Capítulo Três
― Luna, querida, acorde. ― Charlotte me chacoalhava levemente pelos ombros. Eu abri meu olho esquerdo e depois o direito. Seu coque sempre perfeito estava desgrenhado, seus óculos escorregando do lugar e seus olhos estavam vermelhos como se ela tivesse passado a noite toda acordada. ― Você tem trinta minutos para se arrumar antes do ônibus vir te buscar.
Desvencilhei-me de Julian com cuidado para que ele não acordasse.
― Lottie...
― Eu vou fazer vista grossa sobre isso por causa das circunstâncias, mas não pense se isso vai se repetir ― disse com a voz severa de sempre, mas de certa forma ainda carinhosa.
― Não é como se eu fosse estar aqui para ver esse tipo de coisa ser punida ― disse com uma risada sem humor.
― Não seja tão pessimista, Luna. ― Pediu. ― Você ainda vai realizar feitos grandiosos, apenas não aqui.
Guardei para mim mesma o meu péssimo humor, Charlotte não merecia me ter choramingando no nosso último dia uma com a outra, não era assim que eu queria que ela se lembrasse de mim.
Me vesti às pressas e tomamos o café da manhã juntas enquanto assistíamos os primeiros raios de sol subirem. Ela estava silenciosa como sempre, mas eu sabia que sentiria minha falta assim como eu sentiria a dela, afinal por mais que ela tentasse passar a imagem de mulher severa, eu sabia que ela amava cada um de nós como se fossemos seus próprios filhos.
― Vá, querida, pegue sua mala ― disse ela. ― Eles devem estar aqui a qualquer momento.
Fiz o que ela mandou, escovei os dentes e fui ao Quarto Grande uma última vez em busca da minha bagagem.
― Luna, o que você está fazendo? ― Ouvi.
Meus olhos se voltaram ao garoto sonolento que me encarava enquanto passava os dedos entre os cabelos rebeldes.
Olhei nervosamente para o relógio acima da porta.
― O ônibus vai chegar daqui a alguns minutos.
Os olhos dele ainda estavam embaçados e desfocados e em meio a sua nevoa tangente de sono eu percebi que ele não sabia.
― Está tudo bem, Jules ― toda a dor que eu guardei formou um bolo gigante na minha garganta e levou lagrimas aos meus olhos. ― Vai ficar tudo... ― eu fechei os olhos quando as primeiras lágrimas caíram e antes que eu percebesse Julian estava com os braços a minha volta. Eu abri os olhos e encarei sua íris verde que agora também estavam com lagrimas.
― Você não pode me deixar, Lunática. Você é minha ― vociferou de maneira um pouco insana. ― Ninguém pode te tirar de mim. Eu vou te buscar ― jurou. ― Não importa quanto tempo leve. ― Eu fechei os olhos com força tentando me acalmar o suficiente para parar de chorar. ― Você vai levar a nossa foto ― declarou ainda mais desolado.
Nós havíamos tirado a foto a qual ele se referia no natal passado. Eu estava com um vestido prateado apertado e curto demais e com total falta de classe já que havia me recusado a usar os sapatos horríveis e apertados. Já Julian conseguia aparecer absurdamente quente vestindo qualquer coisa, até mesmo o mesmo terno e gravata que ele usava para ir à igreja todos os domingos, com os punhos gastos e excessivamente curtos, para os seus braços enormes. Nós brincamos de esconde-esconde por horas naquela tarde e quando eu usei o meu melhor esconderijo, em cima de uma árvore, ele havia surtado. Quando eu desci rindo, ele gritou comigo e me disse para nunca mais ir para longe dele.
Depois da modesta ceia, imploramos para que Lottie tirasse uma foto nossa. Ter uma fotografia no Helena era um luxo. Na foto ele me abraça por trás e apoia a sua cabeça na minha, a pele escura brilhando a luz da lua e eu estou rindo loucamente de algo que ele disse.
Estávamos muito felizes e aquela era definitivamente uma foto memorável.
Balancei a cabeça tristemente.
― A foto é sua, Jules ― sorri secando os olhos inchados. ― Não é como se eu precisasse de uma imagem física sua. Eu tenho o seu rosto queimado na minha mente. Prometo-te que você será o meu primeiro pensamento ao acordar e o último ao ir dormir pelo resto dos meus dias.
A boca dele ficou aberta por um segundo, em choque.
― Mesmo assim. Eu te amo mais do que você pode entender.
Meu sorriso foi fraco.
― Eu também te...
Mas eu nunca terminei a sentença porque naquele momento Julian, meu melhor amigo, meu irmão, me beijou.
Sua língua acariciou a minha lenta e carinhosamente sem medo de que eu o afastasse, coisa que eu jamais faria, minhas mãos se enroscaram automaticamente no seu pescoço e meus dedos tocaram o seu cabelo. Quando eu achei que poderíamos ficar ali para sempre a buzina do meu ônibus soou. Ele interrompeu o beijo e encostou sua testa na minha.
― Agora temos uma relação incestuosa ― murmurou.
Meu olhar percorreu as camas com medo de que os nossos amigos tivessem visto aquela cena, mas todos ainda estavam dormindo. Jules me deu um selinho antes de ir até o seu baú e pegar a nossa foto.
― É sua ― falou. Cedendo, a guardei na mala com cuidado, junto com a foto dos meus pais. ― Eu posso te levar até a porta? ― Perguntou lembrando-me muito aquele garotinho que tinha chegado aqui aos seis anos ainda assustado pela perda da mãe.
― Claro.
Ele pegou minha mala com a mão direita e com a esquerda segurou a minha. Quando chegamos lá fora, Charlotte já nos esperava. Ela me abraçou com os braços magros e pediu que eu me cuidasse. Olhei para Julian suplicante e ele me enlaçou e, por fim, me deu um beijo na testa.
― Eu te amo ― ele suspirou completamente perdido. ― Me promete que não vai esquecer isso nunca?
― Prometo ― respondi.
― Até logo, Luna ― terminou. Ele ficou parado ali, parecendo desolado, enquanto eu ia para o veículo acenando para ele e Lottie.
Quando subi os degraus do ônibus vi meu destino se estendendo a minha frente.
Peguei o Passe de Cidadão do bolso só para perceber que não tinha uma catraca eletromagnética. O motorista loiro aparentando vinte e poucos anos sorriu para minha confusão. O maldito automóvel não tinha catraca e ele estava sorrindo!
― É só seguir, moça.
Respirei fundo sabendo que aquela histeria era causada pela situação em si e não pela falta de catraca e isso também não era culpa dele, então apenas fiz o que ele disse. Nicholas estava sentado na metade do ônibus do lado esquerdo e eu me sentei no mesmo conjunto de bancos do lado direito para acenar para Julian e Charlotte. Coloquei a mala sob meus pés não querendo me separar dos meus pertences.
Quando o ônibus começou a se mover, Nicholas se sentou ao meu lado.
― Bom dia, Luna ― disse com uma voz grave, mas de certa forma, melodiosa.
O ignorei até que tínhamos virado a esquina e eu já não podia mais ver o que eu estava deixando para trás.
― Bom ― respondi sarcasticamente encarando o banco a minha frente, evitando seu olhar constante.
― Bela roupa.
Olhei para baixo para ter certeza de que não tinha de forma alguma saído de pijama. Graças a Deus, o que vi foi uma camisa xadrez vermelha de flanela, uma calça jeans preta, um tênis preto e um colar simples, com pingente de coração que Jules havia me dado no meu último aniversário. Toquei o pêndulo como um gesto de boa sorte.
― Obrigada. ― Olhei para o que ele vestia, uma blusa cinza de moletom com capuz com colete de couro, calça preta, tênis preto e uma mochila azul no colo. ― Você também não está nada mal.
Ele sorriu para mim e abaixou os olhos.
― Despedida difícil? ― Questionou claramente tentando puxar assunto.
― Yeah ― murmurei seca.
― Namorado?
Sorri para mim mesma e respirei fundo. Voltando a olhar a paisagem, respondi:
― Melhor amigo.
― O que você acha que vão fazer conosco? ― Questionou. Ri da sua mudança súbita de assunto. Seus olhos encontraram os meus e ele me deu um sorriso sincero.
― Eu não faço à mínima ideia ― retruquei tirando o cabelo dos olhos em um gesto automático.
― Quer ajuda com a mala?
Ele estava tão agitado, que ao contrário do que eu realmente queria, respondi que sim. Em um movimento languido ele colocou minha mala e sua mochila no compartimento acima das poltronas.
― Obrigada.
Ele suspirou.
― Me desculpe por estar tão agitado, mas eu estou tão nervoso ― falou parecendo verdadeiramente culpado. ― E quando eu fico nervoso, eu fico elétrico ― ele puxou a manga da blusa para me mostrar os pelos do braço completamente eriçados.
― Por que eles estão assim? ― Apontei curiosa.
Ele deu de ombros:
― Como eu disse, quando eu fico nervoso eu fico elétrico ― sorriu. ― Figurativamente e literalmente.
― Você queria ser picotado? ― Perguntei antes que pudesse me parar.
― Deus, é claro que não ― cuspiu comicamente. ― Estou morrendo de medo do que vai acontecer.
Eu ri. Como ele é medroso!
― Posso pedir uma coisa? ― Perguntou.
― Sim, eu acho ― ponderei.
― Se eles forem nos matar, você pode segurar minha mão? ― Ele indagou com cuidado como se estivesse com medo da minha reação. O brilho em seus olhos me desarmou completamente. Ele levou a minha pausa como perplexidade e prosseguiu com constrangimento. ― Quer dizer, eu sei que mal nos conhecemos, mas eu não quero morrer me sentindo sozinho.
― Eu segurarei a sua mão se você prometer fazer o mesmo por mim ― ofereci.
Ele abriu um sorriso mais luminoso que o próprio sol e levantou dois dedos da mão direita.
― Eu prometo.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top