O Reino Yawara
Já estava atrasado pra faculdade, saí do escritório com meu chefe me cobrando um relatório de compras de materiais, que deveria ter sido feito e entregue pelo incompetente do meu companheiro de setor e de seu estagiário, mas que como sempre, acabaram caindo no meu colo. E agora a minha "queridíssima mãezinha" inventou que eu tenho que passar na casa da minha avó pra pegar não sei o quê pra ela. Só falta agora, pra ser coroado o dia de merda, a minha namorada ligar e desmarcar o jantar com seus pais, que ela marcou a dois meses, e me lembra diariamente disso... Por que todo mundo tem que ser tão desleixado... Porra, celular tocando mais uma vez... Minha mãe novamente...
– O que é dessa vez, dona Marina... Já estou indo na casa da velha bruxa...
– Alisson, isso lá é jeito de falar de sua avó! Minha mãe não é nenhuma bruxa... Tenha mais respeito...
– Fala logo o que eu tenho que pegar lá, mãe... Tenho o dia todo não...
– Deixa de ser rabugento, meu filho... Não foi essa criação que eu e seu pai te demos...
– Fala duma vez, dona Marina, ou vou desligar a porra do celular... Anda, que ainda tenho o bendito jantar na casa dos pais da Giovanna hoje.
– Por que você não é igual a sua irmã...
– Porque eu sou homem, dona Marina... Gosto de mulher... Minha irmã que é errada, devia gostar de homem, e não ser mais uma sapatão... Onde já se viu... A rua toda vive falando dela... Se veste que nem um moleque... O pai da Giovanna quando a viu, perguntou se Aline era meu irmão...
– Alisson, meu filho, sua irmã é maior de idade, responsável e não está atrapalhando a vida de ninguém... Que mania feia essa sua de se importar com o que as outras pessoas dizem.
– Tá bom, mãe... Vamos mudar de assunto... O que eu tenho que pegar na casa da velha...
– Ai meu deus, onde eu e seu pai erramos na sua criação, pra você ser assim, tão preconceituoso e retrógrado...
– MÃE, diz logo o que eu tenho que pegar!
– Tá bom, filho ingrato. É uma encomenda para o seu pai. Sua avó está te esperando só pra te entregar. Vê se não demora pra chegar lá, porque ela vai precisar sair.
Desliguei o celular e entrei no carro. A aula já estava perdida mesmo, porque até eu chegar na casa da velha bruxa e voltar, já foi metade do dia. Peguei o carro e fui. Parei num posto pra abastecer, porque a minha avozinha querida mora lá no cu de Vassouras, num sítio no meio do mato. Peguei a Linha Vermelha e fui voado, não queria voltar de noite, senão ia perder a droga do jantar. Pra minha sorte não tinha trânsito e em menos de duas horas e meia eu cheguei lá.
Porra, a velha não podia morar pelo menos perto do centro da cidade, não... Tem que ser lá no fim do mundo? O que ela tem contra cidade grande, pra gostar de viver no meio do mato? Não é a toa que meu tio diz que ela é bruxa. Que minha mãe não saiba disso, senão vai querer matar o cunhado.
Finalmente cheguei no raio do sítio... Ué, a casa tá fechada? Minha mãe falou que ela ia me esperar... Ah não... Não é possível que eu vim aqui a toa! Merda, quase duas horas de viagem pra dar de cara na porta...
– Vó... VÓ... Sou eu, seu neto Alisson... Vim buscar uma parada pro meu pai. Vó... – Merda, não tem ninguém em casa... O pior é que não tem nenhum vizinho por perto... A velha tinha que morar isolada no meio desse mato.
Rodeei a casa e nada, tudo fechado. Será que ela já está gagá e esqueceu que eu vinha. Merda, despencar lá do Rio pra Vassouras pra voltar de mãos abanando... Pior que não dá nem pra ligar pra ninguém, não tem sinal de celular nesse inferno... Ah, mas minha mãe vai escutar... Ah se vai... Me aguarde dona Marina.
Já estava voltando pro carro, quando vi um movimento na mata que fica atrás do sítio da bruxa velha que se diz minha avó. Será que a velha tava no meio do mato catando ervas pras poções dela? Não custa nada conferir, já que eu vim até aqui, pelo menos vou ver se consigo levar o que eu vim buscar, embora eu não faça ideia do que seja.
Fui andando até atrás da casinha e vi que tinha um caminho no meio da mata que circunda a casa. Olhei pra frente pra ver se via alguém, se via minha avó, ou qualquer outra pessoa que pudesse me dizer onde a velha tinha ido. Continuei em frente e quando percebi não dava pra ver a casa da minha avó, e também não tinha tido nenhum sinal da pessoa que eu pensei ter visto. Resolvi voltar, antes de me embrenhar mais ainda no meio do mato.
Estranhamente, o caminho que eu estava voltando, não parecia com a trilha que eu tinha entrado perto da casa da minha avó. Comecei a ficar preocupado. Será que eu andei demais e me perdi? Peguei o celular pra tentar me localizar pelo Google Maps, mas não tinha sinal e o aplicativo não funcionava. Tentei me guiar pelo sol, mas a copa das árvores encobria a maior parte, deixando que apenas fachos de luz solar atravessassem. Definitivamente eu estava perdido...
***
Pensei ter ouvido um rosnado baixo, perto de mim.
– Está perdido, meu jovem? – Uma voz falou de repente atrás de mim. Eu gelei... Não tinha viva alma por perto há um minuto atrás...
Fui me virando lentamente em direção a voz e me deparei com um rapaz alto e muito forte, com a pele morena e cabelos lisos e negros, como um índio. Ele me olhava e sorria, um sorriso hipnótico, com dentes tão brancos, que parecia que tinha feito clareamento dental. Vestia uma túnica estranha, que brilhava quando ele se mexia. A túnica me lembrava algo como o pelo de um gato. O pelo de um gato preto. Os olhos eram negros, como duas opalas. E me encaravam com curiosidade.
– Er... Eu... Eu estou procurando a minha avó, vim pela trilha que começa nos fundos da casa dela...
– E por que ela estaria por aqui? – Me perguntou, novamente dando aquele sorriso enigmático.
– Ela deveria ter me esperado chegar, pra me entregar a encomenda pro meu pai. Mas a velha bruxa não me esperou... Mas não sei porque estou falando isso com você, que eu nunca vi na vida. – Recuperei meu ar superior e respondi.
– Não seja por isso meu jovem... Eu me chamo Diaurum1 e vivo aqui nesse reino... Como se chama sua avó, talvez eu a conheça!
– Reino? Como assim, nós estamos em Vassouras, município do Rio de Janeiro.
– Não meu jovem, você está no Reino Yawara2, o Reino das Onças.
– Você está de sacanagem comigo, só pode, cara!
– Por que eu brincaria com você? E você ainda não disse o nome da sua avó... Como posso saber se ela está por aqui?
– Yolanda... O nome da minha avó é Yolanda. – Respondi, tentando me livrar da estranha sensação que o tal Diaurum me transmitia.
De repente começo a ouvir um rosnado e Diaurum me puxa para trás dele dizendo: – Temos que sair daqui, você foi farejado pelos Guarás... Está correndo perigo... Sozinho não consigo te defender.
Sem que eu menos esperasse, ele me colocou em seus ombros como se eu não pesasse absolutamente nada e começou a correr pra dentro da mata.
– Ei, me solta, me põe no chão! Pra onde você tá me levando, cara? – Tentei me soltar, mas não conseguia, ele me segurava muito forte para não me deixar cair enquanto corria...
– Fique quieto, se eles nos alcançarem não conseguirei te defender! Estou sozinho e eles caçam em bando. – Ele falou, sua voz parecia mais um rosnado de um bicho.
Depois de correr um bom trecho, ele parou em frente a uma árvore gigantesca, que depois ele me disse ser um Jequitibá Vermelho, me colocou no chão e me encarou. Entrei em pânico quando, ao olhar para o seu rosto, vi a face de uma onça-preta e não o rosto parecido com um índio que ele tinha. Tentei fugir, mas ele me segurou com sua mão, que agora mais parecia uma gigantesca pata.
– Vem comigo, se você ficar, está morto. – Rugiu.
Eu fiquei estático, aterrorizado. Ele me pegou em seus braços, como se eu fosse uma donzela em perigo, me colocou novamente em seu ombro e começou a escalar a árvore. Eu, em pânico, me agarrei em seu pescoço e comecei a choramingar com medo que ele me deixasse cair.
– Não tenha medo, você não vai cair... E não vou te deixar pra banquete dos Guarás! – Ele falou, como se tivesse lido minha mente.
Ele foi escalando e quando chegamos na copa da árvore, escolheu um galho que suportasse o peso de nós dois, me acomodou numa forquilha do galho com o tronco, ficou em pé e rugiu tão alto, que causou uma revoada de pássaros. Eu me encolhi todo, contra o tronco da árvore e o encarei, apavorado.
– O que... O que você quer de mim? Que criatura é você? Eu acho que estou ficando louco... Eu devo estar sonhando... Quem são esses Guarás?
– Fique calmo, não quero o teu mal. Eu sou o que os Guaranis chamam de Yaguareté-Abá3, e estou aqui pra te proteger. – Falou com a voz mansa, quase ronronando, o que me causou uma sensação estranha... Eu estava morrendo de medo, mas, ao mesmo tempo, estava me sentindo atraído por ele... O que estava acontecendo comigo? Eu estava me sentindo atraído por uma fera, um monstro, um homem-onça... Eu sou hétero, porra! O que está se passando na minha cabeça... Eu devo ter enlouquecido... Isso é um devaneio... Uma ilusão...
– Eu chamei ajuda para enfrentar os Guarás. Logo eles estarão aqui para nos ajudar. E não precisa ficar com medo, os Guarás não sobem em árvores. Estamos seguros aqui, por enquanto. E se você queria saber quem nos perseguia, olhe lá pra baixo.
Quando olhei para o chão, fiquei paralisado de medo... Havia umas sete ou oito criaturas humanoides, com cabeça de cachorro e pernas e braços longos, eram meio desengonçados, mas pareciam ferozes. De repente, uma das criaturas olhou pra cima, em nossa direção, meio que nos farejando, e quando finalmente nos localizou, deu um uivo, atraindo o restante o bando.
***
O tempo parecia que não passava, as criaturas continuavam ao pé da árvore somente esperando que descêssemos ou caíssemos. Eu, que já estava em pânico, comecei a chorar e me agarrei ao peito de Diaurum, como se fosse uma criança carente. Nessa hora, ele não estava mais na forma de fera e me abraçou ternamente, acariciando o meu rosto. Eu não sabia o que estava acontecendo comigo. Cada vez que eu tentava racionalizar que era um absurdo eu, um homem hétero, estar agarrado a outro homem, a mais de 20 metros de altura, na copa de uma árvore, chorando como uma criancinha carente, com inúmeras criaturas no pé da mesma árvore, só aguardando para estraçalhar meu corpo, meu coração teimava em me contradizer, disparando a cada carinho que eu recebia de Diaurum.
– Veja, nossa espera terminou. – Ele apontou pra baixo e eu ouvi um rugido muito alto de um felino, que fez com que os Guarás deixassem de nos olhar e se movessem como se estivessem se preparando para uma batalha.
Foi tudo muito rápido, de repente uma pequena onça saltou em cima do que parecia o líder da matilha dos Guarás, o deixando caído e criando um tumulto gigantesco no solo. Mais três onças corriam na direção do bando de Guarás, uma onça-parda e duas onças-pintadas. Elas atacavam simultaneamente pelos lados do bando enquanto a pequena onça fazia a festa no meio do tumulto. Eu fiquei tão assombrado que não reparei que Diaurum me soltou de seu abraço, me colocando numa parte bem segura do galho e se jogou do alto da árvore. Eu dei um grito de pavor. Quase não pude acreditar no que os meus olhos viam. Diaurum foi se transformando numa enorme onça-preta enquanto caía. Quando ele chegou ao solo, deu um rugido majestoso e atacou os Guarás, que, vendo que estavam em real desvantagem frente aquelas cinco onças, fugiram em desabalada carreira.
As quatro onças pararam em frente a grande onça-preta e se abaixaram, como que saudando o seu líder, que novamente deu um rugido capaz de fazer gelar os corações mais valentes. A pequena onça parecia que estava brincando, pulando entre as outras. Momentos depois eu estava olhando para cinco índios, vendo lentamente eles se transmutarem de feras em homens. A oncinha era um adolescente que ria e perturbava os outros três, sob o olhar atento de Diaurum. O índio que era a onça-parda falou alguma coisa para ele, que olhou novamente para a copa da árvore, onde eu me encontrava. Diaurum começou a escalar a árvore, até chegar onde eu estava. Me tomou nos braços novamente e foi descendo lentamente.
Quando chegamos ao solo, ele me apresentou aos companheiros: Piatã4 o adolescente que era a pequena onça, Acauã5, o que era a onça-parda, Ararê6, o maior das onças-pintadas e Aruanã7 que era a outra onça-pintada.
– Raoni8 Diaurum, Raýra9 foi ver se não ficou nenhum Guará pra trás de tocaia. Ela vai encontrar com a gente na Taba. – Ararê falou com Diaurum.
– Por que ele chamou você de Raoni? Você não me disse que seu nome era Diaurum? – Perguntei, ressabiado.
– Raoni significa Grande Chefe, pequeno Mair10 forasteiro. – Quem me respondeu foi o índio Aruanã, enquanto Diaurum e os outros três riam da minha confusão.
– Vamos para casa, antes que os Guarás se reagrupem. – Diaurum falou a todos, novamente me pegando em seus braços.
Mais uma vez me vi carregado por ele, que corria junto aos quatro índios até chegarmos em uma aldeia.
***
Fomos recebidos com festa quando chegamos na aldeia. Diaurum me apresentou aos anciãos da sua tribo: uma índia centenária de nome Moema11, e dois índios chamados Ubatã12 e Apoema13. Eles me deram as boas vindas a tribo dos Yaguareté-Abá, e disseram que minha vinda era a muito tempo esperada. Eu fiquei sem entender absolutamente nada. De repente uma pequena onça entrou correndo na aldeia e parou em frente a mim, me farejando, sob o olhar complacente dos anciãos e o olhar atento de Diaurum. Ela me rodeou, duas, três vezes e então se transformou na índia mais bela que eu já havia visto em toda a minha vida.
– É ele, meu irmão! O ser que eu vi nas chamas da noite! Ele veio! Ele está aqui! Eu estava certa!
– Sim, Raýra, ele chegou, como você predisse!
Eu não estava entendendo nada do que eles estavam falando, só sei que a cada momento eu me sentia mais atraído pelo grande índio Diaurum. E isso estava me deixando louco, pois a cada olhar e sorriso que aquele índio dirigia para mim, eu começava a sentir borboletas no estômago. Eu já tinha esquecido completamente do que tinha vindo fazer em Vassouras, na casa da minha avó, estava perdido em um mundo fantástico onde existia uma tribo de homens-onça e eu estava ficando perdidamente apaixonado pelo chefe da tribo. Quando a pequena índia disse que eu era o ser que ela tinha visto, meu coração ficou triste, era como se ele imaginasse que eu era o prometido dela e não dele. O pequeno Piatã percebeu o meu desconforto com o que a índia Raýra falou e veio saber se eu estava me sentindo bem.
– O que houve, por que você ficou triste de repente? – Ele me perguntou.
– Diaurum. Ele me trouxe aqui para a sua irmã, não é? – Devolvi a pergunta, sentindo uma tristeza muito grande no coração.
– Você, com Raýra? Nem em todos os dias de tempestade! Você é o prometido do Raoni, enviado por Rudá14! É você quem gerará o filho de Diaurum. Está na profecia. "E virá ao Reino Yawara um guerreiro branco, que trará ao mundo o herdeiro dos Yaguareté-Abá!". Os anciãos podem te explicar, mas você é o prometido do meu irmão Diaurum, não da minha irmã Raýra! – E ficou rindo.
Eu senti a vista escurecer, o mundo todo rodar e então desmaiei...
***
Se passaram oito meses desde a minha chegada no Reino Yawara. Eu ainda não sei como isso é possível, se eu estou vivendo um sonho, se eu morri, se eu enlouqueci... Só sei que neste momento eu estou no sétimo mês de gravidez de um bebê-onça, filho do chefe da tribo Yaguareté-Abá, sendo totalmente mimado pela minha cunhada Raýra, que faz tudo o que está a seu alcance para me ver feliz, se bem que a minha felicidade aumenta a cada vez que eu vejo o meu marido, o grande guerreiro voltar de suas caçadas. E a minha maior surpresa foi na última lua crescente do mês, eu ter recebido a visita inesperada da velha bruxa, isso mesmo. Dona Yolanda, a mãe da minha mãe é realmente uma bruxa e a encomenda para o meu pai era invenção para que eu viesse até aqui. Ela conhecia as lendas do Reino Yawara e tinha certeza que o seu neto preconceituoso, homofóbico, misógino era o guerreiro branco mencionado na profecia. E ela fez tudo isso mancomunada com meus pais. E ainda disse que será a minha parteira. Que terá a honra de trazer o seu bisneto ao mundo... Eu ainda não sei como isso vai acontecer... Espero que não seja de parto normal...
***
Glossário:
Diaurum – onça preta e poderosa
Yawara – jaguar, gato, onça
Yaguareté-Abá – é uma criatura da mitologia guarani. A origem do nome está na língua guarani onde "yaguareté" é um dos nomes pelo qual é conhecida a onça pintada; e "abá" ou "avá" significa "homem".Trata-se de um mito onde um índio se transforma em uma onça pintada (ou yaguareté, no original).
Piatã – pé duro, pedra dura, homem forte
Acauã – grande ave de rapina
Ararê – amigo dos papagaios
Aruanã – sentinela
Raoni – chefe, grande guerreiro
Raíra – homem, humana. Apesar do seu significado sugerir a sua utilização para o gênero masculino, este nome é utilizado principalmente pelas mulheres pela sua sonoridade
Mair – pessoa de pele clara
Moema – aquela que está adoçando
Ubatã – madeira dura
Apoema – aquele que vê mais longe
Rudá – deus do amor na mitologia Tupi
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