CAPÍTULO 07 - ZEBU CAEL


Zebu Cael

Estava sonhando quando senti alguém me acordando. Demorei a entender o que estava acontecendo.

"Sabe aquela mescla entre sonho e realidade?!"

- Vamos Cael, chegou a hora! – disse um homem de voz grave, era o Tomé. O único que tinha acesso livre a minha casa.

Demorei muito para despertar, coisas que não era muito habitual. Meu sono sempre fora muito leve e acordava num pulo por qualquer coisa.

- Você tá bem? – perguntou Tomé.

- Sim! Só com muito sono – disse colocando minha bombacha, minha bota, minha camisa, meu colete, meu lenço, meu chapéu.

O traje típico gaúcho é de cores variadas, mas eu adotei um estilo diferente. Como eu era o dono daquele lugar, escolhi usar tudo preto. Desde as botas, a bombacha, as camisas, os lenços. Era o jeito que eu escolhi para destacar dentre outras pessoas ali. Somente eu poderia usar o traje completamente preto.

- Talvez seja o tempo mudando – disse ele abrindo um sorriso.

E realmente estava mudando. Saímos da sede quando ainda escuro e com muita neblina. Uma luz embaixo da colina indicava que havia pessoas lá.

- Sei que gosta de fazer a descida a pé, mas hoje precisamos correr – disse o Tomé abrindo a porta da camionete.

Não entendi ao certo o porquê, mas entrei na camionete. Ele andava rápido enquanto eu fazia força para me segurar, antes que batesse a cabeça em alguma coisa.

- É um bom dia? – perguntei olhando para frente.

- Ela já não é mais tão nova quanto antes. Não vejo um final bom – disse o Tomé sem me olhar.

- A bolsa já estourou, saiu todo líquido, mas lá não está conseguindo fazer força – ouvi a voz do peão pelo rádio do carro.

- Estamos a caminho Aldo – disse o Tomé segurando a minha perna, num jeito de "vai dar tudo certo."

Ele acelerou mais ainda pela estreita estrada da colina. Por várias vezes achei que íamos bater, mas o que eu poderia fazer? Quando chegamos curral, Aldo e Juan já nos esperavam na porta. Saltei da camionete o mais rápido que pude.

- Cael ela não está muy bien. Não sei porque ela não tem forças – disse o juan com sotaque castelhano.

- Acontece quando um animal entra no parto – disse pegando minha garrafa d'água e dando um gole – vou entrar lá.

Fechei a minha garrafa e entrei no curral, ao fundo, tinha uma vaca em pé, com a parte traseira toda ensanguentada, com várias coisas saindo pelas genitais. Ela se mexia demais.

- Ele está muy nervosa! – disse o Aldo.

- Ela está parindo! – disse ríspido – Ficaria nervoso se uma garrafa de coca-cola estivesse passando pelo seu rabo. Cadê o veterinário?

- Ele vai chegar em meia hora – disse o Tomé.

- Eu não disse que era para avisá-lo que hoje ela iria parir? – disse encarando o Tomé. Ele ficou cabisbaixo.

Ele sabia o quão nervoso eu ficava quando alguém desobedecia alguma ordem minha ainda mais quando se tratava de um animal. Eu ficava furioso.

- Então vá busca-lo – disse acenando para o Tomé.

Ele mal pensou e já saiu correndo rumo a camionete. Dava para ouvir o cascalho batendo contra as paredes de madeira. Respirei muito e fui até o animal que me encarava bufando.

- Essa você deveria ficar do lado de fora – disse o Aldo novamente.

Apenas o encarei para que ele não abrisse mais a boca. Sempre estou presente aos nascimentos aqui da minha fazenda. Quando digo todos, são todos mesmo! Fechei a porteira para que pudéssemos ficar a sós. Caminhei até ela que agitava muito a cabeça.

- E ai garota? Mais um filho que vai ganhar? – disse bem baixo, olhando nos seus olhos – Vai ser grande e forte como você?

Conversava bem calmo até chegar o animal. Abracei seu pescoço grosso para ficarmos mais perto, mas ela me deu uma cabeçada tão rápido, que só lembro de estar deitado no chão. A pancada no estômago me derrubou ao ponto de perder os sentidos.

- Você é durona! – disse me apoiando na parede para ficar em pé – vamos com calma.

Mas mais uma vez ela me nocauteou, acertando entre o meu estômago e minha face. A dor latejante da minha língua me fez pensar muito sobre como agiria da próxima vez. Passei o dedo dentro da boca e senti a língua cortada. Tateei os dentes para ver se todos estavam lá, mas fora apenas um susto. Cuspi uma poça de sangue.

- Você quer que tiramos o dai? – perguntou o Juan abrindo a porteira e dando uns passos para dentro.

- Por que faria isso? – perguntei ficando ereto e sinalizando para ele nos deixar a sós. Fechei a porteira e voltei para o animal.

Fui até ela que me encarava.

- Vamos facilitar isso para nós dois? – perguntei a vaca que me encarava – Quero ficar inteiro até o final do seu parto.

Disse chegando mais perto ainda e passando a mão no seu rosto. Acariciei-a por uns segundos, sentindo sua respiração ficando mais forte. Não parava de cuspir sangue do corte aberto em minha língua. Olhei para a tarde traseira dela, onde havia muito mais sangue que esse corte em minha boca.

"Não posso reclamar!" – pensei sentindo que o corte na minha boca era muito melhor do que estava saindo por ela.

Abracei seu pescoço novamente para que o animal tentasse sentir meu carinho. Fiquei até ela se acostumar.

- Eu preciso que você acabe logo com isso – disse olhando nos olhos dela – preciso ver seu filhote.

Ela se deitou e junto deite-me ao lado dela. Sentia seu corpo contraindo sempre que fazia força. Já era uma animal muito velho para dar cria, mas acabou acontecendo. Foi quando as patinhas começaram a aparecer.

- Isso aí lindona! – disse acariciando seus pelos castanhos – Mais um pouco e já acaba.

Pouco a pouco cada parte do animalzinho ia saindo, até que de uma só vez, ela expeliu todo bezerrinho. Ela logo fez força para ir até ele e ajudar a sair da placenta.

- É isso aí garota! – disse dando um tapinha no seu lombo e me dirigindo até a porteira.

Agora a história era com ela. Ela deveria tirá-lo de lá e ficar perto para que ele pudesse ficar de pé o mais rápido possível.

- Quiero que saiba que admiro seu modo como trata los animais – disse o Aldo – Eles são mucho apegados a você.

- Precisa dar um jeito nessa boca. Você cortou qual parte? – perguntou Juan.

- Na língua. Tá bem feio – disse colocando-o pra fora .

- Precisa ir ao médico – disse o Aldo fazendo careta ao me ver ensanguentado.

- Nesse fim de mundo? Mais fácil o Papa vir até nós. Vou pedir ao veterinário mesmo que me costure – disse cuspindo mais um bom tanto de sangue.

Esperei até que o veterinário viesse para costurar minha língua.

- Quantas vezes terei que costura-lo Cael?

- Há muito corpo para costurar doutor. Que graça teria se viéssemos ao mundo e não quebrássemos nada, não tivéssemos cicatrizes, não nos machucássemos?

- Tá aí algo que nunca pensei nos meus 40 anos de vida! – disse o doutor me cumprimentando.

- Mas se continuar nesse ritmo Cael, não vai sobrar o que costurar – disse o Juan.

Ficamos jogando papo enquanto o rapaz costurava a minha língua. Admito que era pior que eu imaginava. Sem falar que não havia anestesia.

- Pronto! Tente falar o menos possível, já que é uma área que você fica em constante movimento, além de ser muito úmida.

- Cael? – chamou o Juan a entrada a porteira.

Apenas acenei com a cabeça para ele poder falar.

- Ela tá morrendo! – disse ele vindo até mim.

Segurei a sua mão e, com sua ajuda, levantei num pulo. Fui até a porteira e vi o bezerro em pé ao lado da mãe deitada. Corri até ela que estava com a respiração fraca.

- Tomé? – chamei o caseiro.

- Sim Cael!

Fui até o animal e deitei ao seu lado. O seu cheiro de gado entrava nas minhas narinas. Sua respiração era funda e longa.

- Ela perdeu muito sangue. Ela... ela está indo – disse o Tomé olhando nos meus olhos.

Olhei para o pequeno bezerro que estava se equilibrando nas suas patas.

- Ela não está morrendo! – disse o veterinário – Quer dizer, ela vai morrer, mas porque não tem forças para empurrar o seu outro filhote.

- OUTRO FILHOTE? – perguntei dando um pulo e ficando ao seu lado.

Sim, as patas dianteiras estavam aparecendo. Embaixo, uma imensa poça de sangue se formava.

- É um gado muito antigo Cael. Pensa bem sobre não deixá-la sofrer tanto – disse o veterinário agachando ao meu lado – Tiramos o bezerro e sacrificamos a mãe.

- Não sacrificaremos ninguém! – disse sem olhar nos seus olhos.

- Mesmo que não a sacrificarmos, mesmo que ela consiga fazer o parto, ela não aguentaria a perda de sangue.

- Juan? – chamei o rapaz que estava ao pé da porteira – retire o veterinário daqui.

Não acreditando muito nas palavras que eu acabara de dizer, o próprio veterinário se levantou e saiu o mais rápido de perto.

- Acho que ele foi embora Cael - disse o Juan ao ouvir o som do carro ligando.

- Ele vai superar! Agora, preciso que todos vocês saiam daqui – disse encarando o Juan.

- Podemos ficar para ajuda-lo – disse o Aldo.

- Me... deixe... sozinho... – disse pausadamente para não ter que explodir com eles novamente.

Fui até a parte traseira e com ajuda dela, retirei o outro bezerro.

- JUAN? – gritei para o argentino que entrou mais que um raio – retira a placenta dele.

- E a mãe dele. Morreu – disse ele.

Era verdade. Ela parou de respirar.

- SAI DAQUI AGORA – berrei com o Juan.

- Mas o bezerro?

- SAIA – mandei.

Deitei ao lado do animal morto, peguei minha correntinha, dei um beijo e comecei a rezar. 

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