camionete. Senti o braço forte do Tomé me afastando o máximo dele, me espremendo na porta.
" Porque mais uma vez aquele desgraçado queria me bater."
- Já estou quase botando fogo nessa montanha porque meu pai te colocou aqui. As instruções são muito claras. "Yuri Martel irá ajuda a administras sua fazenda". E entender sobre a fazenda é fundamental, não é?
- Sim Cael!
- Então até você souber qual a diferença entre uma vaca e uma galinha, você irá fazer exatamente o que eu mandar.
Respirei fundo para pensar numa resposta, mas engoli suas palavras mais uma vez.
- Sabe o meu pai? Eu o odeio mais que tudo nessa vida. Então não fale dele para mim. Principalmente o que você deve ou não.
- Sem problemas!
Ele acelerou a camionete, parando poucos metros a frente.
- Onde estamos? – perguntei ao Tomé, tampando o nariz pelo cheiro forte de urina.
- Esse aqui é um dos currais. Esse em específico é para quando nasce um bezerro.
- E o Cael é que faz o parto? – perguntei arrancando uma gargalhada do Tomé.
- Você fala engraçado – disse o Tomé com um sorriso largo.
- Estou vendo mesmo. Vocês riram em um dia mais do que qualquer pessoa já riu de mim em anos.
- O Cael não faz o parto. Apenas gosta de estar presente em todos.
- E como ele sabe quando vai nascer ou não?
- Ela entra em trabalho de parto assim como uma mulher. Tem dores e contrações. Os responsáveis por essa área são aqueles dois argentinos, o Aldo e o Juan – disse o Tomé apontando para dois rapazes de cabelos compridos – Vamos lá. Eles são especialistas nisso. Cada vez que um bezerro está pra nascer, eles nos chama pelo rádio e logo descemos.
Entramos num estabelecimento estreito, porém, muito comprido. Feito com madeira e chão de barro. Lá tinham várias divisórias, umas com vacas dentro, já outras, tinham feno e outras nada. Mas nada era comparável com o cheiro forte de urina e fezes de animais. Era tão forte que me embrulhava o estômago e enchiam meus olhos d'água. Precisava sair logo dalí. Todos eles usavam aquelas fantasias bem colorida de gaúcho. O único que destacavam dentre eles era o Cael trajado da cabeça aos pés de negro e eu com roupas normais.
- Por que todos se vestem assim? – perguntei ao Tomé.
Meu primo bufara ao meu lado.
- Que roupa deveríamos vestir aqui no sul do Sul?
- Entendo! É que nunca vi alguém usá-las na minha frente. Exceto festas de folclore os das nações.
- Aqui o estranho é você. O folclore é você. Você é a piada. As pessoas aqui vestem essas roupas.
Me sentia até envergonhado com meu abrigo que comprara naquelas lojas de departamento que meu pai me obrigara.
- Deve haver alguma roupa dessas sobrando de alguém.
- Sobrando de alguém? – perguntei fazendo meu primo fungar.
- Assim que você ganhar seu primeiro salário, você poderá comprar suas próprias roupas – disse ele entrando a passos acelerados até o fundo do curral – Você fique aí.
"É um favor que você me faz!"
Ele nem ligava por onde pisava ou relara. Não ligava se sua roupa escura sujasse com madeira, feno, ou suas botas se enchiam de fezes de cavalo. O povo daqui deveria fazer fila para lavar os trajes dele.
- Notei que o único que usa trajes não cor preto é o Cael, por quê? – perguntei ao lacaio.
- Cheio de dúvidas você Yuri. Se não souber como tirá-las de alguém, você pode acabar em mal bocados.
- Mal bocados por perguntar demais?
Ele apenas me fitou. Isso significava que essa pergunta estava lhe incomodando.
- Seu primo começou a usar tudo negro assim que o irmão dele morrera afogado. No começo, achamos ser apenas uma fase e que logo passaria. O pensava ser luto, virou algo simbólico para cada morador.
- Como assim?
- Eu era caseiro quando cheguei aqui. Usava bombachas cinza. Era a única bombacha que eu tinha na vida. Mais tarde o Cael adotara um criador de gados. Ele usava apenas bombachas caramelo. Mais tarde começamos a plantar e apareceu um rapaz de bombachas azuis.
- Entendi. Cada cor significa uma área de trabalho.
- Cada cor de bombacha e colete. As camisas, lenços e chapéu, cada um compra o que achar melhor.
- E a roupa preta do Cael?
- A roupa preta do Cael significa ser o dono de tudo isso aqui. Significa ser o líder que escolhemos. Ele é muito difícil, mas ao mesmo tempo, é amado por todos. Todos aqui somos família que não tiveram para onde ir. Sem tetos, sem terra, mendigos, uns drogados.
- E ele não tem medo de ser roubado, morto, espancado? – perguntei enquanto um filme passava pela minha cabeça, sobre várias desgraças que poderiam acontecer com o Cael.
- Como eu disse, ele é amado. Antes de dele, éramos ninguém e agora somos alguém no mundo. Temos casa, comida, trabalho, lugar pra deixar nossos filhos ao invés de abandonar. Ele nos deu tudo isso. Somos eternamente gratos por ele e acredito que um dia você será. Como disse, mais detalhes, pergunte a ele – disse o negro apontando o Cael ao fundo.
- Holla Yuri – cumprimentou o Aldo com um aperto de mão bem firme.
- Oi! – respondi com um sorriso de canto.
- Holla – cumprimentou agora o Juan.
Também cumprimentei o outro argentino que logo começaram a puxar papo sobre minha vida em São Paulo.
- A cidade fica 24 horas aberta? Não pode ser! – disse o Juan trocando olhares desconfiados com os demais - Eles trabalham sem dormir?
- Lógico que não! – respondi rindo – Existe turnos e turnos trabalho. Mas o melhor mesmo são as baladas. Isso é incomparável.
- É uma pena que aqui, 120 kilômetros de qualquer civilização, 400 kilômetros de Porto Alegre e mais de 1500 kilômetros de São Paulo, não há balada alguma. O máximo que você verá aqui, será uma quermesse. Se tiver sorte do padre não morrer antes – disse a voz mais detestável daquele lugar.
Encarei o Cael por uns segundos, esperando o meu sangue abaixar. A vontade imensa de arrebentar aquela cara carrancuda.
- Caso tiver um quermesse aqui em Poti, terei o maior prazer em ir. Já que nunca fui a uma um primo.
O Cael amarrou a cara mais uma vez e me empurrou com todas as forças contra a porteira de madeira que ficava na entrada do curral. Senti uma dor fodida aonde havia levado pontos. Cael era dois palmos mais baixo que eu e duas vezes mais forte.
"Como esse anão poderia ser tão forte?".
Todas as pessoas a nossa volta se calaram. Ninguém teve reação alguma a não ser ficar parados e assistir eu ser encurralado pelo Cael. Por maior que fosse a minha vontade de brigar com ele – e eu sei que conseguiria dar umas boas porradas nele – eu ainda teria que passar por todas aquelas pessoas e depois enfrentaria aquele facão e aquela faca que meu primo andava na cintura.
- Eu mal cheguei nessa cidade e é a segunda vez que sou agredido por você – disse colocando a mão nos seus ombros e tentando afastá-lo.
Seus braços eram rígidos que nem pedra. Seus olhos negros, lábios carnudos para um Martel. Já transei com mil homens mais fortes que ele e que fizeram coisas bem mais hards na cama comigo. De certa forma, eu poderia muito bem comer aquele tourinho que estava na minha frente.
- CAEL? – chamou o Tomé a suas costas, mas ele nem piscou – Estou falando com você Cael - insistiu novamente o caseiro.
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