CAPÍTULO 04 - YURI MARTEL
Narrado por Yuri Martel
"Quero deixar claro que fiz de tudo para entender que a vida vale muito em tão pouco tempo".
- Meu nome é Yuri Martel...
- Bom dia Yuri! - interrompeu o coro de vinte vozes a minha volta.
- Bom dia! - respondi sem olhar nos olhos das pessoas - Tenho 35 anos de idade. Sou formado em Administração de Empresas e, uma empresa, é o lugar que não gostaria de voltar. Isso se eu tivesse escolha. Claro, a não ser a empresa do meu pai. Lá eu poderia fazer o que eu quiser na hora que bem entender e ganhando dinheiro. Ele é dono de uma construtora no ramo de estruturas metálicas. Vivo do dinheiro dele. Quero dizer, sou "bancado" por ele desde que me conheço por gente. Trabalhei em dezenas de lugares até perceber que não pertenço a lugar nenhum. Então, faço o que mais gosto, vivo minha vida da melhor forma possível. Já fiz tantas coisas, conheci tantos lugares, tantas pessoas, tantas comidas, tantas bebidas, tantas mulheres, tantos homens precisaria escrever um livro pra recordar de cada um deles. Já viajei para cada Estado desse Brasil imenso e, em cada lugar, fiz inúmeros amigos, colegas, amantes e inimigos. Um homem com grandes ambições tende a ter grandes inimigos. Cada um deles tirou uma parte boa da minha curta vida. Nem sei por onde todas essas pessoas andam hoje. Única coisa que sei, é que estou aqui, sentado com um bando de garotos sem futuro que nem eu.
Vários daqueles rapazes balançavam a cabeça negativamente.
- Investi tanto em conhecer o Brasil e o que ele tem a oferecer, que não existe uma pessoa que usa redes sociais que não conheça o "Yuri Martel". Para ter noção, quando eu vim para cá, tinha cerca de 117 mil seguidores.
- Agora você tem 259 mil seguidores Yuri - disse um rapaz que deveria ter no máximo 18 anos.
- Porra! 259 mil? - disse soltando uma gargalhada que fez todos me olhar com mais cara de nojo.
- É cara! Após você vir para cá, seus "fãs" fizeram milhares de enquetes para saber o seu paradeiro. Houve especulações sobre você estar namorando e deixou de lado seu Instagram e Facebook.
- Eu li um bando de meninas dizendo que você tinha sido sequestrado - disse outro rapaz que se enchia de orgulho por eu lhe dar atenção.
- Lembra aquele dia que comentamos sobre uma carta de suicídio que você "publicou", mas que depois a polícia desmentiu? - disse outro garoto apontando para mim.
- Eu li até sobre assassinato - disse o Luca, meu único amigo dentro daquele lugar.
Gostava do Luca. Ele não era que nem a maioria. Sabia que a vida tem seus altos e baixos. Sabia que devemos confiar apenas naqueles que são muito próximos a nós. Não era falso e muito menos fazia questão de aporrinhar com besteiras.
- Não acredito estejam falando tudo isso de mim! - exclamei tapando o rosto com as mãos para não rir.
- Vejo que a exaustiva tentativa de excluí-los do mundo exterior não está saindo tão bem quanto o Diretor acredita?! - disse a Tati, nossa psicóloga que comanda as sessões em grupo.
Todos ficaram calados enquanto ela olhava nos olhos de cada um. Todos culpados. Falo isso porque ninguém tinha a coragem de encará-la. Quer dizer, nem todos. Eu era o único que não fingia e fugia da verdade. Eu cago e ando pelo o que pensam de mim e gostaria de receber deles o mesmo tratamento: "sinceridade". Algo raro dentro daquele grupo. Gozado todos fingirem ser santos aqui na internação, enquanto aqui é o único lugar que eles se misturam com seus semelhantes e possam "confessar seus pecados". Então, por que temer contar algo no meio de tantas pessoas que são tão ruins ou piores que você?
- Não sou o Diretor de você e, muito menos, vou dedurá-los. Quero que saibam que sou amiga de vocês, para o que precisarem aqui dentro.
"Amiga? Chama essa cara de sonsa e esse sorriso de quem pouco se importa se estamos vivos ou mortos de amiga? Se esse bando de "filhinhos de papai" acha que você é amiga deles, estão todos ferrados!" - disse a mim mesmo enquanto muitos deles davam sorrisos.
- Vamos continuar Yuri. Fale sobre seu dinheiro - disse ela cruzando as pernas.
- Dinheiro que não vem do meu trabalho, mas sim, da herança que estou antecipando. Gastei tanto dinheiro que muito de vocês jamais sonhariam em ter. Eu tenho uma lei: Pra que começarmos a gastar aquilo que herdaremos apenas quando ficarmos velhos e sem condições de usar? Meu corpo não vai ficar firme por muito tempo, meu pau não vai funcionar como funciona quando eu for um velho. Então a antecipei.
"Adorava ver a cara de espanto que as pessoas faziam com meus depoimentos. Não gosto de falsidade e nem mentira, por isso não sou uma pessoa que fica no "faz de conta" quiçá "jeitinho brasileiro". Posso não ter feito nada de bom, mas ficava orgulhoso como eu tinha mais moral que qualquer ser humano naquele grupo de ajuda."
- Há pessoas que não ligam se você é um cara forte de academia ou se seu pênis fica ereto toda hora - disse ela buscando apoio dos garotos.
- Hunf, fala sério Tati! -
- Acho que você está generalizando... - disse um garoto sentado ao meu lado.
- Pode até ser que no fundo todos acabem amando a pessoa da forma que realmente ela é e, não somente a tetas firmes ou por ter um pauzão que funciona. Só que uma coisa eu aprendi Tati, ninguém nega o desejo em possuir um belo corpo, com belos peitos, bunda ou um pau gigante quando os vê ali, bem na sua frente. Posso tirar a roupa aqui e agora para comprovar sua tese. Mas nem todos aqui se interessam por outros homens. Mesmo que sejam apenas para invejar o corpo do seu "amigo" - disse fazendo sinal de aspas - Podemos até ir ao setor das meninas onde você ficaria espantada com a sua falsa teoria que muitos não olham para um belo corpo ou pinto. Só completando: digo isso, porque saí com centenas de pessoas que só falavam em apenas "beleza interior", mas não deixavam de olhar uma mina tão gostosa ou um cara sarado nas praias ou até mesmo nas redes sociais. Entre num grupo de namoro, desses que você vê no Facebook, e veja quem são os mais "cotados". Eu vivi nisso e vivi disso, tanto para saber que você mal sabe do que está falando.
- Pois bem Yuri! Pessoas que só procuram corpos - completou-a cruzando a perna para outro lado - Não irei contrariar alguém com seu curriculum.
- Eu não sou assim! - disse o Luca.
"Luca, meu único amigo aqui dentro, riscando seu nome da lista de "amigos que conquistei" da minha vida!" - pensei enquanto encarava aquele garoto loiro, de olhos negros e nariz comprido.
- Diz isso, mas quando pega o celular na mão, faz contorcionismo para sair bem na foto - disse arrancando risadas dos puxa-sacos.
- Não é porque é o mais velho aqui que você precisa sair humilhando as pessoas. Do que adianta ter saído de casa para conhecer o Brasil inteiro se o Brasil inteiro fica dentro do seu umbigo? - completou o rapaz fechando a cara.
- Do que adianta? Nada que vá mudar a sua vida, fica frio! - disse estralando o pescoço.
- Grupo de ajuda é para compartilhar experiências, para que elas possam acrescentar algo ou nos ensinar sobre a vida.
- Se grupos e sessões ajudassem alguma coisa, talvez hoje, você não teria mais emprego. Sabe Tati, as pessoas só entendem aquilo que elas possam enxergar, tocar, sentir, ouvir, experimentar. Caso contrário, é pura perda de tempo.
- Nem todos Yuri - disse a Tati.
- Talvez um ou outro, mas os demais estarão apenas sendo aprisionados dentro de pseudo "jaulas" que os pais e psicólogos criam, achando que vão mudar alguma coisa. Sabe o que acontece quando um animal fica tempo enjaulado? Ele enfurece. E, quando está furioso, ninguém pode para-lo. É assim que surgem os grupos de ajuda.
Todos me encararam com mais nojo ainda. Prefiro assim. Pelo menos não gostam de mim pelo que realmente sou.
- Continue Yuri - disse a Tati rispidamente.
- Tem a parte que fui noivo por dois anos. Mas, se eu contar os dias que fiquei ao lado da minha noiva, não chega há dar dois meses seguidos. Dizia a ela que iria viajar a trabalho enquanto, na verdade, estava frequentando festas, bares, saunas e todos os lugares onde o prazer da carne fala mais alto. Sempre transando com mulheres e homens.
- Você é bi? - perguntou um novato. Pelo jeito era sua primeira semana. Pois não o vi na sessão do grupo da semana passada.
- Quando se usa drogas, quando se perde a noção de quem é você, quando o que você quer é apenas prazer e poder, você não faz questão se está beijando ou transando com homens ou mulheres. Seu único foco é o prazer. Prazeres que acabaram com tudo que tive.
- Tudo o que? - insistiu o novato.
- Tudo! Hoje não tenho mais meu apartamento, meu carro, meus objetos pessoais, minha centena de amigos, minha família inteira. Todos que conheço esqueceram que eu existo. Pelo menos fazem questão disso! E provavelmente é o que estão fazendo na sua casa. Jogando você fora da vida deles antes que você possa consumir com algo pior. Antes que o vejam roubando, batendo no seu irmão e até nos pais.
- Meu irmão me ama e minha mãe também! - disse o garoto com os olhos marejados.
"Fraco!" - pensei comigo, pois se continuasse, era capaz de haver mais outro suicídio aqui dentro.
- As drogas me levaram a prisão. Não olhem com essa cara de espanto, opis não matei ninguém. Apenas fiquei preso por comer um cadáver.
- Que isso Yuri?!
- Sério. O cara teve overdose enquanto estávamos transando. Como meu esperma foi encontrado dentro dele, me acusaram de homicídio culposo. Como eu já havia sido preso 04 vezes por porte de drogas, não coube habeas corpus. Então fiquei 01 ano e meio preso. Exame de sangue constatou que o cara havia usado uma substancia que eu não tinha consumido. Sendo assim, fui apenas julgado por comer um cadáver.
Todos estavam atônitos. Ninguém nem chegava a respirar. Enquanto eu falava. Não era pra isso que serviam as sessões, para dizer a verdade?
- Mas Tati, tudo o que perdi de valor, tanto material quanto sentimental, não é pior que perder a própria liberdade. Perder o controle do seu corpo. Perder seu livre-arbítrio. Ter medo de sair de casa e não saber se volta mais, ou seja, não posso andar sozinho e, caso isso ocorra, tem que ser durante o dia e sem dinheiro algum na carteira. Tenho que avisar o horário que saio e o horário que volto, com quem estou andando e, lógico, essa pessoa tem que ser de extrema confiança. Então camaradas, não passo de um prisioneiro da minha própria mente. Prisioneiro de algo que pude evitar, mas não evitei, na busca de tentar viver o máximo possível. Disse agora há pouco que fiz muito inimigos, mas nada comparado em ser seu próprio inimigo. Induzido pelo poder de drogas. Essa sim, de todos os inimigos que fiz na vida, sem dúvidas, tirou o maior pedaço de mim. Sem falar no tempo que nunca mais voltará.
- E o que tem a falar sobre o dia de hoje? Qual é seu sonho de vida? - perguntou a Tati me encarando com ar de "caso perdido".
- Hoje é o centésimo octogésimo sexto dia aqui no Instituto. São cento e oitenta e seis dias "limpo" das drogas. São cento e oitenta dias que não sei o que se passa lá fora. Conto nos dedos o dia para sair daqui. Mas hoje, quando chegou o tão esperado dia, não sinto-me entusiasmado. Continuo com o mesmo medo que entrei. Continuo com a mesma sensação que posso recair assim que sair daquela porta.
Todos estavam me encarando naquele momento. Todos que tinham esperanças queriam que eu dissesse o contrario, mas não. Não poderia dizer aquilo que estava dentro de mim. A única certeza de todas. Não há cura.
- O que você quer dizer? - perguntou o Luca quase sem voz.
- Desculpe minguar a fé de vocês em vocês mesmos. Mas é isso que eu aprendi nesses 186 dias. Não estou pronto. Não há como voltar à vida que tinha antes de tudo isso acontecer. Sinto que serei prisioneiro de mim mesmo para o resto da vida.
- Não será! - disse a Tati quebrando o clima que eu havia provocado em todos - Há esperança para você. Mesmo que não acredite. Você continuará o tratamento fora daqui.
- Mas estarei nas ruas novamente! - disse sentindo a garganta apertar.
- Não queria passar toda sua vida trancado aqui dentro, não é Yuri? - disse ela sorrindo.
"É, tenho que admitir que esse sorriso trazia me um certo conforto."
- Não aguentaríamos você por mais 01 dos seus 186 dias - disse ela arrancando uma gargalhada de todos.
- É, seria uma dose a mais de Yuri Martel para todos - disse rindo. Porém, ninguém retribuiu minha ironia.
- Yuri Martel, desejamos a você toda força que necessita para continuar limpo - disse a Tati abrindo um sorriso.
- Boa sorte Yuri! - desejou o coro de vinte vozes.
- Tá! - disse me levantando e indo para o meu quarto.
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