O Que Esconde O Guarda-Roupa
Everybody's feeling warm and bright
It's such a fine and natural sight
Everybody's dancin' in the moonlight
❀❁❀
Yumi caminhou descalça sobre uma superfície dura e fria, fechando os olhos pela intensidade ofuscante da luz e usando as mãos para afastar os objectos suspensos no seu caminho. Quando a textura do chão mudou e os obstáculos desapareceram, Yumi abriu lentamente os olhos, não conseguindo acreditar no que estes viam quando o fez.
O escuro da noite do outro lado do guarda-roupa tinha dado lugar à claridade matutina; a superfície dura do chão transformara-se em relva fresca e, a toda a sua volta, uma floresta densa e luxuriante estendia-se até onde o seu olhar alcançava.
Voltando-se para trás, Yumi viu uma gruta cuja entrada se encontrava obstruída por inúmeras lianas e trepadeiras. Recordando-se das sensações nas mãos e na planta dos pés, ela percebeu que em algum ponto da sua caminhada, que tinha sido demasiado longa para a profundidade do armário, os vestidos e casacos pendurados tinham dado lugar às trepadeiras e que a madeira sobre a qual andara se tinha transformado em pedra.
A floresta à sua volta parecia vazia e segura, pelo que a menina se deixou vencer pela curiosidade. Aquilo não era parecido com nada que alguma vez tivesse visto e se Yumi não conseguisse voltar àquele lugar encantado noutra ocasião, ficaria muito desiludida por não o ter explorado quando teve oportunidade.
Os seus pés descalços percorreram com cautela os trilhos virgens da floresta, envolta no mais profundo silêncio. A menina não via qualquer sinal de vida que não fosse vegetal. Nem mesmo o mais pequeno dos insectos.
Subitamente, algo a chocou, fazendo-a estacar, atordoada. Yumi tinha ouvido um som!
Mas tão depressa quanto veio, foi-se. O silêncio envolveu-a de novo, fazendo-a duvidar da realidade daquele momento. Mas depois, lá estava ele outra vez! E mais outro! E outro!
Eram pequenos clicks e grunhidos agudos. Pareciam estar muito perto, mas Yumi não via nada à sua volta que pudesse emitir aqueles sons.
Um movimento nos arbustos altos chamou a atenção da menina que, sem pensar duas vezes, correu naquela direção. Segundos depois, os arbustos davam lugar a uma enorme clareira com um grande lago no centro. E, para seu espanto, havia ali gente.
Não, não eram pessoas. Mas pareciam pessoas.
Eram criaturas avermelhadas de aspeto humano, mas que mal tinham a sua altura. Tinham pequenas antenas na testa, orelhas pontiagudas bifurcadas, pouco ou nenhum cabelo e roupas curtas e de cores neutras. Saltitavam alegremente em torno do lago, brincando com pequenos animais coloridos e, quando os seus pés deixavam o chão, dois pares de asas translucidas apareciam nas suas costas, permitindo-lhes voar.
Yumi deixou-se ficar ali na orla da clareira, a admirar as criaturas. E foi ao vê-las ao longe a abrir a boca que ela percebeu duas coisas: primeiro, eram os seres que produziam os clicks; segundo, ela não os conseguia ouvir propriamente. Não com os ouvidos, pelo menos.
Mesmo estando a muitos metros de distância, Yumi conseguia ouvir os sons que as pequenas criaturas emitiam como se estas estivessem mesmo ao seu lado. Ou dentro da sua cabeça. Isto levou-a a concluir que, de alguma forma, os sons daqueles seres conseguiam ultrapassar os seus ouvidos defeituosos e chegar diretamente ao interior da sua cabeça — ou qualquer coisa parecida.
Yumi gargalhou com a revelação. Estava finalmente a ouvir, de uma maneira ou de outra. A sua maldição silenciosa fora quebrada ali.
Mas ao gargalhar, atraiu a atenção das criaturas, que a olharam com olhos arregalados de medo. A menina enterrou-se no arbusto ao seu lado no mesmo instante, rezando para que eles não a tivessem visto. Com os pés descalços na terra e os joelhos comprimidos contra o peito, Yumi escutou os clicks e grunhidos.
As folhas à sua frente mexeram e ela fechou os olhos com força.
No entanto, os toques que sentiu a seguir eram gentis. Faziam cócegas. E ao voltar a abrir os olhos, descobriu que as criaturas a convidavam, por gestos, a juntar-se a elas.
A menina aceitou, encantada, e brincou com eles e com os animais estranhos por muito tempo. Só horas depois, ao deitar na relva e encarar o céu do início da tarde, é que percebeu o passar do tempo. Assustada pela nova posição do sol, tão longe daquela que ele tinha quando ela ali chegou, Yumi tentou usar gestos para se desculpar às criaturas e saiu a correr, sem saber se tinha sido bem sucedida.
Encontrou a sua gruta sem grande dificuldade e percorreu-a, com medo do castigo que a esperaria do outro lado. No entanto, ao abrir lentamente a porta do armário no fim do caminho, ficou espantada por ainda ver o breu noturno.
Retornando à sua cama em silêncio e olhando o relógio sobre a porta do quarto, Yumi percebeu que as poucas horas que tinha tinha passado do outro lado se tinham traduzido em minutos ali e que ainda dispunha de algumas horas para dormir.
Cansada como estava, não demorou para a pequena adormecer, apesar das suas preocupações.
O dia seguinte pareceu arrastar-se infinitamente, especialmente por Yuri ainda estar de cama. Yumi teve de esperar impacientemente até ao cair da noite para um dos seus desejos ser atendido. Ficou radiante quando viu a ténue luz começar a surgir do guarda-fatos e correu até ao outro lado, chegando a tempo de assistir ao nascer do sol naquele mundo encantado.
Todas as noites o ritual se repetiu. Sempre que a luz surgia no armário, Yumi entrava e caminhava até à clareira do outro lado, onde se juntava aos seus novos amigos, para os abandonar apenas ao pôr-do-sol, meia hora antes do alarme de despertar tocar na Instituição.
Com o tempo, ela foi começando a conseguir distinguir as intenções não só por detrás dos clicks, como também da linguagem gestual que por vezes os acompanhavam e que era tão diferente da que usava.
A menina descobriu também que aquele povo cantava e que o seu cantar tinha magia. Sempre que os grunhidos agudos eram transformados em melodias, os objetos para os quais eles cantavam alteravam-se conforme a música entoada. Ela viu com maravilha flores florescerem em segundos, árvores pequenas a crescer e produzir muitos frutos maduros num piscar de olhos, uma pata partida de um animal a ser curada sem dor e uma coluna de água do lago a dançar ao sabor da vontade do seu manipulador.
Porém, certa vez, aconteceu uma coisa diferente. Ao chegar de manhã à clareira, Yumi encontrou uma estranha azáfama. As criaturas corriam de um lado para o outro, carregadas de comida e adereços, que dispuseram sobre mantas no chão, estendidas em torno de pequenas fogueiras. Parecia que se preparavam para uma festa.
Chamada pelas criaturas, Yumi correu a ajudar a carregar travessas com iguarias para as mantas no chão. Finda a tarefa, os clicks cessaram e a clareira mergulhou no silêncio. A menina, curiosa, voltou-se para onde as criaturas estavam viradas e ajoelhou-se com elas, por precaução.
No cimo da colina estava uma criatura diferente das outras: era uma fêmea de pele avermelhada e antenas como as demais, mas esta era um pouco maior que Yumi, tinha longos cabelos esbranquiçados e hastes na cabeça, tão escuras quanto o vestido que trazia no corpo e que lhe conferiam um ar de enorme majestade.
Depois de analisar a maneira como os seres à sua volta se dirigiam à nova figura que se aproximava, Yumi imaginou que ela fosse a sua Rainha. A monarca foi sentada num lugar de honra sobre um assento esculpido em madeira e as festividades, que a menina nunca chegou a descobrir o propósito, tiveram início.
Durante toda a manhã, Yumi brincou com as criaturas de sempre. À tarde, a própria Rainha saiu do seu poiso e escolheu a pequena humana como parceira de jogos e brincadeiras. Yumi não podia estar mais feliz. Sentia-se extremamente abençoada por poder brincar com a Rainha daqueles seres, que se mostrou muito simpática e cheia de sentido de humor. No que tocava à humana, ela gostaria de dizer que se tinham tornado amigas.
O banquete teve início antes do pôr do sol. A Rainha ignorou o trono de madeira, sentando-se no chão com o seu povo e, com alguns clicks e um aceno, convidou Yumi a sentar-se ao seu lado. Envergonhada, a humana aceitou.
Durante a refeição, vários seres fizeram demonstrações de magia através de belíssimas melodias. Yumi ficou maravilhada com todas as apresentações, mesmo as que chamaram menos a atenção do público.
Sabendo que estava na hora de voltar, a menina levantou-se do seu lugar e começou a despedir-se dos seres à sua volta. A Rainha, vendo que ela se queria ir embora, impediu-a e levantou um dedo à sua frente. Yumi sentou-se e esperou, confusa com o gesto.
Os clicks de conversa desapareceram e uma melodia chegou à cabeça de todos. A menina olhou a zona de actuações, mas esta estava vazia. Foi apenas ao olhar em volta que reparou que era a própria Rainha que estava a cantar.
E que linda melodia cantou! Yumi não viu nenhum efeito físico que denunciasse a magia que a melodia carregava, como tinha acontecido nas atuações anteriores, mas sentiu o poder da canção na sua alma. Ela ficou de tal maneira afetada que ainda se encontrava a limpar as lágrimas que a canção lhe provocara quando chegou à entrada da gruta.
Contudo, foi apenas instantes depois, ao chegar ao quarto, que a menina compreendeu todo o poder que a melodia da Rainha carregava.
1571 palavras
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