𝟬𝟱 : BONES & SAWBONES

05. CAPÍTULO CINCO :
« OSSOS E SERRAS »

♬ song : because we have to
── low roar


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INVERNO ⠀─ ⠀ FEVEREIRO 23, 17:30
⠀ ⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀Cleveland, Ohio
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SE ARRASTANDO PELAS passagens de ar, Birdie tentava expulsar o medo e a ansiedade para o fundo de sua mente, concentrando-se apenas em seu único objetivo: se esconder de León.

As palavras de Sebastian ressoavam em sua mente como um mantra. Tentava se agarrar a todos os ensinamentos que ele lhe passou, pois sabia que não conseguiria seguir em frente sem as orientações dele. Foi graças a todos aqueles aprendizados que ela sobreviveu nesses 15 anos de pandemia. Birdie cometeu alguns erros e acertos que serviram para lhe moldar como a sobrevivente que era.

Entretanto, mesmo com toda a experiência com sobrevivência que tinha, ela ainda estava insegura. Birdie sentia medo, muito medo.

E o medo que sentia não era apenas por ela mesma, também temia pela vida de Sebastian. Tinha medo dele não conseguir retornar. Ele havia sobrevivido a emboscada, porém estava sozinho agora e os infectados continuavam à espreita, assim como seus inimigos.

Buscando afastar aqueles pensamentos ruins de sua cabeça, Birdie balança a cabeça de um lado ao outro. Ela diz para si mesma que não deve duvidar da capacidade do tenente. Se havia alguém capaz de retornar para casa vivo, era ele. Sebastian provou isso várias vezes antes e não a decepcionaria agora.

Ela respira fundo e continua arrastando-se pela pequena caixa de metal até encontrar uma saída. Birdie acaba na cozinha. Não era sua primeira opção, porém foi o único lugar vazio que conseguiu encontrar. Roger não estava por perto e nenhuma voz soava no corredor quando ela chegou até a porta para verificar. Um pouco mais aliviada, Birdie aproveitou aquele momento para olhar ao seu redor e pensou na primeira coisa que Sebastian lhe diria para fazer ali.

── Encontre uma arma. ── A lembrança está quase vivida em sua cabeça. Uma Birdie de 8 anos observando Sebastian, vestido com sua balaclava e roupa preta usuais, falando com seriedade ── Se você não tiver nada para se defender com você e eu não estiver por perto, precisa encontrar algo, mesmo que seja apenas um pedaço de madeira.

As mesas do refeitório estavam completamente vazias, sem pratos ou talheres. O horário de almoço havia passado, Roger já havia guardado todos os utensílios novamente. Por isso, Birdie retornou à cozinha.

Ela abriu as gavetas em busca de uma faca, porém a maioria estava vazia. Eles tinham poucos talheres e facas eram armas necessárias, principalmente durante a pandemia, Roger deveria manter todas escondidas.
── Mas se eu não achar nada, Fantasma? ── Birdie perguntou para ele com sua voz infantil.

── Então, improvise.

Em cima da bancada, Roger havia esquecido seu isqueiro para trás. Birdie sabia que o velho cozinheiro sempre estava com ele, então aquela ação era algo peculiar da parte dele. Talvez por conta da pressa, Roger tenha esquecido o objeto na cozinha.

Quando Leon começou a controlar todo o acampamento com seus novos amigos ── oitos homens mal encarados e que fediam a problema ──, todo mundo ficou agitado. Eles ordenaram que todos se juntassem em um dos auditórios, arrastando mulheres e crianças bruscamente pelo braço. Lauren só teve tempo de ajudar Birdie a fugir, pois logo estava sendo levada também.

Além do isqueiro, dentro de um dos armários Birdie encontrou uma faca quebrada e algumas peças velhas. Ela colocou tudo dentro dos bolsos do casaco grande que estava vestindo, reunindo cada material para o futuro. Birdie também guardou alguns trapos e roubou uma maçã da pilha de frutas no fundo, dando uma mordida antes de continuar sua busca por mais achados.

Birdie estava vasculhando um caixote de madeira, guardando mais trapos dentro dos bolsos da calça jeans. Não havia escutado a porta do refeitório abrir, nem os passos que se aproximavam cada vez mais daquele cômodo. Estava muito concentrada, praguejando baixinho por não encontrar mais nada útil. Se ela ao menos encontrasse uma garrafa vazia...

Uma mão cobriu sua boca assim que ela se ergueu, assustando-se com o barulho quando a pessoa acabou esbarrando em uma caixa perto da porta. Birdie se desesperou, sentindo aquele homem desconhecido lhe puxando para trás.

── Isso nos leva ao segundo ensinamento: nunca abaixe a guarda ── Fantasma disse em sua velha lembrança.

Ela morde a mão da pessoa com força, até fazê-lo gritar e a soltar. Birdie está ofegante, mas está livre para se voltar para a pessoa que tentou atacá-la e erguendo a faca quebrada como forma de defesa.

── Porra! ── exclamou Roger, segurando a própria mão contra o peito ── Droga, Birdie. Você me mordeu!

── Foi culpa sua, foi você que tentou me atacar!

── Por que eu pensei que tinha alguém tentando roubar nossa comida ── retrucou Roger. ── Não percebi que era você, pirralha.

Mesmo com a resposta de Roger, Birdie não abaixou a faca.

── Se a situação tiver perdido o controle e você não souber em quem confiar, ── disse Sebastian uma vez. ── sempre escolha o caminho mais seguro: desconfie de todo mundo.

Quando se recuperou, praguejando baixinho e inspecionando que agora tinha a arcada dentária de Birdie marcada, Roger bufou.

── Abaixa essa faca, garota. Eu não vou te machucar ── ele disse, olhando para ela. Birdie não o fez. ── Estou falando sério, Birdie.

── Como eu posso acreditar em você? ── Birdie o questiona. ── Como posso ter certeza de que você não está junto do Leon e daqueles caras estranhos?

── Porque eu não estou. Eu não fazia a mínima ideia que o Leon iria trair a gente, ainda mais pra se juntar com aqueles merdas ── Roger soou aborrecido. ── Muita gente boa está morta por causa dele, Birdie.

── Eu sei... ── ela murmura, e sua mente imediatamente evoca imagens de Grace.

Leon havia dito que todos estavam mortos, que todos foram pegos em uma emboscada em Boston, mas não entrou em detalhes. Ele se auto intitula líder e que agora as coisas mudariam naquele acampamento. Ninguém teve coragem de tentar questioná-lo depois que Bart levou um tiro ao fazê-lo, mas era claro que todos sabiam o que estava acontecendo.

As pessoas estavam apenas aceitando porque não tinham escolha, mas sabiam que Leon deveria estar envolvido de alguma forma com a morte do pessoal. Ele não precisava dizer, todos sabiam a verdade.

── O Leon está atrás de você... ── comentou Roger. ── Sabe disso, certo?

Birdie assentiu, segurando o cabo da faca com mais força e dando um passo para trás. Roger percebeu aquela ação dela. Em meio a sua bravata, Birdie ainda estava com medo.

── Eu não vou te levar até ele, Birdie ── disse o cozinheiro, buscando tranquilizá-la. ── Eu prometo. Só quero te ajudar.

Porém Birdie ainda não estava convencida.

Ela abaixou a mão apenas um pouco quando escutou a porta da entrada sendo aberta e passadas pesadas, seguidas de uma voz estridente.

── Oh, cozinheiro! ── exclamou a pessoa desconhecida. Era uma voz masculina de alguém que não fazia parte do acampamento, alguém do novo grupo de Leon ── O que tá acontecendo? Escutamos um grito?

Birdie e Roger haviam se voltado na direção daquele som assustados. A garota tentava pensar no que fazer, para onde correr. Roger olhou para ela e comprimiu os lábios, ele xingou em silêncio.

── Fica aqui, eu vou resolver isso ── murmurou o homem, começando a se afastar. ── Eu vou logo. Não sai daqui, Birdie.

Roger deu as costas para ela e rapidamente caminhou até a porta, buscando impedir que aquele homem chegasse mais perto e a encontrasse naquela sala.

── Ah, não foi nada ── ela escutou Roger dizer, tentando agir naturalmente ── Eu vi um rato e acabei me assustando.

── Por isso você gritou igual uma menininha? ── indagou o outro, rindo.

Enquanto eles conversavam, Birdie olhou ao redor, pensando no que fazer. Seus olhos passaram por todas as caixas com frutas e panos velhos até encontrar mais uma passagem para o ar. Ela olhou da passagem para a porta de entrada, escutando as vozes de Roger e do outro homem.

Birdie pensou no pedido do cozinheiro, pensou se deveria ficar e confiar nele. Ela queria, queria muito poder, mas sabia que não deveria. Por mais que gostasse de Roger, não era seguro confiar nele e ela precisava se agarrar as palavras de Sebastian, aos ensinamentos dele.

── Se não sabe em quem confiar, garota, confie em si mesma. ── Sebastian disse a ela, e era isso que Birdie faria.

Birdie correu até a entrada da passagem de ar e tirou a tela. Teve um pouco de dificuldade, mas conseguiu. O lugar não era pregado, para a sorte dela estava frouxo. Ela fez o mínimo de barulho possível quando colocou o objetivo de metal para o lado, porém ele acabou arrastando no chão quando ela entrou e estava o colocando no lugar.

Escutou a voz do outro aumentando ao fazer um questionamento a Roger sobre o que significava aquele barulho. Roger tentou convence-lo de que não deveria ser nada ── apenas o rato outra vez, disse o cozinheiro. ──, porém isso não foi o suficiente para fazer o homem recuar.

Birdie escutou os passos daquele desconhecido se aproximando, então se apressou para fechar a grelha de ar mais uma vez. Quando feito, Birdie se arrastou para longe, enquanto a porta era aberta bruscamente pelo homem que olhou ao redor do cômodo, procurando por algo.

── Está vendo? Eu disse que não era nada demais, deveria ter sido apenas um rato ── afirmou Roger, meio ofegante por ter corrido atrás daquele homem.

O rapaz estava suspeitando de algo, ainda não totalmente convencido pelo o que Roger havia dito. Ele deu uma segunda olhada no lugar, agora parado no meio daquele cômodo. Naquele mesmo instante, algo chamou a atenção dele.

Roger o viu se abaixar e pegar do chão uma maçã caída perto das caixas. Ele estava pronto para falar que ele deveria ter a deixado cair sem querer, quando o homem se voltou para ele com a fruta, apresentando um lado que estava mordido.

O cozinheiro engoliu suas próprias palavras, pois não havia como explicar aquilo, não quando a mordida era pequena demais para ser dele.

Estava escurecendo quando Birdie saiu das passagens de ar. Ela rastejou por elas por uma boa hora, apenas escutando os homens no corredor andando de um lado ao outro e procurando por ela. Birdie não via Leon fazia algum tempo, algo que a preocupava. Não saber onde ele estava era um pouco alarmante, porém ela estava tentando manter a calma.

Quando deixou seu esconderijo, se encontrou nos andares inferiores da escola, uma passagem que levava para baixo era tudo o que ela tinha, pois o corredor estava sendo vigiado e ela não poderia voltar. Tudo o que Birdie precisava fazer era encontrar um lugar seguro para passar a noite. Estava esfriando muito e estava ficando cada vez mais cansada. Em meio a aquele dia estressante que estava tendo, não era de se surpreender.

O andar subterrâneo da escola não era acessado fazia muito tempo. Não havia mais nenhum infectado naquele espaço, porém ninguém gostava de se aventurar por aquela parte. Birdie não sabia o motivo, Sebastian não havia dito para ela, porém aquele lugar se mostrou útil naquele momento. Ao escurecer da noite, Birdie acendeu o isqueiro de Roger e caminhou pelo corredor da área de energia.
As marcas do cordyceps estavam nas paredes e nos tetos, demonstrando que houveram infectados ali em algum momento. Algumas janelas também estavam quebradas, facilitando a entrada dos ventos frios daquela noite gélida. Birdie se encolheu quando uma rajada de vento particularmente forte a atingiu, fazendo seu corpo, mesmo coberto, tremer da cabeça aos pés.

O espaço era grande, mas com poucas salas. Ali ficavam os geradores de energia que não funcionam mais a muitos anos. Birdie se lembrava de quando Richie e Sebastian voltaram depois de investigarem aquela parte, anunciando que não tinha como religar a energia. Por isso, em algumas noites, eles faziam uma fogueira nas salas ou do lado de fora, onde havia algumas tendas montadas. Eles não precisavam se preocupar com o sistema de incêndio pois o mesmo também não funcionava mais. A única coisa que precisavam se ater era a não deixar o fogo crescer muito, tomando cuidado para não atingir nenhuma carteira ou qualquer outro objeto próximo que alastrasse às chamas.

Birdie esperava que, agora que o capitão Purnell estava morto, Leon ao menos fosse cuidadoso com o fogo. Seria muito ruim se aquele lugar queimasse. Não só para ela, mas principalmente para todos os outros. Eles não tinham mais nenhum lugar para ir e muito dificilmente sobreviveriam durante aquele inverno com tão pouco suprimentos.

Expirando baixinho, Birdie caminha até uma sala. Ela tenta abrir a porta, porém a mesma está emperrada. Para a sorte dela, há um buraco na parte de cima da parede, onde antes ficava um ar condicionado. Puxando um caixote, ela o coloca perto da parede e sobe no mesmo para alcançar a abertura. Birdie alça-se para cima e pula para o outro lado, pisando em cima de uma mesa e depois pisando no chão de cimento.

A primeira coisa que Birdie percebe são os corpos. Há pelo menos 6 deles que são pequenos e um outro que é de uma pessoa adulta. As roupas estão muito esfarrapadas e o corpo se deteriorou tanto que quase não há mais pele, são quase um amontoado de corpos no canto da sala, reunidos como se fossem se tornar uma pequena pira para atear fogo.

Birdie observa aquilo com o isqueiro erguido para iluminar um pouco o cômodo e sente seu estômago revirar. Ela nota uma folha de papel em cima da mesa. Está um pouco amassada e bem suja, mas ainda consegue ler as palavras que foram escritas nela com uma caneta preta.

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Estamos presos. Não há como sair daqui. Acho que todos estão mortos lá em cima. Consigo ouvir eles se arrastando, o som estranho eles fazem...

Não sei o que está acontecendo. Uma das crianças enlouqueceu. Foi horrível. Ela mordeu outros alunos e as outras professoras... meu Deus.

Algumas das crianças estão comigo. Salvei aqueles que pude, mas não sei o que fazer agora. Estou com medo. Não sei por quanto tempo aguentaremos. Não sei quanto tempo temos. Se Ish e os outros estiverem vivos, talvez possam nos encontrar. Mas, se isso não acontecer... Se precisar, farei com que seja rápido. Para todos nós.

⠀ ⠀⠀⠀- Lily.
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Birdie sabia que as pessoas tinham ações desesperadas durante tempos desesperados. Sebastian havia ensinado isso a ela. Então não estava surpresa com o que havia acontecido ali, porém inevitável não sentir algo ao ver aquela cena.

Para o seu próprio bem, Birdie escolheu ignorar o que havia ali e seguiu adiante. Procura algo nos armários e nas gavetas recolhendo tudo que achava ser útil, incluindo um cobertor velho e puído que seria o suficiente para passar a noite. O tecido era um pouco áspero, mas ele não estava fedendo tanto quanto o restante do lugar. Assim, Birdie bateu um pouco nele para tirar a poeira e o colocou sobre os ombros.

Com tudo pronto, ela saiu novamente, da mesma forma que havia entrado. Ela não olhou para a carta e nem para os corpos apodrecidos no campo e muito menos para as marcas de bala nas paredes. Birdie apenas saiu.

Ela caminhou para outra sala, uma que não tinha porta e era mais ampla. Ali ficavam alguns geradores de energia, presos atrás de uma cerca de metal que ia até o teto. Birdie encontrou um canto na sala onde poderia ficar escondida e ninguém lhe encontraria caso passasse pelo corredor. Ela teria alguns minutos de vantagem caso escutasse passos e, se necessário, poderia fugir pelo basculante.

Sentada naquele lugar sujo sozinha, Birdie pensou em Fantasma. Se perguntou como ele estaria naquele momento, se havia conseguido fugir. Ele disse que entraria em contato com ela quando tivesse novidades, porém o rádio estava silencioso fazia horas.

Birdie pegou o aparelho na mão vestida com luvas sem dedos, observando-o. Seus polegares acariciaram os lados do rádio, enquanto ela pedia internamente que Sebastian ligasse, pois tudo o que ela queria era falar com ele novamente. Por longos minutos ela ficou assim, apenas encarando o aparelho. Quando percebeu que o que queria não iria acontecer, Birdie suspirou pesadamente.

── Só espero que você esteja bem, Fantasma ── ela murmurou baixinho no silêncio daquela sala. Birdie abaixou as mãos e deixou o rádio de lado, decidindo ocupar sua mente com outra coisa.

Aproveitou para reunir todos os objetos que encontrou e tentar montar algo com eles. Passou um bom tempo montando e desmontando, raspando a madeira com o lado da faca quebrada e criando um novo cabo.

Naquele momento, Birdie sentiu falta de seu arco. Ele seria útil. Ele havia sido deixado em seu quarto. Quando Leon apareceu com os outros apenas teve tempo para se esconder ao escutar que ele a queria. Se Birdie conseguisse pegá-lo, poderia usá-lo para se defender. Porém era uma opção ousada.

Mesmo que conseguisse o arco, voltando para o andar de cima, Birdie nunca matou uma pessoa antes. Ela estava familiarizada em matar animais e infectados, mas não em matar pessoas. Fazia anos que Birdie via Sebastian fazendo isso, para ele era muito fácil. Sebastian não tinha remorso algum. Ele matou muitas pessoas antes, sabia o que estava fazendo. Birdie tinha medo de tentar e falhar.

Ela também se lembrava das palavras de Sebastian anos atrás, do significado que matar alguém tinha na vida de uma pessoa. Aquela era uma linha que não tinha mais volta, porém a garota sabia que aconteceria mais cedo ou mais tarde. Em algum momento, ela precisava criar coragem.

Mas, naquela noite, Birdie estava cansada. Ela não queria mais pensar em morte ou em sobrevivência. Tudo o que ela queria fazer era dormir. Aconchegando-se naquele cantinho, ela se cobriu e deitou no chão duro. Suas pálpebras estavam pesadas demais, então não teve muito esforço para cair em um sono profundo e envolto em uma lembrança que agora retornava a sua mente como um sonho.

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7 ANOS ATRÁS.
NEW HAMPSHIRE.

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Birdie vaga pela loja observando as estantes e as prateleiras assim como tudo que há ao seu redor. Ela nunca havia entrado em um lugar como aquele antes e estava surpresa por haver tantas fotos nas paredes ── Sebastian os chamava de poster. Estavam meio rasgadas e manchadas, mas Birdie ainda poderia ver as pessoas que estavam em cima de palcos ou fazendo poses engraçadas, segurando um microfone ou uma guitarra ── como Sebastian havia explicado para ela.

A maioria das prateleiras estavam vazias, porém Birdie ainda encontrou alguns objetos largados ou caídos no chão. Ela pegou um deles na mão e o inspecionou, curiosa para saber o que era aquele objeto quadrado e fino que estava segurando.

── O que é isso, Fantasma? ── Indagou Birdie, voltando-se para o homem grande e corpulento que estava inspecionando o caixa.

Fantasma ergue a cabeça e a encara. Ele semicerra os olhos e Birdie se lembra da piada que Grace fez, dizendo que ele estava ficando velho e que logo precisaria de óculos.

── Isso é um CD. ── respondeu o tenente, abaixando a cabeça novamente e retomando seu trabalho nas gavetas. Sebastian abriu uma e retirou alguns trapos de dentro dela.

── CD? Pra que serve um CD? ── Perguntou Birdie com o cenho franzido.

── Para escutar música.

── Oh ── ela olhou para o CD em sua mão, abaixando o objeto devagar e olhando para a capa dele. ── Igual aquele que o Roger tem?

── É parecido. Ele escuta através de fitas, CDs são diferentes de fitas ── respondeu ele. ── Mas ambos têm a mesma função. Você pode escutar várias músicas que estão gravadas neles.

── Humm... ── Birdie murmurou afirmativamente. ── E como isso funciona? Dá pra gente escutar naquele aparelho do Roger?

── Não, aquele só serve para as fitas ── Sebastian ergue a postura. Havia terminado a sua busca naquele espaço, por isso olhou para Birdie e depois contornou o balcão para caminhar até ela ── É necessário um toca CDs para tocar um desses.

── E onde encontramos um? ── ela questionou.

── Você quer mesmo escutar isso, não é? ── ele disse, cruzando os braços e parando na frente dela.

── Nunca escutei um CD antes ── Birdie comentou. ── As músicas desse são iguais às que o Roger escuta?

Sebastian estende a mão, pedindo silenciosamente que ela entregue o CD. Birdie o faz, deixando que ele pegue o objeto.

── Não, mas são melhores do que aquela merda country que ele gosta ── respondeu Sebastian. ── Isso aqui é um clássico do rock. É um album da banda Kansas.
── Kansas? Tipo o estado?

── Sim, eles tinham o mesmo nome que o estado. ── Sebastian devolveu o CD para ela. ── Alguns carros costumam ter toca CDs em seus rádios, talvez a gente possa colocar esse para tocar se encontrarmos um pelo caminho. ── Birdie se animou ── Se não, podemos ver alguns dos carros do acampamento.

── Oba! ── Ela exclamou animadamente.

── Ei, não se anima tanto. Não perca o foco, estamos aqui para caçar e conseguir alguns suprimentos ── disse Sebastian, retornando ao seu humor taciturno de sempre ── A diversão fica para depois.

Birdie murmurou uma afirmação. Enquanto guardava o CD dentro da mochila, Sebastian deu as costas para ela e se encaminhou para a saída. Birdie o seguiu logo depois, lembrando-se de algo quando o tenente abriu a porta para ela passar primeiro.

── Fantasma, o que é rock? ── ela perguntou a ele enquanto o seguia. Sebastian grunhiu e revirou os olhos, percebendo que teria muito para ensinar a ela.

Durante o trajeto, Birdie deixou as perguntas de lado quando Sebastian disse que explicaria tudo para ela depois. Naquele momento, eles deveriam focar em conseguir comida para o acampamento.

O clima estava ótimo para uma caçada na floresta. Raios de sol atravessavam as árvores, mas estavam mais suaves naquele cair da tarde. Pássaros cantavam no céu, sobre a cabeça de Birdie enquanto ela pisava em folhas secas. Ela tinha 8 anos agora e Sebastian a instruiu a seguir seu próprio caminho nas caçadas, mas nunca a ir muito longe. Para ter certeza que estavam sempre próximo do alcance um do outro, eles assobiavam uma melodia familiar.

Enquanto caminhava, Birdie se encantou com os pássaros acima de sua cabeça, observando os mesmos cantando e sorrindo para os animais. Ela adorava o canto dos pássaros e havia aprendido a imitar alguns. Sabia imitar estorninhos e pardais, e às vezes usava disso para confundir alguns saqueadores para que Sebastian pudesse abatê-los por trás.

Um farfalhar em um arbusto próximo chamou a atenção de Birdie, fazendo-a olhar na direção do barulho e erguendo seu arco com a flecha embainhada. Ela apontou para o arbusto, atenta. O mesmo havia farfalhado mais uma vez e Birdie estava pronta para atacar, apertando fortemente o arco e mantendo a flecha em seu devido lugar, como havia sido ensinado.

Para a sua surpresa, um coelho marrom pulou para fora da moita. Birdie se assustou, dando um passo para trás. Ela pisou em um galho e o animal a encarou com seus olhos escuros, cheirando o ar. Birdie parou completamente, sem mexer um músculo sequer. Estava com medo de espantar o coelho.

Erguendo o arco devagar, ela apontou na direção do animal e puxou a corda do arco o máximo que conseguiu. Quando atirou a flecha, sua mira estava um pouco torta, além de que tremeu um pouco, fazendo assim que a mesma acertasse o ponto ao lado do coelho, espantando o mesmo.

── Droga ── ela praguejou. Birdie correu até a flecha, retirando-a do chão. Em seguida, correu em direção ao coelho.

Ela o seguiu pela floresta, adentrando cada vez mais na mata e tentando a todo custo alcançá-lo. Alguns galhos chicotearam contra o rosto de Birdie, marcando sua pele com pequenos arranhões que tiraram finos filetes de sangue. Birdie ignorou a picada dolorida, apenas erguendo os braços para tentar se proteger das folhas e dos galhos de madeira.

Quando ela estava perto do riacho, perdeu o coelho de vista. O animal entrou em um arbusto. Birdie tentou alcançá-lo, porém chegou segundos depois, sem saber para que direção ele havia ido. Ela bufou irritada. Havia perdido a chance de levar um bom e gordo coelho para casa. Era frustrante, mas Birdie sabia que não deveria parar de tentar. Em algum momento, outro apareceria.

Entretanto, ao invés de outro coelho, algo diferente chama atenção de Birdie.

Ela nota que há fumaça vindo da direita. Vê o rastro enegrecido no céu e franze o cenho. Curiosa para saber o que está acontecendo, Birdie anda naquela mesma direção. Cautelosa, ela chega até alguns arbustos e afasta as folhas deles para poder ver melhor o que está a distância. Os olhos de Birdie primeiro avistam uma clareira com uma velha cabana de madeira e, do lado de fora dela, há um homem com um serrote. Então, Birdie se espanta.

O que espanta Birdie é o que ele está serrando com a serra. Vestido com um avental de açougueiro, aquele homem desconhecido e sujo de sangue serra a perna de um corpo morto em cima de sua bancada de madeira.

Observando o restante do lugar, Birdie vê uma fogueira e dois varais de madeira com algumas partes do corpo pendurados. A cena é horrível e Birdie se sente enojada. Tardiamente, Birdie nota que há duas motocicletas estacionadas naquele acampamento, assim como duas cadeiras de plástico na entrada e dois copos na mesa entre as duas. Porém, mesmo que aquilo evidencie que naquele acampamento residem duas pessoas, Birdie não consegue encontrar a outra.
No momento em que dá um passo para trás, saindo de fininho de seu esconderijo, alguém a segura. A mão de um homem cobre sua boca, enquanto o outro braço a envolve pelo torço, prendendo seus braços ao lado do corpo e a impedindo de se soltar. Birdie tenta resistir, porém aquele homem é mais forte do que ela.

Ele a arrasta para trás a seu gosto, enquanto Birdie sente o cheiro de sangue que vem dele. O desconhecido também fede. Ele tem cheiro de sujeira e ao mesmo tempo dos pinheiros que estão ao redor.

── Peguei você, gracinha ── ele cantarola ao pé do ouvido dela e o corpo de Birdie se arrepia tanto pelo pânico quanto pelo nojo que sente.

Enquanto se debate, Birdie consegue alcançar a faca presa em sua bota com a mão esquerda. Seu instinto a leva a cravar a lâmina na coxa de seu agressor. Ele grita de dor, soltando-a de seu aperto. Birdie tenta correr, porém ele a derruba.

O corpo menor da garota vai de encontro ao chão, fazendo todo seu mundo girar. Em questão de minutos, mesmo com a faca ainda presa em sua coxa, aquele homem está em cima dela. Birdie se debate e grita, tentando afastá-lo. Ela grita por ajuda e grita por Sebastian, entrando em desespero quando as mãos do homem vão até o seu pescoço e começam a apertar.

O rosto dele é idêntico ao do outro homem que ela viu. Um gosto anguloso, um nariz fino e a pele pálida. O cabelo dele é grande, mas não chega aos ombros e parece tão seboso e oleoso quanto seu rosto. Quando ele sorri para ela parece um maníaco.

── Você vai ser um ótimo jantar, garotinha ── entredentes, ele diz aquelas palavras com sua voz carregada de malícia.

O pânico cresce quando ele pega a faca de Birdie com a outra mão, muito perto de a ferir com ela. A visão dela está começando a escurecer nas bordas e Birdie não consegue falar, nem gritar.

A voz dela morreu dentro da garganta e o medo e a dor deram lugar ao desespero, Birdie não queria morrer assim. Não queria que aquele fosse seu fim, por isso tentou arranhar os braços dele, fazendo de tudo para que o mesmo a soltasse.

Quando o homem ergue a faca, pronto para aceitá-la no peito, passos pesados chamam a atenção dele, fazendo com que levante sua cabeça e aviste algo. Ele não tem tempo de reagir ou de dizer algo, pois logo um tiro está sendo disparado, acertando-o bem na cabeça. Sangue e pedaços do cérebro do homem expiram em Birdie quando a cabeça dele se fragmenta em vários pedaços por conta do tiro de espingarda.

Ela passa a escutar o mundo ao seu redor de forma abafada, pois seus ouvidos estão zumbindo. Os olhos da menina estão arregalados e tudo o que ela pode fazer é respirar pesadamente, buscando por ar enquanto permanece deitada no chão. A sua volta, ela escuta um segundo disparo, mas dessa vez não vê o que cai no chão. Pelo baque surdo, suspeita-se de que tenha sido um segundo corpo, porém Birdie não consegue se levantar para ver.

Ela leva uma mão ao rosto, coletando os rastros de sangue com a ponta dos dedos, sentindo aquele líquido escorrendo por sua bochecha. Birdie engole o seco, porém se assusta quando alguém surge a sua frente. Tenta se afastar, mas a pessoa a está colocando de pé e depois falando com ela, enquanto a mesma quase o ataca.

── Calma, Birdie! Sou eu! Sou eu, garota ── diz Sebastian, tentando acalma-la. Birdie reconhece a voz dele ── Sou eu, Birdie. Acalme-se!

Ela olha para ele com os olhos vidrados, enquanto Sebastian a segura pelos ombros. A garota para seus movimentos, encarando-o.

── Se acalma ── Sebastian pede mais uma vez.

── Fantasma... ── murmura ela com a voz chorosa. ── Eu...

── Está tudo bem ── disse ele, notando como ela estava assustada. Sebastian tentava mascarar o pânico que também sentiu minutos atrás, o medo de que algo ruim acontecesse com ela ── Já acabou, eles estão mortos.

Quando ele diz "eles", Birdie olha ao redor e nota os dois cadáveres. Há aquele que a agrediu e o segundo perto da moita, o primeiro que Birdie havia visto na clareira.

Ela demora a perceber, mas as lágrimas estão caindo livremente agora. Lágrimas salgadas que mancham seu rosto sujo de terra e sangue.

Sebastian segura o rosto dela com uma mão, fazendo-a olhar apenas para ele.

── Não olha pra eles, olha pra mim. Olha pra mim, Birdie. ── ele pede, seriamente. ── Está tudo bem agora, entendeu? Nenhum dos dois vai te machucar mais.

── E-eu... eu não consegui fazer... nada...

── Eu sei. ── assentiu Sebastian, sua mão retorna ao ombro dele. ── Eu sei, garota. Mas matar uma pessoa não é tão fácil quanto matar um infectado. Depois que você faz isso pela primeira vez, tudo muda.

Por mais que Sebastian esteja sério, também há dor em seus olhos. Aquela conversa era uma que ele havia evitando de ter com ela, mas sabia que havia chegado a hora. Ele havia ensinado tanto a ela, mas não estava preparado para aquele ponto.

Sebastian afasta o cabelo que gruda no rosto dela para poder observá-la com mais clareza. Limpa um pouco do sangue e das lágrimas com sua mão. Ela está trêmula e as lágrimas não cessam e ele se sente impotente em meio a tudo que aconteceu. Sebastian se culpa, mais do que culpa a aqueles homens.

── Não estou bravo com você. ── disse ele para a garota. Sebastian engoliu o seco ── Só... fique mais perto de agora em diante.

Ele a puxa para perto, abraçando-a. Birdie chora baixinho no ombro dele e o Sebastian a consola.

── Cruzar essa linha não é fácil, Birdie. ── o tenente continua, enquanto a mantém perto dele ── Mas, no mundo em que vivemos hoje, muitas vezes acaba se tornando a única opção. E eu vou te preparar para isso. Vou te preparar para sobreviver.

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