Capítulo Dez

Quando acordei estava muito frio, o que era estranho, afinal estávamos em junho ainda, mas talvez aquilo fosse normal naquele lugar, já que eu não fazia a mínima ideia de onde estava. Eu poderia estar em outro hemisfério, bem como poderia estar em uma dimensão mágica.

― Está um frio horrível lá fora ― declarou entrando vestido como um esquimó. ― Eu abri a janela e voei cinco metros.

― Você não voou cinco metros por causa do vento ― respondi balançando a cabeça.

Ele deu de ombros e riu antes de me entender o braço com um floreio.

― Vamos, minha lady?

― Claro, meu lorde ― brinquei de volta.

Eu não pensava que era possível, mas estava ainda mais frio lá fora. Nicholas colocou em minha cabeça seu gorro, em meu pescoço seu cachecol e em minhas mãos suas luvas. Apesar das minhas negativas, os meus tremores e dentes batendo devem ter denunciado o quanto aquele frio estava me matando.

Nós caminhamos abraçados até a figura esguia e encasacada de Henry.

― Graças a Crown! Achei que ia congelar antes que os dois chegassem! ― Exclamou, vapor saindo de seus lábios a cada palavra.

Nicholas revirou os olhos e eu sorri.

― Então, crianças ― falou ironicamente. ― Vocês não podem aprender o caminho do labirinto.

― Mas você havia dito... ― começou Nicholas.

― Vocês não podem aprender o caminho ― cortou. ― Mas há uma forma de se guiarem. Quando vocês passarem pela cerimônia de escolha, seus pés caminharão por este labirinto como se fizessem isso desde a mais tenra infância e então o que eu lhes ensinarei hoje será completamente inútil. Vamos lá ― no momento em que as palavras saíram de sua boca um ar quente passou por nós me esquentando até os ossos.

Nicholas deixou de me abraçar para segurar a minha mão.

― Olhem para o chão e só para ele ― alertou o moreno enquanto adentrávamos a cerca viva. ― Vocês conseguem ver?

Abri a minha boca pronta para dizer não, quando como um vidro sendo desembaçado eu vi. O caminho por onde percorríamos estava em chamas.

Elas não eram reais, eu sabia, mas pareciam.

― O que veem? ― Insistiu.

― Fogo ― respondi.

Ele virou a cabeça levemente para me deixar ver o seu sorriso.

― Eu sabia que a tua aura era incandescente e se te deixa mais tranquila eu vejo ossos. Como pequenos ossinhos para cachorros ― ele riu mais uma vez. Eu não era capaz de entender como ver ossos, mesmo que fossem para cachorros, era remotamente engraçado. ― E você Nicholas? ― Ladrou.

― Eu vejo uma espécie de nevoa.

― Nevoa? ― Perguntei alarmada. ― Isso é ruim?

― Não, apenas significa o poder dele ainda não se manifestou completamente. O seu e o meu, sim. Crown escolhe à hora certa para chamá-los, Nicholas está apenas algumas semanas adiantado, a névoa é um bom sinal.

Apertei a mão de Nicholas como conforto e ele me deu um beijo na bochecha.

***

Retirado do diário de Luna Victoria Canberight

Hoje eu e Nicholas aprendemos a atravessar o labirinto e por mais que isso tenha me tranquilizado em um sentido espiritual, não sei se a ideia a ideia de fugir é logica, afinal, nem sei em que parte do grande continente esse lugar se encontra.

É incrível como quanto mais tempo passo aqui, mais perguntas eu tenho e menos respostas obtenho. 

Nicholas...

***

Acordei com alguém me chacoalhando os ombros. O quarto estava escuro ainda e apenas pude notar madeixas prateadas próximas ao meu rosto. Alicia.

― Luna! Luna! Acorde! ― chamava.

Espanei as mãos dela e bufei porque apesar de ela me clamar desesperadamente o tom de sua voz não era preocupado.

― Alicia! ― exclamei de volta. ― Qual é o motivo de toda esta agitação?

Eu me sentei e ela se afastou automaticamente.

― Hoje teremos o Search! ― anunciou empolgada e abriu as portas do guarda-roupa parecendo buscar algo.

― O que diabos é isso e porque você está deflorando o meu armário? ― Levantei-me e me coloquei ao seu lado tentando ver o que ela fazia ali dentro.

Eu ouvi seu estalar de língua antes de ela continuar:

― O Search é como um jogo, uma preparação para o Guide ― informou, a voz abafada como se ela estivesse com algo na boca. Tentei ver o que era, mas a massa de cabelos platinados atrapalhava a visão. A menção ao Guide me chamou a atenção e decidi me focar nisso ao invés de onde estava a boca da loira.

― Como isso funciona?

― Os Highters criam pistas e escondem algo para ser encontrado por nós. Imagino que a ideia seja nos unir. ― Ela olhou para mim e franziu as sobrancelhas. ― Isso geralmente acontece após o Scan, e é muito mais divertido, já que os veteranos sempre dão uma surra nos Iniciandos, mas esse ano tudo parece atrasado e tentaremos fazer nosso melhor.

― Eu ainda não entendo o que isso tem a ver com você dentro do meu guarda-roupa ― apontei.

― Você não vê? Essa é a oportunidade perfeita para usar calças! ― gritou animada.

Eu não comentei que havia usado calças no dia anterior, Henry havia pedido para que não contássemos que ele nos ajudou e mesmo que ele e Alicia fossem amigos, eu havia prometido. Então, apenas a segui. Coloquei uma calça jeans cinza, um blusão verde ― que eu tinha certeza ter um buraco em algum lugar ― e um casaco vermelho. Eu parecia uma aquarela ambulante e gostava disso.

― Temos times? ― perguntei conforme descíamos o corredor longo.

― Não ― maneou a cabeça ― Seremos todos inimigos hoje ― ela pareceu balancear suas palavras ― de certa forma.

― Como funciona a organização disso? ― inquiri, pois eu ainda não sabia nada a respeito da Seita, de fato.

― Os Highters se revezam ― ela fez um bico e um som de pensamento ― tenho a impressão de que essa foi criada por Johanna Spencer. Ela não é muito criativa, então tenho certeza de que acabará logo.

Aquela era minha oportunidade.

― Eu não ouvi muito sobre ela até agora ― joguei como quem não quer nada.

― Não há muito para saber, realmente, as Spencer vieram de uma alta família de Highters e por isso tem os cargos que tem, Johanna como Anunciadora e Josephine como Buscadora.

― Mas Josephine odeia o cargo dela ― lembrei. Ela não tinha sido exatamente silenciosa sobre seu desprezo.

― Highters são assim mesmo querida, sempre ingratos com o que tem. Principalmente os nascidos assim ― ela deu de ombros e prosseguiu. ― Pois bem, Johanna é uma cabeça de vento e as duas nunca se deram tão bem, mas a tensão explodiu por causa de Danny alguns anos atrás.

Eu já havia ouvido a respeito e estava pronta para pedir mais informações quando demos de cara com um Henry sem camisa, sua pele escura cheia de tinta, como se estivesse pintado para a guerra.

― O que vocês estão esperando? ― indagou sorridente. ― Venham logo! ― completou antes de correr para longe, uivando.

― Bem ― iniciou a loira com as sobrancelhas erguidas. ― Realmente deveríamos nos apressar.

Descemos as escadas e saímos para o pátio. O espaço estava realmente cheio e conforme os primeiros raios de sol rasgavam o céu Alicia suspirou.

― Não tem quase ninguém, mas eu não esperava que fosse diferente. Os ânimos estão baixíssimos esse ano.

Eu ia perguntar o porquê, mas Johanna ― que estava em cima de um púlpito ridículo ― começou a falar.

― Olá, veteranos e Iniciandos! Bem-vindos ao nosso Search anual! Eu lhes darei as pistas e vocês terão uma hora para encontrar o objeto designado que esse ano é um ― ela pigarreou para o clímax: ― Ovo de ouro! ― exclamou sorridente e recebendo algumas palmas em retorno.

― Será que tem como ela ficar mais ridícula? ― sussurrou a loira ao meu lado e eu dei-lhe uma cotovelada nas costelas.

― A verde mansidão da eterna amplidão azul esconde um prêmio ― berrou a de olhos verdes ― A nevoa da verdade guarda o desenho de um dourado anseio! Boa sorte a todos! ― gritou por fim antes de descer.

O que diabos aquela charada estranha significava?

Alicia correu para longe e eu notei que a maioria das pessoas ao nosso redor fazia o mesmo, alguns em círculo pelo pátio, outros para dentro do castelo, mas a maior parte foi em direção as escadarias que levavam a praia.

Era obvio que "prêmio" e "dourado anseio" se referiam ao ovo de ouro, mas "verde mansidão" e "desenho" sem dúvidas significavam o labirinto para mim.

Não era possível que eu fosse a única a perceber isso, talvez eu estivesse enganada e "amplidão azul" ― que ao que parece a maioria se atinha ― fosse realmente a chave, mas a minha intuição ordenava que eu checasse o labirinto e me encontrei entrando no castelo e atravessando o salão em direção ao outro lado.

Parei em frente a fonte de anjo que havia me aterrorizado durante a minha chegada e repeti a charada mentalmente.

Entrei no labirinto e deixei o fogo me guiar como Henry havia ensinado no dia anterior. Eu provavelmente teria saído do outro lado se o barulho de água não me fizesse estancar. Ouvi por alguns segundos antes de tomar um corredor diferente, o fogo se alterando para me mostrar o novo caminho traçado.

Ali havia uma fonte, muito maior do que a de anjo e com muito mais água também. "Amplidão azul esconde um prêmio", de fato, a água caia na fonte criando ondas perfeitas em meio às pétalas vermelhas.

Eu me aproximei e era inegável que havia algo brilhante e dourado no fundo. Eu me inclinei para pegar, mas fui puxada para trás e uma baixinha de cabelos pretos entrou na minha frente, cai no chão com um baque e assisti chocada ela correr para longe com a minha vitória nas mãos.

Ah, mas não mesmo!

Me levantei em um salto e nem me dei ao trabalho de tentar limpar a folhagem das roupas antes de disparar atrás da pequena ladra.

Ela se movia com uma velocidade absurda graças a sua baixa estatura e eu, alta e desengonçada ― amaldiçoado seja quem disse que quem pernas longas corre mais rápido ― estava vários metros para trás. Quando saímos do labirinto comecei a correr mais rápido sem as paredes e corredores para me deter e troquei a ponta de sua jaqueta com os dedos quando ela começou a gritar:

― Eu achei! Eu achei! ― enquanto chacoalhava o ovo ensandecidamente.

Johanna apareceu, vinda de lugar nenhum aparentemente, batendo palmas como uma criança e eu parei de correr e assisti a cena como uma idiota, de boca aberta e tudo.

― Parabéns, Grace! ― declarou a loira. ― Você venceu não só os veteranos, mas os outros doze Iniciandos com apenas catorze anos!

― Eu apenas segui aquela gazela ali ― falou apontando para mim ― ela parecia saber o que estava fazendo ― completou com um sorriso enorme como se não tivesse apenas me ofendido publicamente.

― Isso diz muito sobre a sua própria inteligência, Grace ― congratulou a mais velha ― Aproveite seu prêmio!

Os olhos de Grace se arregalaram com prazer.

― O que eu ganhei? ― averiguou com a voz subindo uma oitava.

― O ovo de ouro, é claro ― esclareceu Johanna.

O rosto de Grace caiu e eu virei de costas para não ser vista rindo. Senti uma mão no meu ombro e percebi que Alicia, assim como todos os outros haviam voltado.

― Não ligue para ela ― pediu ― apenas Johanna veria mérito em algo assim.

A descartei com um movimento de mão.

― Grace tem apenas catorze, todos fazíamos e falávamos coisas estupidas na idade dela ― dei de ombros ― só fico triste por ter perdido o ovo, eu tinha tantos planos para ele... ― tentei e percebi que a brincadeira tinha dado certo quando a loira caiu na gargalhada.

― Os prêmios costumam ser melhores também ― informou secando as lagrimas de riso.

Um garoto moreno passou por nós com a mão sangrando e uma expressão de dor no rosto. Uma garota de cabelos vermelhos o guiava com cuidado.

― O que aconteceu com ele? Para onde eles estão indo?

― Eliott foi mordido por um caranguejo quando estávamos na praia, Barbara vai levá-lo para enfermaria ― comentou com tranquilidade. ― Venha, vou te apresentar a Sala Comum.

Eu quase me engasguei de alívio, pois não aguentava mais ficar trancada no quarto como uma prisioneira, mas apenas sorri:

― Acho que talvez você precise me carregar ― soltei ainda arfando ― Eu destruí minhas pernas correndo atrás da pirralha.

Alicia devolveu o meu sorriso e colocou o braço sobre meus ombros.

― Continue assim e seremos grandes amigas.

A Sala Comum era grande, com várias poltronas e sofás e até mesmo uma estante de livros, tinha uma televisão enorme em um canto e a loira me informou que quando ela era mais nova costumava haver uma sessão de cinema uma vez por mês, mas como eles eram muitos, isso sempre gerou confusão e Abigail terminou com isso cerca de um ano atrás.

― Era divertido, apesar de tudo.

Eu estava sentada em um canto, com um livro de microbiologia no colo quando Nicholas me encontrou. Ele estava com uma camiseta vermelha e a cor parecia certa nele.

― Esse lugar é enorme ― comentou se sentando ao meu lado. ― Alicia me disse onde te encontrar, está na hora do almoço.

Franzi as sobrancelhas não me lembrando de tê-lo visto de manhã.

― Você esteve no Search? ― pronunciei.

Ele balançou a cabeça sorrindo.

― Não, dormi até mais tarde, felizmente, mas Alicia me contou sobre a busca pelo ovo de ouro.

― Foi tão ridículo quanto parece, mas acabamos dando boas risadas no fim.

Ele acenou, os dentes alinhados à mostra.

― Parece uma boa história para se contar aos filhos.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top