秋 (Aki) - Hanzo

O entardecer flamejante revela toda a extensão da esfera solar no topo deste céu, um ápice invejável a todo e qualquer astro presente no universo. Paro próximo ao arco natural de árvores fitando a íris violeta à qual jamais perde o ar de indiferença, ela me odeia mais do que esse tortuoso silêncio... é mediante esses olhos que possuo uma certeza, ela jamais conseguirá perdoar meus erros passados.
Antes que pudesse deixar o carro travo seu movimento segurando a porta, o olhar afiado lança sobre mim frieza e descrença, apenas por esse olhar tenho certeza que poderia me matar a qualquer instante.
Busco sua mão tocando-a, essa expressão de raiva vai contra o semblante calmo que esboça sempre para os outros. Mesmo contra sua vontade ainda carrega a aliança, e pensar que antes de tudo isso éramos mais compreensíveis um com o outro... o passar do tempo apenas acentuou o que todos nós sabíamos, que o ódio iria surgir dentre as emoções de nossos corações e que por ele a destruição do casamento viria.


- Que palhaçada é essa?

- Murano, quero que me explique o que está havendo entre nós para eu poder mudar.

- Eu tomei minha decisão, sou casada não submissa... não mais... estou farta de sempre abdicar de algo em prol de você ou de meu pai.

- Eu disse que poderia vir, manter uma vida de aparência seria mais fácil por aqui e querendo ou não poderia tentar.

- Não pode me respeitar longe e pretendia manter uma vida de aparências comigo por perto? Logo você, o homem que me trai sem peso na consciência, suas palavras não passam de falsas afirmações inválidas.

- Eu sei que erro com você, mas não é por mal, apenas não consigo encontrar outras soluções.

- Vamos logo por favor, ficar no mesmo ambiente que você por muito tempo não me agrada nem um pouco e já percebeu isso.

- Desculpa, eu juro não faço por mal.

- Entendi, apenas enxergar uma oportunidade para errar e permanece em seguir ela... claro que não faz por mal, burra fui eu de não ter me entregado aos sentimentos enquanto estiver sozinha na França.

- Eu sei... - pressiono o volante contra meus dedos. - o que você fez há dois anos, vi com meus próprios olhos.

- Sabe? Que bom! Agora percebe o estrago que gerou em mim... uau... - seus olhos são tomados pela vermelhidão. - descobriu que por sua culpa eu estou vivendo um inferno na terra!


Agressiva desfaz o toque buscando a evasão e por ela retira-se do carro tomando a ribanceira como visão enquanto o sol percorre seu semblante. Deixo o veículo para ter a visão de seus olhos repletos de lágrimas, eu não queria levar a discussão para esse ponto, porém, no final eu apenas faço tudo errado como ela sempre diz... no final eu sou um peso para seus sentimentos tão confusos.
Vê-la desta forma sem forças e inibida de vida mágoa meu coração, dói, saber que tudo isso é por minha culpa crava em meu peito a faca mais letal que alguém poderia ter, sentimentos, quando se voltam para você não há muito o que ser feito para reverter a situação.


- Desculpa, eu fui um idiota com você em todos esses anos. Não tem desculpa que feche as feridas que provoquei no seu coração.

- Eu fiz tudo, deitei-me com um homem, gerei uma filha a qual não tive opção e agora vivo presa nesse lugar de esposa... se soubesse o quão confusa estou entenderia cada sentimento que guardo aqui dentro.


Ofegante toma proximidade do carro, o que eu fiz com ela... busco nosso encontro, mas logo sou afastado. Busco seus olhos e tudo que vejo são apenas fragmentos da mulher que um dia foi, apenas cacos quebrados de seu ser.


- Saía de perto de mim! - sinto suas lágrimas molharem minha camisa. - Eu não quero você!


Nervosa golpeia meu peito com seus punhos fechados... eu baguncei sua vida e não tenho o menor direto de reclamar sobre. O empurrar separa meu abraço e pelo revés de seu movimento sou atingindo no rosto, toco a região sentindo meu sangue escorrer pelo talho em meu lábio.


- Eu te odeio! Eu te odeio! Eu te odeio!

- Tudo bem, eu também me odeio por fazer isso com você. Não chore, nossa filha não vai gostar de testemunhar esse seu lado frágil.

- Ela foi a única... - a vejo cair sobre seus joelhos, Murano... - ela me abraçou enquanto o sangue quente corria por meus pulsos.


A vejo fitar as marcas espalhadas pelo antebraço... ajoelho-me tocando sua pele.


- Se não fosse por nossa menina eu estaria morta agora. Eu quero ser forte por ela, mas eu estou cansada dessa vida... estou farta de tudo.


A luz de seus olhos se esvai, em meu abraço a seguro evitando uma queda ao solo sujo da pista. Coloco seu corpo no assento do passageiro cobrindo-a com uma manta que carrego sempre no banco traseiro.
Essa confusão toda teria sido evitada se eu fosse egoísta com minhas próprias razões, desejei que o sofrimento dela acabasse, mas não desejava colocar outro para sofrer seus pecados e angústias. Agora acredito conseguir entender o que desejava dizer naquela época Yuriko em que surgi com a notícia sobre esse casamento.


Passado (16/04/2010 - primavera)


Levo a xícara até meus lábios sendo agraciado pelo sabor adocicado do café, frente a meus olhos tenho uma visão incomum de seu olhar distante. Não é como se fossemos duas crianças brigando para ter razão neste mundo, somos adultos e como mais velho devo assumir essa responsabilidade.
Frente ao desânimo de seu olhar busco um sorriso na inútil tentativa de quebrar sua carrancuda postura, essa insatisfação com minhas decisões é algo que não posso alterar com palavras, não mais.


- Vai casar com uma mulher que te odeia porque aquele homem mandou? Você mal conhecia nossos pais biológicos e devido à morte dela você deseja fazer as vontades dele?

- Sim, essa é a condição proposta por ele, eu julgo ser a melhor, no final tudo termina bem.

- E diz isso com tanta tranquilidade? - seus olhos, mais uma vez eu a decepcionei. - Sabe, antes de tudo eu entendia seu ponto. Lutar para manter nossos pais adotivos bem, mas agora, tem noção do quão errado é isso que está fazendo?

- Tenho, mas eu não quero que se envolva com aquele homem. - fito às pétalas de cerejeiras pairando sobre o ar. - Basta que eu me envolva, um pecador é o suficiente.

- Hanzo! Isso não é sobre mim, olhe sua escolha, vai colocar sua vida a merce de duas pessoas que jamais se importaram com nossa existência!

- Mas poderá seguir seus sonhos, poderemos ter uma casa melhor para a criação de nossa irmã e quem sabe alavancar a produção da fazenda de nossos pais adotivos... - este céu negro é semelhante à plenitude obscura que me preenche. - e eu não me importo com o resultado, não contanto que vocês possam viver bem.

- Eu não aceito isso.

- Tudo bem, mas não mudarei de ideia, isso é por todos nós e não por mim.

- Se fizer isso então pode me desconsiderar como irmã... não serei irmã de um homem que definiu seu destino por nada.

- Então sinto que viverei em sua sombra para sempre... desculpa por trazer tal sentimento a você, Yuriko, espero que em algum tempo no futuro você possa perdoar minhas escolhas.

- Não conte com isso, eu jamais conseguirei esquecer... pela segunda vez pisa em todos nós por um futuro incerto que visa, você é uma decepção Hanzo.


Presente (01/12/2020 - outono)


No horizonte límpido a noite surge e pouco a pouco o brilho incandescente do luar em seu ápice banha à terra com a magnífica beleza do astro em seu resplendor cheio.
Estrelas enfeitam cada pequeno quadrante obscuro com seus pequeninos pontos de luz, é como uma das pinturas daquela mulher a quem tive o prazer de conhecer.

O vibrar em meu bolso desperta minha atenção e logo noto mensagem.

"Tenho algo para te contar quando voltar".

Espero que não seja mais um problema grande desta vez, querendo ou não Hanako é um dos poucos elos que ainda me mantém neutro.
O frescor da noite aflige meu rosto e por sua rajada mais fria sou obrigado a deixar a sacada.

Envolta nos lençóis busca o levantar da cama, a mão percorre a testa, pelo visto ainda está mal apesar do repouso de horas. Frente ao olhar perdido permaneço, elevo minha mão tocando sua testa, temperatura normal, menos mal.
Afago sua bochecha e pelo virar de sua face sou interrompido, eu sei que forçar é errado, entretanto, eu preciso revelar que estou do seu lado independente do que desejar.


- Estou bem, não precisa perder tempo se preocupando com minha saúde.

- Murano, apenas pare por um momento, eu quero te ajudar. - deixo o copo e uma pílula em suas mãos. - Vai aliviar a dor de cabeça que está sentindo.

- Obrigada...

- Apenas me deixe te ajudar um pouco.


A porta do quarto se abre e por sua abertura percebo o riso contido e sua pequena estatura comparada a nós, em passos fora de ritmo chega à cama buscando no abraço materno aconchego. Vê-las nesse momento prova o quanto Suyen se tornou importante para ela, tão pouco parece a mulher que não conseguia sequer olhar para a menina que colocou no mundo.


- Assim como nossa filha eu desejo estar aqui para te ajudar a curar tudo que está sentindo.


Entro no abraço sendo acolhido pela pequena, tão nova e ainda assim tão cheia de atitude... não tenho dúvidas, essa é minha filha.


- Vamos jantar. - digo recebendo o olhar singelo, sem mais indiferença. Uma trégua momentâneo pelo jeito.


Seguimos juntos pelas escadarias da casa e no salão de jantar somos recebidos pela mesa mais tradicional possível, minha mãe como sempre buscando meios para impressionar Murano, apesar de não gostar tanto de ser paparicada vejo em seu brilhante olhar o quão grata se sente por fazer parte dessa família... uma pena que seja nessas circunstâncias tão ruins.

Sento-me a mesa tomando a almofada mais distante para que entre nós dois Suyen possa se sentar. Mesmo que agora esteja crescida, ver ela com seus treze anos ainda me remete a imagem de um bebê, seus olhos violetas recaem sobre mim e seu sorriso logo borda os lábios finos semelhantes à mãe.


- Que bom que estão aqui! - minha mãe torna a falar. - Fico feliz em ver essa família unida que construíram.

Observo a face de Murano e seu desconforto é visível, queria poder amenizar tudo isso que sente e descomplicar essas amarras para poder viver melhor está vida.

- Mamãe e papai - sinto seu aperto em minha mão, gosto de estar assim com elas. - sou a filha mais feliz do mundo agora que estão comigo.

- Agora ficaremos juntos, sem mais separações.


O foco triste se perde e para a mesa nossos olhares se vão, o colorido que apenas essa culinária poderia ter no mundo inteiro. A variedade dos frutos-do-mar e quantidade de peixes diferentes a mesa é algo impressionante ainda mais quando penso na dificuldade que teve em preparar.
Admito que sinto um calor percorrer meu peito, não entendo bem, mas imagino ser proveniente do sorriso de Murano. Pela primeira vez desde que chegou estou podendo observar esse sorriso sair sem medo ou preocupação. É um alívio poder ver tal gesto ainda mais agora que sei que Suyen estará ao seu lado, sei que não sou a pessoa que deseja e tão pouco o melhor dos confidentes, entretanto, farei o possível para ver você sorrir assim cada vez mais.

A hora passou e logo todos foram dormir em seus quartos, animadas Fuyuka e Suyen dormiram juntas, parecem até irmãs, se não fosse pelas idades diferentes diria que pensam de maneira semelhante.
Meus pais partiram para seu quarto no segundo andar, estão mais velhos agora, não são mais aquele casal de vinte e dois anos atrás, porém vejo que continuam mantendo em seu olhar o brilho daquela época.

Abro a porta do quarto e seu olhar recai sobre o meu, mesmo que não esboce indiferença ainda dói saber que, no fundo, não sou suficiente para e nunca serei, pois, a pessoa que habita em seu coração ainda existe como uma barreira.

Quando escrevi sobre ela em minha principal obra, empreguei-lhe o papel de protagonista e o apelido de acácia, o mesmo que Naomi havia dado, naquela época todas receberam uma flor... agora que vejo esse olhar entendo o motivo de acácia para Murano. A acácia-amarela carrega em seu significado o amor platônico, e quer goste ou não algo aconteceu naquele tempo que forçou o amadurecer desta ideia em seu ser... assim como acácia representa o platônico, Murano vive com tal sentimento nas profundezas do coração, algo forte que nem mesmo o tempo conseguiu extinguir.


- Desculpa não sabia que ainda se trocava, pensei que teria acabado. - vejo sua camisola quase transparente descer por seu corpo, ela é uma mulher bonita demais para ficar presa à minha pessoa. - Pode ficar com a cama, eu durmo no quarto de hóspedes ou no escritório de meu pai.

- Pare, só durma aqui de uma vez... logo estaremos separados de qualquer forma.


Sigo em direção ao armário pegando uma camisa fresca, retiro a minha e logo percebo seu olhar lançado contra meu peito. O violeta fita a marca na altura de meu peito esquerdo, agora que reparei, nunca lhe contei sobre essa cicatriz que há tantos anos carrego comigo.

- É uma lembrança do passado de vinte e nove anos atrás. - seu olhar recai sobre ela. - Foi a partir dela que eu entendi o que é viver de fato sua vida sem pensar ou limitar-se a questões tão simplistas e básicas.

- Tem a ver com seus pais biológicos?

- Sim, quando eu tinha cinco anos minha irmã e eu estávamos prestes a ser deixados com nossos pais adotivos quando sofremos um acidente na neve deste lugar, era um inverno rigoroso.


No olhar carrega algo diferente do que estou habituado, não um brilho, é mais uma emoção que não consigo definir. Eu vejo o afastamento daquela indiferença, um relapso de paz talvez, porém eu sinto como se ela pudesse sentir que também perdi algo para chegar aqui neste casamento tão fadado ao fracasso.

Por entre o lençol toma seu lugar à cama sem deixar de fitar-me, esse olhar curioso vai me perguntar algo agora que já revelei um pouco sobre mim... não importa, conseguir dizer algo que nunca havia contado talvez seja o melhor dos caminhos para demonstrar que confio nela e em suas escolhas.


- Naquela noite de inverno o carro explodiu, a última visão que tive foram das labaredas bordando o céu. A explosão retirou minha memória, porém eu protegi minha irmã como minha mãe havia pedido.

- É estranho imaginar que sejam irmãos considerando que não se falam mais hoje em dia.

- Ela é contra este casamento, sempre foi, não apenas por mim como por você também... para ela nenhum de nós deveria ter casado sobre essas ordens de nossos pais.

- Entendi... como recuperou - aponta para sua cabeça. - a memória?

- Foi após voltar as aulas no período de verão... no terceiro ano, quando tudo aquilo aconteceu.

- O ano amaldiçoado.

- Todos nós tivemos um demônio para enfrentar naquele ano, e o meu foi descobrir que eu tinha uma família antes do acidente e aquela em que eu estava inserido era apenas adotiva... meses antes descobri sobre minha mãe biológica e com o voltar das aulas eu a encontrei pela última vez ainda em vida.


Passado (14/09/2005 - verão)



As escadarias separam meu ansioso coração daquilo que tanto tive medo, existe algo além do que vivo, uma realidade diferente que perdi durante esses anos de vida. Se não consigo lembrar sobre essas pessoas da foto como posso acreditar que a vida que estou vivendo é real... fito sua presença vestindo preto, pelo raio alaranjado da esfera solar seus cabelos dourados são banhados. É estranho pensar que ela é minha mãe verdadeira, uma mulher que não me lembro, mas em meus sonhos vejo seus borrões.


- Desculpa fazê-lo vir até aqui nesta hora, deveria estar indo para casa e não estar na rua.

- Não é nada. Disse querer se encontrar, que respostas são essas? E sobre o que seria esse revelar do meu passado?

- É meu último desejo, em breve irei partir para um lugar distante e queria te entregar meu último presente como sua mãe até nos encontramos de novo.

- Mãe... é estranho escutar essa palavra quando mal consigo lembrar do seu rosto.

- Entendo, deve ter sido difícil para você encontrar o caminho certo estando sozinho nesse mundo.

- Meus pais... - vejo seu olhar entristecer. - adotivos me ajudaram e Yuriko sempre esteve do meu lado.

- Percebo quando fala sobre eles, não se sinta triste, é normal amar aqueles que te apoiam e confortam... quero que fique com isso - em minha mão deposita uma chave. - ela o levará ao seu último lugar para se lembrar de tudo, lá encontrará as respostas que pediu.

- Uma casa?

- Quando chegar entenderá tudo que desejo dizer e não posso nesse momento, não tenho forças para dizer, na verdade.

- E onde seria esse lugar?

- No caminho para Shirakawa existe uma trilha de árvores, uma estrada pouco usada e agora ela pertence a você, ela será nosso elo para suas memórias.

- Memórias.


Suas costas são a última que possuo dela como na última vez em que esteve diante de meus olhos. Algo me diz que esse será nosso último encontro, é estranho, meu coração palpita como se estivesse sofrendo por alguém... um sentimento que nunca senti por ninguém nessa vida, não até agora.
Com sua partida busco meu caminho para casa e logo à chuva cai apagando o brilho do sol e trazendo consigo a ausência do brilho... e um estranho nublar em meu peito.

Nessa cidade existe uma lenda que envolve o lago sombrio, dizem que todos que o tocam verão a face da tristeza que existe em seus corações, eu nunca acreditei nessa lenda, porém, após eu tocar na água sombria estranhamente minha mãe surgiu e as memórias começaram a surgir como borrões em meus sonhos.

Mal fui capaz de me guiar e quando percebi as águas frias do chuveiro já caiam sobre minha pele marcada por essa cicatrize. Termino meu banho e entro no quarto sendo surpreendido pelo seu olhar afiado de quem sabe como retirar informações quando deseja.
O livro em suas mãos é fechado, entre os dedos prende a foto que recebi dela, uma imagem nossa ainda quando crianças. Eu, Yuriko e nossa mãe aos quatro anos, ela disse que essa foto era o farol de sua motivação para nos encontrar de novo.


- Pode explicar sobre ou vai mentir como das outras vezes em que perguntei? - os fios soltos de seu cabelo pairam sobre os olhos. - Foi ver ela?

- Yuriko, ela veio me ver e apenas isso, passamos dessa fase de fingir que tudo está indo bem quando não está. Poderia ter dito a verdade sobre nós dois.

- Ha quanto tempo?

- Um mês, faz um mês que estou encontrando com nossa mãe em segredo de todos, essa é a resposta que deseja escutar?

- Quero a verdade! - sua voz está exaltada.

- Tudo será resolvido assim que eu abrir a porta que está chave possui.

- Chave? Porta? Hanzo!? Perdeu a noção!

- Eu quero saber mais, sei que não gosta disso, mas entenda meu lado. Uma parte da minha memória sumiu, eu preciso dela, como posso viver se nem ao menos sei quem fui.

- Não precisa dela! Ela nos abandonou!

- E agora voltou, eu tenho o direito de sabe quer goste desta verdade ou não.


Vejo a fúria no olhar e com arremessa contra mim a foto, o papel atinge meu rosto, então essa é a força de suas emoções. Contra meu peito desfere seu tapa, sinto seus golpes, mas, no fundo, eles não possuem peso nenhum além da tristeza.


- Pensa que eles te amam? Hein? - segura a gola de minha camisa, as lágrimas em seus olhos doem em minha alma. - Você acredita que eles vão te amar como nós te amamos?

- Não, eu sei que não vão, porém é o certo a se fazer nesse momento.

- Certo?! Eles abandonaram nos dois!

- Eu vou, preciso descobrir sobre eles para enfim conseguir viver. Pode não parecer, mas eu sempre desejei saber sobre quem são nossos pais verdadeiros.

- Pare de ser idiota!



Seus olhos cheios agora estão cheios, mas não são de vida e sim de tristeza, a vida que sempre carregou agora não é nada além de mera decepção e dor... eu causei isso tudo que agora sente, porém, eu não irei retroceder após chegar tão perto.


- Se for até eles... eu não serei mais sua irmã... esqueça que existo e sequer direcione seu olhar para mim novamente.

- Farei como deseja, mas não quero ver todos passando necessidades extremas por nada.

- Idiota... nasceu cinco minutos mais cedo e pensa que pode conquistar o mundo se sacrificando por uma tola verdade.

- Eu não posso, mas não ficarei parado esperando meu final... desculpa por trazer decepção, mas é o que farei agora.


Quente é o toque de sua palma em minha face, o estalo desperta sua mente que ao ver a marca se vira para a parede incapaz de fitar meus olhos.
No final irá entender essa escolha, eu sei que vai, ela será turbulenta, entretanto será o diferencial para mudar nossas vidas.

Ignoro-a e sigo meu caminho para fora de casa, infelizmente podem pensar que agi de forma imatura e um irresponsável, porém será o pilar para uma evolução mais rápida e eu tenho certeza disso. Abaixo da chuva que cobre o céu pedalo indo de encontro a estrada que liga uma cidade a outra, a cada pedalar tudo parece mais pesado em minha mente.
Mal percebi, mas diante de meus olhos um grande portão se apresenta com seu brasão de kappa. Aqui será o local onde tudo fará sentido, mesmo diante dessa possível relação não posso deixar de pensar em como essa situação toda ocorreu.

Abro o portão tendo visão da fonte ainda em construção, caminho em direção a entrada da casa que tem suas paredes marcadas por vinhas e pequenas flores. Encaixo a chave é abro a porta sendo recebido por um homem alto de sorriso tímido... essa é a pessoa que disse antes, o homem que mais possui sua confiança.


- Faz tempo que não o vejo jovem mestre.

- Me conhece?

- Eu fui o assessor de sua mãe, a pessoa que localizou sua família e agora estou aqui pronto para te mostrar o caminho certo.

- Entendido, a Tomoe-san... - seu olhar também é tomado por tristeza. - minha mãe disse que tem algo que eu preciso ler.

- Sim, - ele aponta para a luz que emana de um dos cômodos. - por aqui.


Ando até a sala e acima de uma mesa encontro caixas e mais caixas cobertas por um fino tecido branco, todos elas são marcadas pelo brasão de uma flor diferente, mas familiar de alguma forma. Recolho o envelope e retiro seu lacre revelando o papel, uma carta, esse perfume também é familiar de algum jeito que não sou capaz de recordar.

" Se estiver lendo isso meu querido Hanzo, eu quero dizer que nunca esqueci de você e de sua irmã, entretanto, eu nunca fui capaz de ser uma mulher independente e forte.
Não vou mentir e dizer que nossa sou uma excelente mãe, de fato não sou, abandonei meus filhos pelos anseios de um homem que os via como empecilhos e segui seus planos mais obscuros sem nem mesmo questionar a lógica por trás da ação. Sou uma péssima influência, entretanto por meio deste papel eu desejo pedir desculpas te contando sobre algumas verdades que certamente não consegue recordar.
Primeiro peço perdão por esta invasão repentina em sua nova vida, sei que isso atrapalha a convivência com seus pais adotivos, mas admito não conseguir aguentar mais saber sobre o acidente que sofreu.

Sutileza nunca foi meu forte nessa vida e talvez seja por isso que enfrento tudo que passo com dificuldade e perseverança, infelizmente minha alcunha de chama dos palcos não demonstra todos os meus lados e nem mesmo minhas falhas como mãe e mulher.
Quero que saiba que fiz tudo o que estava em meu alcance para reduzir o impacto que minha aproximação causaria... também fui atrás de sua irmã, Yuriko cresceu tanto, uma mulher linda e eu espero que ela siga feliz com sua vida mesmo não querendo me ver, espero que ela possa se tornar aquilo que tanto sonha assim como você. PS. Ela realmente é linda e se parece tanto comigo mesmo sendo uma adolescente em transição para mulher, imagino que deva sofrer um pouco em relação a jovens pedindo para levar ela em encontros.

Mesmo após escrever tanto ainda não sei quando irá ler esta carta e se um dia chegará até ela como eu desejo do fundo de meu coração, mas está na hora de explicar tudo como uma adulta que foi mãe por pouco mais de cinco anos ou que tentou pelo menos.

Deixei vocês com a tutela de seu pai devido uma falha no meu corpo, precisei passar muito tempo no hospital, quando voltei, descobri que vocês haviam sidos levados por um de seus empregados, perdi meu chão e logo fui colocada contra a parede sendo impedida de ir atrás de vocês, pois não tinha informações.
Os anos se passaram e graças ao apoio do homem em sua frente consegui descobrir sobre vocês, sobre seus pais adotivos e sobre o acidente que sofreram durante a chegada nessa cidade distante.

Vejo que seus pais adotivos, o casal Tokito foi bom o suficiente para criarem vocês dois como se fossem filhos de verdade. Admiro muito eles, tenho vontade de ir até eles e pedir desculpas pelo ato vergonhoso de deixar ambos à merce deste mundo onde monstros vivem.

Vocês dois são frutos da imaturidade de uma mulher em seus dezesseis anos. Uma jovem sonhadora que amou um homem de vinte anos, eu tola fui envolvida e por ele laçada até acabar sendo mãe tão nova. Meu parto era complicado, meu corpo mal aguentava um e quando percebi que dois seres tão pequenos e indefesos estavam dentro de mim, logo descobri ser uma amante e por ele fui deixada de lado enquanto ouvia de seus lábios as palavras de amor que tanto pregava.

Fui fraca e imatura, abandonei meus filhos por sua vontade e fui mandada para longe por ele... eu era pobre e bem sabe como funciona o mundo, aqueles com mais dinheiro ordenam e eu como pobre garota abaixei a cabeça. Aos vinte foram tirados de mim por seu pai e por sua atitude fui forçada a conhecer a vastidão deste mundo, fiquei famosa por ser uma grande atriz, entretanto nada tinha valor comparado ao peso de não saber onde meus filhos dormiam.
Agora que amadureci um pouco e consegui minha liberdade eu almejo a liberdade de meus filhos, quero poder realizar suas vontades, fantasias e o que mais puder. Não penso que isso compensará, por mais que eu deixe terras, quadros e carros, nada disso terá valor quando não vocês não tiveram aquilo que toda criança merece ter o amor de sua mãe.

Percebo que é fútil, mas deixo essa casa, essa terra e dinheiro com o intuito de ver sua evolução e aprendizado, mal tenho direito, mas peço que busque sempre evolução com tudo isso que estou deixando para você, sua irmã e a família que agora os acolhe. Irei conviver com meus pecados pelo resto desta vida, mas espero de verdade que em algum momento no futuro consiga se lembrar de mim como uma boa pessoa e não esse monstro.
E por favor não se sinta vendido, nada do que faço tem essa intenção. Apenas quero que vivam na melhor condição possível que posso oferecer como uma forma de pedir perdão por demorar tanto em demonstrar minha preocupação com o bem-estar de todos vocês.
Sempre que precisar ligue para o homem em sua frente, Gon fará tudo que estiver em seu alcance para ajudar.

Por fim encerro essa carta pedindo uma última vez seu perdão por não estar sendo uma mulher nem mesmo no momento de explicação do passado. Não quero que sinta pena, mas possuo uma doença por isso necessito me afastar de tudo e assim curar meu corpo.

Se por um acaso desejar encontrar esta frágil e falha mulher estou em Okinawa para dar fim ao início de tudo, espero que logo possamos nos encontrar, agora com sua memória inteira.
Obrigado por escutar cada palavra que escrevi e por ser tão atencioso mesmo que não possua nenhum sentimento por mim.

Até breve Hanzo Hattori"


Agora eu entendo o que aconteceu... minha mãe, eu lembro de tudo agora. A sinto minha força se esvair diante de sua foto, não posso dizer que nutro amor incondicionalmente por ela e toda sua história, mas agora eu sinto um vazio tão grande que parece sem fim... é como estar perdido em um conflito de verdades impossíveis de distinguir.


Presente (01/12/2021 - outono)


- Naquela época eu passei a me envolver com minha verdadeira família, o Hattori vem do meu pai, Hiroshi Hattori.

- Ele é como meu pai, inflexível, às vezes eu consigo te entender.

- Minha mãe, morreu, eu não pude ir até ela em vida e após sua morte eu senti um peso diferente. No final eu acabei caindo nas palavras de meu pai e seguindo seu desejo sem pensar muito.

- Pela primeira vez desde que nos casamos você fala sobre eles... uma pena ter demorado tanto, talvez ainda pudéssemos ser algo além de inimigos íntimos.

- Hoje é uma noite atípica, estranhamente tudo tem me feito falar mais do que o devido, mas não se importe tanto. É apenas algo diferente, nada para se levar a sério.

- Já que estamos nessa noite atípica, tem algo que desejo perguntar, sobre ela.

- Com ela quer dizer quem?

- Naomi, eu ainda não a vi, - seu olhar recai sobre as janelas iluminadas pela lua. - como ela está?

- Diferente, sei que não é a resposta que esperava, porém, é melhor ver com seus próprios olhos. Garanto que será uma boa forma de começar de onde pararam.

- Começar? De onde paramos?

- Eram amigas correto? Será uma forma de recomeçar de onde parou, param de se falar após toda aquela confusão. Depois foi em Tóquio e agora tem uma oportunidade de falar com ela.

- É melhor não.

- Não se sinta pressionada, posso gostar dela, mas sei que não tenho maneiras de conquistar seu coração quando outra pessoa ocupada o espaço que desejo.

- Deixar tudo do jeito que está sempre será a melhor opção para nós duas.

- No final vocês decidem sobre isso, lembrei de algo que pode ser do seu interesse, ela se tornou professora. Talvez isso seja uma boa notícia ou apenas uma consequência da vida.

- No final todos sabem sobre a flor que ela representa, a lírio da aranha, nada que vá de encontro a ela terá um bom final.


Seus olhos vagam pela triste expressão de um luar que tem agora seu brilho usurpado pelas nuvens escuras, no final foi o que escutei sobre vocês duas, nada no mundo além de ambas podem delimitar esse relacionamento estranho que possuem.

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