(Santa) Tia Virgínia
Dante entrou na pequena capela que estava a abarrotar de várias pessoas da cidade, as mesmas que há três dias atrás festejavam o casamento de Callum Morgan, hoje choravam pela morte de Ian Birmingham. O corpo policial da vila fazia-se notar pelas fardas e estavam formados numa fila indiana com a mão direita do lado esquerdo do peito. Ao longe podia-se ver a viúva toda trajada de preto e a chorar em prantos que ecoavam por toda capela. A restante família estava a sua volta, os quatro filhos choravam baixo e bem ao lado destes, para além da família do comandante geral, estava Madame Bouvet, Nina, Callum, Lady Straton e sua filha Carla.
Dante fixou um olhar de horror ao ver que Madame Bouvet consolava Eloise, a mulher de seu falecido amigo. Engoliu em seco, cerrou os punhos e segurou-se para não fazer um escândalo. Não soube se a dor da morte de Ian, seria mais forte que a de ver o culpado pelo seu assassinato ali, impune, e a derramar lágrimas de crocodilo. Seus olhos estavam inchados e vermelhos, mas continuou a caminhar enquanto sentia os olhares de pena dirigidos a si. Por sua vez, reparava nas figuras esquisitas que estavam lá, pessoas que mal conhecia ou que nunca sequer tinha visto perto de Ian, era certo que como policial deveria ser conhecido por muitos, mas não concordava que as pessoas deitassem lágrimas hipócritas sem realmente estarem a sentir alguma dor. Em menos de duas semanas todos já ter-se-iam esquecido, voltariam as suas vidinhas pacatas, enquanto Dante jamais se livraria daquela nova cicatriz que viera abrigar em seu coração. Perguntava-se por que Deus sempre lhe tirava as pessoas que mais amava? Agora já não chorava mais, tinha passado dessa fase para a de dormência interior. Mal tinha repousado ou comido algo, apesar de lhe terem dado folga, tinha ido trabalhar todas as noites, tratara pessoalmente da notícia que falava sobre a morte súbita de seu amigo, acusava a todos e a nenhuns, quando na verdade era ele quem se sentia culpado.
― VAI EMBORA! VAI EMBORA! ― Berrou Eloise Birmingham a levantar-se da cadeira que ocupava num pulo, sua face estava pálida e a maquilhagem borrada pelas lágrimas. ― A culpa foi toda sua, senhor Morgan. Se não fosse por si e pela maldita mulher negra, ele estaria vivo!
Cochichos encheram a capela, e Dante não pode deixar de se lembrar que Ian detestava murmúrios e burburinhos. Odiava com todas as forças.
― A Miriam é apenas uma vítima, tal como Ian foi. Não compreende isto? ― Interveio Callum perdendo a compostura, este também tinha uma aparência cansada e sofrida. Era óbvio que ainda não se tinha recuperado de seja lá o que fosse, mas não deixava de ser inconveniente.
― Por favor, Callum ― pediu Dante sem forças para rebater, seus olhos apenas alternavam de Eloise para Madame Bouvet, acusava-a sem medo, mas a mulher não parecia se preocupar com isso, muito pelo contrário, seu aspeto imponente denunciava a sua indiferença. ― A Eloise não poderia estar mais certa. Mas eu não me vou embora.
― Dante, por favor ― pediu Lady Straton que o puxou pelo braço até o outro lado, a fim de aliviar a tensão. Demorou algum tempo até que as vozes reduzissem e esperaram pelo padre que viria orar. Este chegou minutos depois e deu início as suas orações.
Quando terminaram, o corpo foi levado para o cemitério onde foi depositado no jazigo da família Birmingham. O jornalista estava com o olhar fixo no lugar onde se encontrava o seu amigo, ainda não acreditava que algo do género lhe tivesse acontecido e jurava para si mesmo que quem quer que fosse que tinha feito aquilo, desde o mandante até o carrasco, iam pagar bem caro. Não ia descansar enquanto não tivesse colocado todos atrás das grades.
― Dante. Dante! ― Escutou alguém a pronunciar o seu nome num sussurro e virou a sua face ao aperceber-se de que estava sozinho. A multidão de pessoas já tinham deixado o lugar e nem se dera conta. Olhou entre as árvores que dançavam ao som do vento e foi então que encontrou Callum escondido por trás de um grande tronco. Levantou-se numa rapidez até ao irmão ali escondido e o abraçou em seus braços com muita força.
― Meu Deus Callum, está tudo de pernas para o ar! ― Exclamou e afastou-se ao ver o mais novo contrair-se de dor. Arqueou o sobrolho. ― O que te aconteceu?
― Não disponho de muito tempo, irmão ― disse e passou-lhe um envelope em branco. ― Tenho de ir.
― Callum! ― Chamou Dante com o coração a bater forte. ― Me perdoe, sim?
― É tudo muito pior do que eu pensava, mas lê essa carta. Em breve falaremos ― concluiu, saiu a coxear, e deixou o familiar para trás.
O patriarca guardou o envelope dentro do casaco e abandonou o cemitério ainda transtornado. Sua aparência deixava a desejar, a barba por fazer, o cabelo desgrenhado e a acompanhar estava o seu ar fantasmagórico. Seus olhos arregalaram-se ao ver a figura chamativa que estava na sua frente com uma carruagem, o seu vestido era dum vermelho vivo e chamativo, a peruca loira com os caracóis a cair pelo pescoço abaixo. Mesmo sem sol, suas joias reluziam e as rugas não apagavam qualquer sinal de sua beleza.
― Tia Virgínia? ― Perguntou Dante sem acreditar que realmente a estava a ver. Não a contemplava desde a morte de sua mãe e seu pai fazia questão de proibir a sua presença visto que esta tinha sido a maior cortesã de Espanha. Seu nome caíra na boca de todos homens e só há alguns anos tinha voltado a viver em Londres. Era uma mulher rica, dispunha de várias propriedades e alguns hectares de terra. ― É mesmo a senhora?
― Deixa de ser estúpido, criança. Vamos logo! ― Ripostou a entrar para a sua carruagem com a ajuda de um de seus subordinados, e Dante veio atrás ainda atónito. Entrou no conforto do lugar e encarou a sua tia, confuso.
― Dois chás, Ferdinand ― ordenou a segurar um leque preto, com o tamanho das penas da cauda de um pavão. O homem bem vestido, com luvas e sapatos a condizer, estava sentado ao lado de uma mesinha de ferro com divisões e cheia de coisas.
― É para já Mi Lady ― disse Ferdinand com um jeito de falar afeminado, ao qual Dante não deixou de achar esquisito, mas não comentou porque não era de sua conta e virou-se para olhar para a tia. Fazia-lhe lembrar a sua mãe, sempre tinham sido muito parecidas. Soltou um suspiro triste.
― Não quero chá ― disse Dante baixo, sua voz estava quase rouca e seus olhos azuis estavam inchados. A tia Virgínia deitou-lhe um olhar duro de quem afirmava ser obrigatório tomar aquele chá, exatamente como fazia quando era mais novo. Ferdinand serviu-lhes chá e ambos beberam em silêncio.
― Deveríamos ir diretamente para casa, temos muito para conversar ― sugeriu com um ar calmo, mas via-se que por dentro fervia como se algo lhe corroesse.
― Tenho de ir falar com Eloise, só depois disso irei para casa. A Sara está a cuidar das crianças e de Miriam ― contou e deu um gole, distraído. A babá estava profundamente traumatizada e passou os últimos dias na cama.
― Tenho tido notícias de tudo o que se passa ao vosso redor, Dante. Por isso vim logo que soube do casamento de Callum porque cheguei a pensar que não o fosse fazer, mas se o fez, deve ter acontecido algo. E fui recebida com a morte de Birmingham ― explicou a tia Virgínia com um ar sério. Apesar dos solavancos, mantinha a compostura reta e firme.
O pai de família lembrou-se do envelope, deixou a chávena na mesinha em frente e abriu-o com pressa. Seus olhos corriam de um lado para o outro enquanto lia o que estava escrito, e começou a ficar pálido e as mãos ficaram frias.
― Tia ― segredou Dante a pestanejar. ― Aqui Callum conta de como foi agredido e obrigado a casar com Nina. Diz ter sido alvejado por uma bala, recebido ameaças e a tentativa de enviarem Miriam pelo oceano abaixo. Mas, ainda pior revela a descoberta de que Nina não era o ponto importante de tudo, foi tudo uma armação de Madame Bouvet para obrigá-lo a unir em matrimónio com a sua filha. Mas a questão é por quê? Não faz nenhum sentido.
― Eu tenho uma certa desconfiança, mas prefiro esperar para confirmar. Até lá, estarei aqui do vosso lado ― afirmou enquanto recebia a carta que contava detalhes do acontecimento, e a carruagem parou em frente a casa dos Birmingham. Era simples com apenas um andar e sem jardim. Subiram o lance de escadas e bateram a porta. O filho mais velho de Ian abriu a porta, era muito parecido com o pai. Recebeu os sentimentos e deu-lhes passagem para o calor da privacidade. Ali dentro o ambiente era mais restrito à família e amigos próximos, todos viraram as faces quando os viram entrar, e Madame Bouvet pestanejou incrédula.
― Virgínia? ― Perguntou como se de uma lenda viva se tratasse.
― Como está, Arlette? É com muito prazer que a revejo, mas teremos tempo para colocar os nossos assuntos em dia. Antes, desejo falar com o meu sobrinho ― disse a abanar o leque consecutivamente e a fitar o olhar da outra.
― O Callum não está em condi...
― Parece que não me percebeu, Arlette. Quer que eu fale alto? ― Cortou-lhe a tia Virgínia com os olhos brilhantes e um sorriso lateral. Dante arregalou os olhos quando viu Madame Bouvet retrair-se, e logo percebeu que as duas senhoras tinham alguma coisa escondida. Callum finalmente levantou-se e saiu com a tia, contudo não deixou de pensar que as melhores coisas sempre vinham do lado do irmão mais velho – esta que era mais tia de Dante, do que sua.
Eloise estava no seu quarto, tinha tido dois desmaios num só dia e já não aguentava a pressão, ainda assim, o melhor amigo de seu marido foi conduzido até lá e logo que entrou seu coração bateu. Sentiu a presença de Ian em cada canto daquele lugar, as fotos na parede, as fardas estavam à vista pela porta entreaberta do guarda-roupa. As patentes ganhas, os chapéus e mais coisas as quais não deixavam de chamar atenção. A viúva olhou para aquele que tinha sido aliado da família durante muitos anos e depois desviou o olhar para a janela ampla.
― Quando o Ian regressou naquele dia, nós já tínhamos deixado a Igreja e estávamos na festa. Nos pediu para ficarmos sempre rodeados de pessoas, contou-me o sucedido e depois saiu. De noite já todos estávamos em casa quando um dos seus homens bateu a porta e lhe disse algo. Ele saiu apressado a dizer que precisava de lhe contar algo, agora ninguém sabe o quê. O tal rapaz que o avisou desapareceu. ― Eloise desviou os olhos para Dante que estava parado na porta e prendeu a respiração. ― Meu marido avisou que era muito perigoso, o implorou para não ir. Mas escolheu ao senhor Morgan no lugar de sua própria família, morreu por ti.
― Eu não durmo há dias, só penso nisso. Se eu pudesse, eu teria trocado de lugar com o Ian. Preferia a morte a carregar este maldito peso comigo. Peço incansavelmente que me perdoe e que saiba que sempre poderá contar comigo para o que quiser.
― Ian sempre realizou seus pedidos, mas quando lhe pediu uma única vez para desistir daquela mulher negra, o senhor Morgan preferiu escolher a ela. Por isso quero que vá embora! ― Rosnou Eloise com a voz rouca e embargada. Virou a cara para o lado, a dar a entender que a conversa estava encerrada.
― Escolhi o que era justo. ― Dante finalizou e saiu ainda pior do que estava e passou por todos sem sequer lhes dirigir um olhar. Lady Straton ainda tentou chamá-lo, mas foi em vão.
Deixou a casa, e tia Virgínia veio atrás, entraram no coche em silêncio e assim seguiram.
― O Callum virá para nossa casa nos próximos dias ― contou a mulher com um olhar de esguelha e viu o sobrinho prestar-lhe atenção pela primeira vez.
― Que milagre foi esse, quando ele mal poderia se aproximar de nós? ― Perguntou de sobrolho unido e ainda mais curioso em relação a sua misteriosa tia.
― Sou uma Santa! ― Disse, soltando gargalhadas animadas e segurou a mão do sobrinho como se quisesse lhe garantir que em breve tudo ficaria bem.
― Fui tão negligente com tudo isto ― confessou com lágrimas no canto dos olhos. ― Passei tanto tempo distante de tudo e de todos que permiti estas atrocidades bem por baixo do meu nariz.
― Não te martirizes. É mais fácil julgar do que compreender que há coisas que não dependem de nós.
Assim que se aproximaram da casa dos Morgan, viram os gémeos a cuidarem sozinhos do jardim e os receberam logo que desceram da carruagem. Ferdinand dava ordens para descarregarem as malas de tia Virgínia, enquanto eles entravam na casa. Sara estava sentada a pintar um bolo na mesa de jantar e a tia Laureen aumentava o número de beatas dos seus cigarros no cinzeiro.
― Avó! ― Sara se empolgou quando a viu e levantou-se com facilidade. Cumprimentaram entre beijos, e a tia Virgínia se aproximou de Ben que estava deitado num berço de madeira.
― Apaga-me esses cigarros, Laureen! ― Ordenou a tia Virgínia indignada. ― E é melhor que comeces a arrumar as tuas malas, porque já tem gente demais nesta casa.
Dante desejou sorrir, mas não tinha forças, deixou as mulheres a trocarem impressões e subiu para o andar de cima, abriu a porta do seu quarto e assustou-se ao ver Miriam em pé na janela apenas vestida com a sua camisa. Por alguns momentos tinha esquecido que estava no seu quarto. Entrou e fechou a porta, e o som fez a mulher virar-se.
― Dante ― murmurou num tom de voz baixo e o viu aproximar-se, suas bochechas queimara ao lembrar dos trajes em que se encontrava, uma vez que os olhos azuis tinham caído para as suas pernas. ― Acordei há pouco, a Sara esteve aqui e me contou sobre o que aconteceu. Sinto muito.
― Não sintas. ― Levantou os olhos para a encarar de frente. ― A culpa de tudo foi minha, se não fosse pela minha insistência o Ian estaria aqui.
― Acreditas mesmo nisso? ― Perguntou Miriam com um ar débil, embora sério. ― Nesse caso a culpada fui eu. Se não fosse por minha causa nada disto teria acontecido.
― Não digas disparates, Miriam!
― Pois também não o deves fazer! A culpa dele ter morrido foi da pessoa que o matou, nada poderia ser diferente se estava destinado que tinha de ser assim. A pessoa que te faz carregar essa culpa, apenas o faz porque a melhor maneira do ser humano de aceitar factos inaceitáveis, é quando se atira a culpa em alguém. O Ian era um ótimo policial, de muita boa índole e se morreu desta maneira horrível foi a exercer a função que mais gostava, e mais ainda, a proteger o seu melhor amigo. Terias feito a mesma coisa, Dante. Portanto não vale a pena se corroer por dentro, se for de dor sim, mas de culpa não to permito, porque o teu amigo de certeza não o ia permitir! ― Miriam falou rápido e quase sem pausas, as palavras entravam no corpo dele como se fossem bálsamo para a sua dor, desviou os olhos cheios de lágrimas. Não entendia por que estava a ser tolo, e como é que Miriam sempre conseguia ter razão.
― Eu devia ter feito mais alguma coisa. Não sei... é que...
― Farás no futuro.
― Estás muito astuta para quem esteve a dormir por muito tempo e desmaiada num contentor de peixes. Tive que te dar muitos banhos e... ― Calou-se ao ver o olhar esbugalhado da babá e engoliu em seco. ― Me desculpe, eu...
― Não se preocupe. ― A voz saiu trémula, mas não se abalou. Antes respirou fundo. ― Eu compreendo perfeitamente, também lhe teria dado banho se fosse o caso. Confesso que foi horrível estar naquele lugar e que nunca senti tanto medo na vida. Não sabia o que ia acontecer e respirava através de buracos feitos no contentor. Tinha vezes que pensava que me iam atirar no fundo do mar e o pior eram os peixes frios, escorregadios e... ― Arregalou ainda mais os olhos quando se lembrou da noite que antecedia ao seu confinamento no contentor, passou a mão pelo queixo e sentiu a marca da queda nas escadas. ― O Callum?
― Ele foi atingido por uma bala, mas está a melhorar, contou-me tudo. Foi através dele que consegui chegar até ti, e ele...
― O que aconteceu? ― Perguntou aflita e um silêncio encheu o quarto. Miriam baixou os olhos e fingiu se preocupar com as pernas de fora, tentando puxar a camisa mais para baixo. Seu coração minguou e uma bola formou-se em sua garganta fazendo os seus olhos picarem.
― Ele não queria se casar com Nina Bouvet. ― Justificou para tentar amenizar a situação. ― A minha tia Virgínia está aqui e tem muitas coisas que ainda vamos conversar e resolver.
A babá sentou na cama como se acabasse de perder força em suas pernas e não conseguiu disfarçar a sua dor. Virou o pescoço para Dante quando este se sentou do seu lado. Ficaram em silêncio, cada um consumido pela sua própria dor e então num impasse abraçaram-se e choraram em silêncio.
Olá, vim um pouco tarde, mas cá estou. Espero que estejam a gostar. bjs
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