Capítulo Um

Hoje é o dia anterior ao picote. Nos sentávamos amontoados em frente a única televisão do orfanato após o jantar, como fazíamos todas as noites. O jornal das nove anunciava o Picote e as áreas com maiores possibilidades. Nosso acesso à internet era limitado e a televisão era nossa maior fonte de notícias ― se não contássemos com as fofocas na igreja, aos domingos.

Aquele era o dia de rezas no orfanato. Com a liberdade religiosa que possuíamos ― mesmo que todos fossemos a uma igreja católica uma vez por semana ― cada um se atinha as suas crenças e deuses, mas o motivo era o mesmo de sempre. Os mais velhos clamavam para que não fossem picotados, já os mais novos para que fossem eles os escolhidos e pudessem desvendar o grande mistério ao redor da Seita e voltar para casa vitoriosos.

Só tinha um pequeno detalhe de errado nesse plano grandioso: ninguém voltava.

Há dois anos, uma das meninas do orfanato, Lauren, foi escolhida. Me lembro de vê-la gritar e quebrar metade do primeiro andar antes que a arrastassem e a levassem embora.

Ela nunca voltou.

Alguns dizem que eles os matam, outros que eles têm a vida de verdadeiros soberanos. David e Kyle adoravam pesquisar teorias a respeito na internet, mas a maioria era bobagem e até Julian concordava com isso. Eu não pensava sobre isso. Nunca.

Quando um programa de variedades qualquer começou, eu me levantei discretamente conseguindo não atrair o olhar de Julian e subi para o quarto comunal.

Desenhei por alguns minutos até que Kelsey entrasse no quarto grande. Nós o chamávamos assim, pois ele tomava um andar inteiro e todos nós dormíamos nele.

― Hora de recolher em quatro minutos, Luna ― anunciou.

Acenei com a cabeça e ela saiu. Corri até o banheiro, escovei os dentes e voltei em tempo recorde.

Quando o primeiro sinal tocou David, Kyle, Kelsey, Scott, Amy e Julian entraram. Quando o sinal tocou pela segunda vez, como aviso, os outros vieram como formigas voltando para o formigueiro após um dia inteiro de trabalho duro.

― Boa noite, Kelsey ― começou David o garoto mais velho do Helena. Ele completaria dezoito anos em sete semanas contadas no calendário pregado atrás da porta. Ele e Kyle, seu irmão, tinham a pele em um tom escuro muito bonito e quando éramos crianças ele me explicou que a família deles vinha do outro lado do grande continente, um lugar que já foi chamado de Jindia no mundo antigo. Eu sentiria muita falta da sua presença, o seu humor diferenciado fazia dele a pessoa mais engraçada que eu já conheci e ele era um dos meus melhores amigos, afinal. Ele ficaria perto, eu sabia, pelo seu irmão e por todos nós, mas assim como todos que já haviam ido embora antes dele, não seria a mesma coisa. 

― Boa noite, Julian ― continuou com a brincadeira boba que Edward havia inventado antes de ir embora para que sempre nos lembrássemos dele.

― Boa noite, Nicolle ― disse Julian.

― Boa noite, Peter.

― Boa noite, Luna ― falou Peter.

― Boa noite, Amy ― respondi. A brincadeira continuou até que Ashley tivesse dado boa noite de volta para David. Quando o terceiro sinal tocou as luzes se apagaram e todos ficaram em silêncio.

Pensei nos meus pais, que haviam morrido em um incêndio quando eu tinha cinco anos. A minha única lembrança física dos dois era uma foto deles felizes e sorridentes em frente a nossa antiga casa. Fechei os olhos e murmurei que amanhã seria um novo dia e tudo daria certo. Eu não seria picotada. Quais as chances de mim ― uma azarada de Maryland ― ser um dos treze sortudos em um mundo tão grande?

***

No dia seguinte, à tarde, fomos levados de ônibus para a prefeitura assim como todos os anos.

Aquilo acontecia desde que a Verhallow havia tomado o poder, após uma sangrenta guerra civil, séculos atrás. Nosso grande continente foi unificado em uma única nação e dividido em quatro grandes sessões e dentro de cada uma delas, quatro subseções para facilitar o governo de nosso próspero mundo. 

O anfiteatro para a qual seguimos era amplo e repleto de poltronas de veludo vermelho, já desfiando pela idade, enfileiradas em formato de meia lua, voltadas para o grande telão adiante. No palco, a família do prefeito e seus assessores estavam sentados em volta de uma grande mesa redonda, ainda podíamos vê-los, mas quando a luz diminuísse e o telão se acendesse, eles desapareceriam na escuridão assim como nós dentro de nossas mentes preocupadas.

Havíamos chegado tarde porque morávamos longe e naquele ponto o lugar já começava a lotar, se tornando abafado pela falta de janelas.

O chão era velho e apesar de ser de madeira maciça estalava a cada passo e não éramos exatamente cuidadosos, correndo para pegar um bom lugar, rezando para que não fôssemos nós os escolhidos. Sentamo-nos em uma fileira só, Scott no primeiro banco e David no último. Sentei-me ao lado de Julian que conversava com Kelsey e David.

― Scott! ― Chamei. ― Vem para cá!

― Você sabe que eu gosto de ficar na ponta, pequena Lua. ― Disse enquanto se sentava ao meu lado direito antes que Ashley o fizesse. Revirei os olhos para o apelido que ele me deu dois anos atrás. Ele se sentiu o maior gênio com isso na época e disse para todos me chamarem assim, mas graças a Deus ninguém aderiu. ― Se esse lugar pegar fogo, todos iremos queimar como churrasquinho.

― Se esse lugar pegar fogo ― comecei. ― Eu deixo você pisar em mim para salvar a sua vida.

Ele riu.

― Não ofereça uma coisa dessas ― pediu. ― Na hora do desespero nunca se sabe.

Sorri para ele quando o chiado de teste do microfone começou.

O prefeito Sumnit estava à frente do palco com um microfone na mão. Ele usava um terno cinza e gravata vermelha, seu cabelo começando a dar sinais de cinza.

Só costumávamos vê-lo ao vivo em duas ocasiões, uma delas era o Picote, que sempre me causava taquicardia, e a outra era o Dia da Revolução, onde um festival era montado em homenagem a tomada de poder da Verhallow e o prefeito costumava discursar antes que a banda da cidade tocasse a Marcha da Vitória.

― Alguém, por favor, avise a ele que essa roupa é horrível? ― Sussurrei de brincadeira.

Julian e Scott riram e Kelsey balançou a cabeça com reprovação.

― Nós somos do Helena, Luna. Somos os últimos que podem falar de roupas horríveis ― retrucou.

― As nossas coisas não são tão ruins assim ― respondi ofendida. Ela deu de ombros, colocando o cabelo castanho atrás da orelha, encerrando a conversa e fazendo com que eu me sentisse culpada pelo meu senso de humor estupido.

― Boa tarde a todos ― iniciou o prefeito sorridente, como se o que viesse a seguir fosse bom de alguma forma e ele não tivesse dois filhos ainda em idade de serem picotados. ― Os que ainda estão em pé acomodem-se, por favor, os Anúncios irão começar em poucos minutos.

Um barulho ensurdecedor começou quando os alunos do Judith ― a melhor escola interna de Surviver que, curiosamente, ficava em Maryland ― decidiram se sentar duas fileiras atrás de nós. Tanta educação que, pela forma como eles agiam, não saia do papel.

― Espero que Ashley seja picotada ― declarou Julian fazendo Scott rir. Dei um tapa em sua cabeça ― Ai! ― Exclamou. ― Por que você fez isso? Você não a suporta.

― Você não deve desejar mal aos outros, nunca te disseram isso? ― Ralhei séria.

Ele entrelaçou seus dedos aos meus sorrindo.

O telão se acendeu e uma mulher loira dos olhos verdes vestida com um sári rosa de bolinhas laranja apareceu sorrindo.

― Olá, meus queridos ― exclamou. ― Animados para o picote desse ano?

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A Luninha dá boas vindas à vocês, sintam-se em casa ao iniciar essa jornada junto com ela.

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