Capítulo Vinte e Um

Duas pessoas haviam decidido que discutir em meu quarto, naquela manhã, era uma boa ideia.

― Estou falando sério, Abigail, eu vi ― declarou uma voz enjoada com uma cadência anasalada. Eu conhecia aquela voz, só não conseguia me lembrar de onde.

― Como isso foi acontecer? ― Perguntou a outra voz. Eu queria abrir os olhos e ver o que diabos estava acontecendo, mas eles não me obedeciam de jeito nenhum.

― Você quer mesmo que eu explique? ― Riu a primeira voz. ― Seus pais nunca tiveram a conversa dos pássaros e abelhas com você?

Em seguida, um barulho como o de um tapa, soou por todo o quarto.

― Não dê uma de espertinha para cima de mim, Dakota. Você sabe muito bem o que quero dizer.

― Eu não sei. Eu ainda não domino isso bem ― articulou. ― Eu só vi depois de consumado ― respondeu a primeira voz nenhum pouco abalada.

― O que está feito, está feito ― suspirou. ― Agora temos que reduzir os danos. O que vai acontecer?

Houve silencio por alguns segundos antes da primeira voz se manifestar.

― Aí está, eu não faço à menor ideia. Está tudo nebuloso à frente, como se algo estivesse bloqueando meu dom.

― Isso é porque você ainda é nova nisso, em breve a Visão estará mais forte. O que você vê quando foca especificamente no parto? ― Indagou.

― Uma nevoa roxa e um raio ― respondeu.

― A aura roxa é fácil de identificar, agora o raio...?

― Nicholas ― as duas vozes exclamaram ao mesmo tempo.

― Ele é...

As vozes começaram a distanciar e eu a queimar.

***

Foram dias e noites intermináveis de febre. Pessoas entravam e saiam. Eu ouvia vozes. Sentia mãos me tocando.

― Luna ― ouvi no que parecia o septuagésimo quarto ano. ― Você precisa acordar. Senão por você, pelo bebê. ― Ele pausou. ― Você está franzindo as sobrancelhas, eu sei que me ouve. Você precisa acordar, precisa comer. Acorde Luna. Pelo bem de todos nós, acorde.

***

Eu sentia algo se mexer dentro de mim. Eu sentia enjoo, mas não tinha nada a ver com ânsia de vomito.

Eu estava encharcada de suor e não sabia há quanto tempo estava deitada naquela cama, mas parecia tempo demais. Minhas pernas fraquejaram embaixo de mim e eu caí enquanto caminhava até a porta. Corri o mais rápido que pude e mesmo assim era muito lento, quase um rastejar. Quando descia as escadas, notei que estava escuro, o que explicava o porquê de não ter ninguém em lugar nenhum. Quando cheguei ao jardim, cai de joelhos.

Minha pele começou a queimar, mas não como antes. Dessa vez, era como se as minhas células quisessem se separar umas das outras. Como se dezenas de pequenas agulhas me picassem ao mesmo tempo.

Arrastei-me mais alguns metros e deixei minha cabeça pender para frente enquanto perdia a batalha contra a dor. Preparei-me para desmaiar, enquanto o céu se tornava preto como em uma tempestade perfeita. Deitei-me no chão de olhos fechados, já que a dor era forte demais até para mantê-los abertos. Eu me engasguei quando os pingos grossos de água caíram, apaziguando um pouco a dor e me permitindo respirar novamente. Dezenas de borboletas em chamas dançavam a minha volta, a chuva fazendo com que elas se tornassem pó em um círculo perfeito ao meu redor e eu sabia que estava alucinando.

Desmaiei por segundos, meses, anos, séculos, milênios, não fazia mais diferença, pois eu sabia que estava louca, já que quando despertei senti um pequeno serzinho repousando em meu peito.

Quando abri meus olhos na próxima vez, estava deitada na minha cama de novo. Meu corpo estava quebrado, eu não conseguia mover nenhum músculo sequer abaixo do meu pescoço. Pisquei. Nicholas estava sentado ao meu lado.

Por Crown, eu estava completamente louca.

Apaguei.

***

― Luna? ― Chamaram. ― Vamos, Lua, acorde!

***

Eu senti uma luz azul estranha por trás das minhas pálpebras quando acordei na próxima vez. Meu corpo não estava mais tão quebrado como da última vez. Virei minha cabeça e vi uma espécie de sofá ao lado da cama. Isso não estava aqui antes, estava? O que me chamou mais atenção, no entanto, não foi o estofado vermelho e sim um garoto de cabelos pretos, que estava sentado, concentrado em um copo com líquido azulado. Pisquei. Era dali que vinha a luz. Em volta do olho esquerdo dele havia uma redonda e enorme manha roxa que começava a amarelar nas bordas. Quem lhe tinha dado um soco?

― Quem é você? ― Inquiri com a voz rouca e sem uso.

Nicholas me olhou assustado.

― Você não sabe quem eu sou? ― Perguntou respirando fundo e colocando o copo no criado-mudo, tentando esconder, sem sucesso, seu olhar alarmado.

Desatei a rir da cena hilária a minha frente.

― Eu não poderia te esquecer nem em um milhão de anos ― falei após controlar o riso.

Ele não riu como eu esperei que fizesse, ao invés, ele sentou-se ao meu lado sem me olhar nos olhos. A contusão entorno do seu olho me fazendo morder a língua para não perguntar o que tinha acontecido.

― Você me assustou ― disse em voz baixa.

Abaixei os olhos, triste.

― Eu sinto muito ― murmurei.

Ele pegou minha mão.

― Não se desculpe. Seria engraçado ― ele balançou a cabeça. ― Se eu não tivesse ficado muito perto de te perder nesses últimos dias. O que você disse foi saído dos meus mais profundos pesadelos.

― O que aconteceu? ― Perguntei minha voz ainda rouca.

Ele riu sem humor.

― Você teve febre, febre, parece algo tão bobo, não é? Você ficou muito mal, quase teve uma convulsão. Começou a gritar de dor em algum momento ― ele me deu uma breve olhada e voltou a olhar para o nada. ― É por isso que você está rouca, sua voz deve voltar ao normal em poucos dias ― ele suspirou e bagunçou os cabelos. ― Você se arrastou até o jardim na chuva ― a indignação em sua voz era palpável. ― Fiquei tão desesperado quando não te encontramos aqui e quando te achamos lá fora na manhã seguinte ― ele fechou os olhos com força. ― Eu quase tive um enfarte. Você estava tão gelada eu achei que você estivesse morta. Depois disso, nós achamos que seria melhor se alguém ficasse aqui com você e eu não sai daqui desde então.

― Eu sinto muito por isso, Nicholas.

Ele passou o braço ao redor dos meus ombros e deu um beijo na minha testa.

― Shhh, baby. Não é culpa sua. Na verdade, a culpa de tudo é minha. Tantas coisas aconteceram nesses últimos dias. Eu vou te contar tudo, mas primeiro você precisa comer.

***

― Talvez você devesse se sentar ― falou Nicholas me guiando para a cama depois de ter me obrigado a tomar banho e comer como um mestre de obras. Eu bebi litros de água apenas para que o arranhar da minha garganta ficasse suportável, mas ainda estava tão rouca como antes e não estava certa de que minha voz realmente voltaria ao normal como ele havia dito.

― Você está começando a me assustar, Nicholas ― avisei.

Ele fechou os olhos com força.

― Por favor, não me chame assim ― ele deu um sorriso, mas pareceu forçado. ― Eu gosto de "Nick" ― ele sentou no sofá, suspirou e se levantou novamente. ― Eu acho que não consigo fazer isso.

― Só fale.

― Antes de tudo ― ele passou a mão pelos cabelos assim como fez naquele dia no ônibus, não muito tempo atrás. Pareciam décadas agora. ― Eu quero que você saiba que eu estou feliz, okay?

― Eu não estou ficando mais calma ― suspirei. ― Comecemos com algo simples, se o que tem para dizer te incomoda tanto ― ele acenou com a cabeça levemente para que eu pudesse continuar. ― Quem te deu esse soco?

Ele riu alto.

― Está tão obvio assim? Eu achei que já estivesse imperceptível. ― Continuando, balançou a cabeça. ― Foi Adam, mas eu mereci esse e provavelmente muitos mais ― deu de ombros.

― Mas por que ele fez isso? Não te levaram para a enfermaria? Duvido que não haja nenhuma curandeira nesse lugar.

Ele me deu um sorriso simples e cansado.

― Se houvesse alguém aqui com o poder de cura, pode ter certeza de que já teria tentado te curar. Josephine me explicou que não existem curandeiros aqui, apenas duas enfermeiras, mas nenhuma delas tem poder de cura, isso é poder demais. Me deram gelo e um remédio para a dor de cabeça que eu mais que mereci. De qualquer forma, é melhor que eu conte tudo de uma vez. ― Ele se ajoelhou na minha frente e deu outro daqueles sorrisos forçados. ― Eu provavelmente deveria ter um anel nesse momento, mas ― ele secou as mãos na blusa cinza que vestia e tirou um barbante do bolso. ― Tudo foi muito inesperado, então me perdoe pelas circunstâncias e o presente pobre, mas Luna, você gostaria de se casar comigo?

― Que diabos? ― exclamei completamente abismada. ― De onde você tirou essa ideia maluca? ― Perguntei engolindo a vontade de rir histericamente.

― Isso tudo foi muito ridículo ― falou sentando-se no chão e se apoiando nos braços. ― Mas eu achei que talvez fosse necessário. Nós vamos nos casar de qualquer forma e eu sinto muito por isso, Luna, não pelo casamento em si, mas por você não ter escolha quanto a isso.

― Casamento? Mas como assim...? Por que...? ― Minha voz morreu e eu o encarei incrédula. Ele se levantou e se sentou ao meu lado pegando as minhas mãos.

― Eu odeio ter que fazer isso assim, dessa forma ― ele sorriu e dessa vez pareceu um sorriso de verdade. ― Eu te vi pela primeira vez quando eu tinha treze anos ― contou. ― Você já era linda, mesmo naquela época. Com esses belos cabelos castanhos, que naquele tempo eram mais longos e esses olhos azuis. Eu não conseguia te tirar da minha cabeça. Coisa boa para mim que eu te via todos os domingos, na igreja. Com aquele monte de crianças junto e apenas dois adultos acompanhando. Eu levei quase um ano para entender que você era do Helena. Você nunca me viu. Nunca notou o fato de que eu te encarava como um obcecado. Nunca percebeu que os meus olhos estavam sempre em você. Nunca sequer deu um olhar em minha direção. Eu te amava mesmo naquela época e eu te amo ainda hoje ― ele beijou as minhas mãos com cuidado. ― E eu estou extremamente feliz com o que nós criamos, com o que nós temos e com o que tudo isso implica para nós, ainda que eu esteja assustado, eu gostaria que você ficasse feliz também, mesmo que você precise de um tempo para isso.

― Eu sinto muito, Nick, mas não estou entendendo onde você quer chegar ― falei com delicadeza. Ele me amava e isso era óbvio pela forma como ele me tratava, eu podia não devolver os sentimentos dele plenamente, mas me importava com ele o suficiente para saber que tudo aquilo era verdade, mesmo que me assustasse a perspectiva de que nosso primeiro encontro não houvesse sido na noite em que fomos Picotados como eu sempre pensei.

Ele respirou fundo antes de soltar o ar por entre os dentes como era característica dele.

― Você está grávida, minha Luna. E Abigail quer que nos casemos ― soltou rapidamente. Eu não respondi nada por um longo tempo. As mãos dele acariciavam as minhas costas, me passando uma tranquilidade que eu imaginava que não deveria sentir. ― Eu não quero que você se sinta mal por isso. A culpa é minha, afinal, eu deveria ter sido mais cuidadoso, mas Crown sabe que eu estou tão feliz! Eu espero que algum dia, você sinta toda a felicidade que eu estou sentindo nesse momento ― ele estava tagarelando sem nem perceber e eu o cortei:

― Grávida? Casamento? Aos dezessete anos? ― eu nem sabia se queria me casar e ter filhos um dia. Tudo aquilo se avolumou a minha recente doença e me fez querer desaparecer. Entretanto, eu não podia ignorar os fatos, se aquilo já havia sido decidido fosse por Abigail ou por Crown, não seria eu a voz ativa para mudar os fatos. ― Me conte sobre o que já foi decidido, estou cansada de ficar no escuro sobre todas as coisas em minha vida.

Ele abaixou os olhos para o chão claramente chateado com a minha resposta, mas eu sabia que Nicholas era adulto o suficiente para entender a minha reação.

― Abigail quer que o casamento seja logo, imediatamente após a cerimônia do Aceito, ela tem medo de que aconteça o mesmo que aconteceu com ― ele hesitou por alguns segundos. ― Os seus pais.

― Isso faz todo o sentido, ― acordei derrotada, era de se esperar que Abigail, que havia prometido não deixar a história se repetir, pensasse isso ― mas eu não sou ela, Nicholas, nem ao menos fui criada por ela, jamais faria o que ela fez.

― Eu sei ― concordou rapidamente. ― Eu sei disso, pois eu conheço você ― ele suspirou e era como se um peso tivesse saído dos ombros dele por ter tido aquela conversa. ― Não pense que eu simplesmente aceitei isso, eu sabia que você não ficaria feliz como eu, não sou egoísta, mas ela está irredutível e eu sinto muito que você tenha que enfrentar tudo isso, mas você não está sozinha, Luna, eu estou nessa com você ― ele respirou fundo. ― Agora eu vou sair e te dar tempo para pensar ― avisou já se levantando.

Eu gostaria de pedir que ele ficasse, a presença dele me acalmava, mas eu ainda estava fraca e cansada e, naquele momento, só queria ficar sozinha para discutir com os meus próprios sentimentos. E então, ele saiu.

Meus olhos, quase que involuntariamente, acabaram se desviando para a foto dos meus pais de criação no porta-retratos. Eu sentia tanta falta deles, mesmo que não tivessem sido meus por sangue. Ainda conseguia ouvir a risada escapando do meu pai quando ele tentava ficar sério e praticamente poderia ver os cabelos da minha mãe voando com o vento.

Eu sentia tanta falta deles.

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O que aprendemos com esse capítulo, crianças? Que sempre se deve usar proteção, fica a dica!

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