Capítulo Vinte e Um
Luna Canberight
Fiquei presa em um estado intermitente de inconsciência. Sabia que não estava morta, mas tampouco estava viva.
Pareceu se passar muito tempo antes que eu conseguisse abrir os olhos e mesmo que esses curtos momentos durassem segundos e me deixassem completamente exaurida, eles me valiam tudo, pois neles eu era capaz de ver algumas das pessoas que eu amava.
Nicholas ― ou aquela visão mais velha e mais madura do meu marido ― não saiu do meu lado em nenhum dos vislumbres. Via a boca dele se mexendo como se falasse, as mãos se movendo como se me tocasse, mas então aquilo se tornava demais para o meu corpo que, tão fraco, voltava para a inconsciência e eu perdia tudo.
***
― Luna? ― Uma voz séria e conhecida chamou. ― Me disseram que você já estaria pronta para acordar nesse ponto. Eu não posso mais esperar que você acorde, tenho treino daqui a pouco e não consigo mais cuidar dela sozinho, então, ou você acorda, ou eu te levarei para fora e te deixarei tomar chuva como da outra vez ― declarou. ― Eu, particularmente, sugiro que você acorde imediatamente e nos poupe todo o trabalho.
E foi aquilo. Aquelas palavras despertaram uma lembrança tão forte dento de mim que eu quis sorrir. Então, apesar de todo o cansaço, como em um passe de mágica, eu acordei.
Nicholas me encarou satisfeito. Em pé, ao lado da cama onde eu repousava, com toda àquela altura, ele se curvava como uma sombra sobre mim.
A alegria de finalmente revê-lo me inundou e trouxe lágrimas aos meus olhos. Estiquei os braços, tentando desesperadamente alcançá-lo e em um esforço para sentar-me, ondas de dor me atingiram com força total. Olhei para baixo e notei que minha enorme barriga estava consideravelmente menor.
Ele se aproximou e me acalmou segurando minhas mãos, antes de passar a sua nos meus cabelos, me salvando da dor.
― Você deve permanecer quieta e deitada até a dor passar, querida ― disse suavemente.
― Não ― interrompi às pressas, forçando as palavras através da minha garganta seca. ― Não me chame de querida ― pedi antes de ter um ataque de tosse que tornou a dor pior.
Nicholas pegou a jarra no criado-mudo e me serviu um copo d'agua. Quando eu terminei de beber, ele suspirou e devolvendo o copo ao seu lugar original, sentou-se ao meu lado parecendo destruído. Puxou minha cabeça delicadamente para o seu colo e voltou a acarinhar os meus fios.
― Eu estive tão preocupado com você, esses últimos meses foram infernais ― ele fez uma pausa dolorida olhando para o nada antes de focar aqueles olhos lindos em mim. ― Preciso que me conte, como foi para você lá?
― Acho que foi melhor do que poderia ter sido ― declarei com calma. ― Eles me alimentavam, me vestiam, me deram acompanhamento médico e uma cama para dormir. Poderia ter sido muito pior.
― Você tinha contato com alguém? ― Inquiriu.
― Na maior parte do tempo apenas com o General, mas também com uma médica e vi Sophia algumas vezes ― revelei.
― Eles te machucavam... Te bateram... Te... ― parou por um momento, em pânico, parecendo muito com o antigo Nicholas que eu me lembrava.
― Não... ― parei sabendo que não era verdade. ― Sophia me bateu, mas foram só duas vezes e o bebê não foi afetado ― lembrando-me da grande notícia que tinha para compartilhar, arregalei os olhos ao focar-me nele: ― E a nossa bebê, ela está bem? ― atirei em uma corrida.
― Trazer você até aqui foi muito difícil e não pudermos fazer nada para impedir que... ― ele parecia confuso, sem saber como prosseguir. Respirando fundo, recomeçou: ― Você entrou em trabalho de parto durante a nossa viagem de volta para cá.
Minhas mão começaram a tremer e meus olhos se embaçaram, eu não conseguia colocar em palavras minhas dúvidas, mas tentei de qualquer forma:
― O que isso quer dizer...? Nossa bebê está bem?
― Nossa filha já nasceu, meu amor. Ela está bem ― ofereceu antes que eu pudesse atacá-lo com mais perguntas. ― Ótima, eu diria. Forte e linda como a mãe ― ele sorriu docemente. ― Ela está ficando no meu antigo quarto, para que vocês não perturbassem uma a outra. ― Mas agora que você acordou, quer vê-la? ― Perguntou sem parar de acariciar meus cabelos.
Suspirei triste, sabendo que, por mais que eu quisesse, eu não seria capaz de segurá-la em meus braços.
― Eu adoraria, mas precisaria tocá-la para saber que ela é real e eu não tenho certeza se tenho forças para segurá-la agora sem derrubá-la ― apontei engolindo as lágrimas.
Ele acenou, o cabelo, agora grande, caindo nos olhos.
― Como... ela é? ― Indaguei.
Ele sorriu como um anjo. Meu anjo.
― Eu seria incapaz de descrevê-la, não de acordo com a realidade, eu sou, afinal, um pai coruja ― os olhos dele ficaram claros e me perguntei se eles escondiam lágrimas não derramadas. ― Ela é tão linda. Ela tem cabelo preto e olhos escuros e sorri o tempo todo ― atropelou-se. ― Ela é perfeita. Ela me lembra você.
Eu ri suavemente, ignorando a dor que o movimento me causava:
― Do jeito que você a descreveu, ela não se parece nada comigo.
Ele sorriu parecendo insanamente feliz, como se, depois de muito tempo, a vida dele estivesse completa.
― Ah, mas ela parece! ― Exclamou e parecemos, por um momento, os antigos nós, mas ele suspirou e o encanto se quebrou. ― Eu senti tanto sua falta.
Fiz um pouco de esforço para cima e agarrei o rosto dele entre as minhas mãos, agora mais magras:
― Como ― procurei as palavras ― foi para você esse meu... tempo longe? ― Questionei por fim.
― Horrível ― exalou, encostando a testa na minha. ― Quando eu acordei e notei que você não estava aqui, eu permaneci tranquilo por alguns minutos, pensei que talvez você estivesse no banho ou comendo alguma coisa, mas quando eu desci, estava um pandemônio no pátio. Abigail corria de um lado para o outro, gritando com todos. Tenho certeza de que havia um pequeno foco de incêndio em algum lugar. Havia algumas crianças feridas e todos pareciam em pânico, não sabiam o que tinha causado tudo e ninguém havia notado o seu sumiço ainda. Eu ajudei um garoto sangrando e uma garota que gritava histericamente, enquanto me perguntava como eu não tinha acordado com todo aquele fuzuê.
― Eles nos sedaram ― confirmei ― eu e você. Foi uma pixie, a irmã do general, com o vinho que ela nos presenteou.
Ele acenou antes de continuar:
― No meio do caos, eu encontrei Alicia. Perguntei se ela tinha te visto e começamos a te procurar, mas foi como se eu soubesse que era uma busca inútil ― ele fungou parecendo desolado. ― Quando tudo se acalmou, ficou obvio que apenas você havia desaparecido, tudo aquilo tinha sido somente uma distração ― ele começou a embolar as palavras e por um momento pareceu que ele ia começar a chorar, mas ele respirou fundo, se recompôs e continuou: ― Então, Abigail veio e disse que só havia uma explicação para o seu sumiço, você tinha sido sequestrada. Fizemos de tudo para te rastrear, mas nada funcionava e então seu pai... surtou.
― Oh, não! ― exclamei, as mãos subindo para cobrir a boca.
― Ele estava se segurando, tentando se manter na linha, mas conforme os dias passaram sem nenhum sinal seu, ele simplesmente se perdeu. Ele se transformou, aterrorizou todo mundo, precisaram sedá-lo e trancá-lo. Depois de um tempo, ele se acalmou o suficiente para voltar ao normal e pudemos soltá-lo, mas era como se o que quer que tivesse se acendido dentro dele quando te conheceu, se apagou.
As lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto silenciosamente e ele voltou a acariciar meus cabelos.
― Ezra passou meses trancafiado com outros feiticeiros tentando te encontrar. Alicia te procurava constantemente com Yugblo e Josephine se recusou a casar sem você aqui, por mais deselegante que fosse ter os bebês sem estar propriamente casada, mas não havia como te achar, era como se você não estivesse em nenhum lugar neste mundo. Em um dia como qualquer outro tudo mudou, Ezra surgiu gritando de algum lugar, Yugblo se agitou, Adam apareceu transformado, mas ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo e Ezra parecia que sairia da própria pele a qualquer momento, exalava animação. Por fim, depois de causar todo esse caos, ele finalmente explicou. Ele estava fuçando nas suas coisas, como sempre fazia, tentando achar um fragmento qualquer de informação e encontrou o livro de feitiços, aquele que você pegou no porão de Sophia e nunca teve tempo de me contar. Ele já tinha encontrado a chave do reduto antes, mas nunca houve necessidade de ir pessoalmente, então ele falou com Josephine que contou sobre a incursão de vocês até lá e depois ela o guiou e ele passou a noite toda enfurnada naquele lugar até achar o feitiço Inter Mundos.
― Entre Mundos ― sussurrei e ele acenou.
― Não conseguíamos te encontrar porque você não estava nesse mundo, a partir daí ele buscou um feitiço que fosse capaz de rastrear alguém nessa situação. Ele precisava de um monte de itens absurdos e a soma dele beirava magia proibida ― ele sorriu com seus dentes retos e perolados. ― Sorte nossa, que esse lugar é cheio de criaturas estranhas. Enfim ele conseguiu e te vimos, te assistimos naquela cela ― ele ficou sério de repente. ― Nós te vimos enfrentar ele, ameaçá-lo com aquela faca.
Não precisava ser genial para perceber que ele se referia a Alexy.
― Foi a única vez que me rebelei e não deu muito certo ― declarei sorrindo.
― Não precisou dar certo, meu amor ― garantiu. ― Nos deu tempo suficiente para abrir o portal ― ele respirou fundo antes de rir. ― Bem, parece que eu sou um péssimo contador de histórias, pois esqueci uma parte crucial. A Abigail não confiava em nenhum de nós o bastante para uma missão tão importante, então ela convocou ajuda especial.
― Quem? ― Franzi a testa.
― A Verhallow é estritamente ligada a Seita, quem ajudou a te salvar são dois dos candidatos da corrida Parlamentar ― contou.
― Pelo menos isso explica por que eles não parecem preocupados com o Picote ― declarei tentando me manter neutra. A Verhallow era algo que nenhum de nós pensava muito. Ela estava lá e nos mantinha seguros e alimentados. Depois de todos os horrores de antes, era compreensível que apenas aceitássemos toda aquela bondade.
Nicholas riu e beijou meu nariz delicadamente:
― Ao receberem a solicitação de ajuda que Abigail enviou, eles nos mandaram dois dos estudantes: Avery e Cameron. Eles foram essenciais no seu resgate. Devo dizer que eles estão muito animados para te conhecer de maneira ― ele pigarreou ― apropriada.
Concordei, um pouco desinteressada:
― Gostaria de conhecê-los para poder agradecer, mas sinceramente prefiro ver nossa filha primeiro. Você já deu um nome a ela? ― Inquiri.
Ele balançou a cabeça:
― Não ― ele segurou meu rosto entre as mãos enormes. ― Eu queria que fizéssemos isso juntos.
Sorri para ele, sentindo uma calidez me inundar. Meu coração parecia leve como se tivesse asas.
― Venha, vou chamar Alice para te ajudar a tomar banho e se arrumar e depois de comer, eu te levo para ver nossa menininha.
Ela era linda. Minha filha.
Era tão parecida com Nicholas que meu coração doía. Seus cabelos eram escuros e escassos e eu estava apaixonada. Seus olhos eram brilhantes e ela havia saído de mim. Sua boca era pequena e seu queixo igual ao de meu pai. Eu não conseguia imaginar um mundo onde eu não a tinha.
Eu estava sentada em uma poltrona, pois não era forte o suficiente para sustentar minhas pernas. Minha filha jazia em meus braços, onde havia acabado de dormir. Como eu não havia sido capaz de alimentá-la até então, ela havia sido habituada a uma espécie de leite sintético fortificado, com o qual a estavam nutrindo desde que nasceu. De qualquer forma, por causa da má alimentação ou pelo pouco tempo de gestação, eu não tinha leite.
Nicholas estava ao lado do berço nos encarando:
― O que você acha?
Desviei os olhos de nossa filha e devolvi seu olhar:
― De que?
Ele se aproximou lentamente e se ajoelhou do lado da poltrona:
― Dela. De mim. De tudo ― deu de ombros como se aquilo não importasse, mas dava para ver pela rigidez de seu pescoço que não era bem assim. Todo aquele tempo o havia mudado, assim como havia feito comigo, era obvio pela sua aparência, pelos seus ombros mais largos, seus braços mais fortes, seu cabelo mais longo, mas ele também havia mudado por dentro. Eu só podia desejar, que não houvesse sido uma mudança grande o suficiente para eu deixar de conhecê-lo.
― Eu fiquei presa naquele lugar por dias, mas para vocês foram meses, quem tem que me dizer como se sente é você. Eu nem sequer sei que dia é hoje.
― Hoje é doze de maio, nossa filha nasceu dia sete ― respondeu com os olhos brilhando.
― É quase verão ― sussurrei atordoada. Eu tecnicamente havia passado meu aniversário em cativeiro e tinha oficialmente dezoito anos agora.
― Quando você se foi, veio o inverno, um inverno realmente frio ― contemplou. ― Não importa ― chacoalhou a cabeça, os cabelos ricocheteando, como se para afastar um mal pensamento. Pegou meus dedos com delicadeza, suas mãos, antes macias, agora ásperas e nodosas. ― Eu te fiz um presente, pelo seu aniversário ― ele sorriu. ― É uma coisa meio egoísta, mas eu senti que te devia algo assim ― disse enquanto tirava o presente do bolso. Então, ele me estendeu o anel e eu perdi o fôlego. ― Eu não te dei um anel de noivado, muito menos um de casamento e mesmo que uma aliança não seja tradição da Seita, eu queria que você tivesse algo puramente meu.
O anel era prateado e grosso, mas não era áspero. Ele era intricado e retorcido e era lindo. Na parte de cima, havia uma pequena cúpula e dentro, uma tempestade elétrica.
Encarei boquiaberta a pequena chuva de raios e o olhei sem entender. Ele sorriu ironicamente.
― Você não foi a única que não teve tempo de contar algo antes de ir ― declarou antes de puxar minha mão e colocar a aliança no dedo anelar da mão esquerda, que os antigos acreditavam ter ligação direta com o coração. Meus olhos se encheram de lágrimas e soltando minha mão, ele as secou. ― Foi muito mais fácil forjar o anel do que colocar os raios nele, "difícil" não chega nem perto de como foi conseguir controlá-los o suficiente para colocá-los aí dentro, mas Ezra me ajudou e eu não tinha nada além de tempo livre para treinar ― suspirou.
― Eu tive muito tempo para pensar naquela cela ― toquei o cabelo ralo da nossa bebê sentindo seu delicioso aroma. ― E eu cheguei a uma conclusão ― nossa bebê abriu os olhos e me deu um sorriso banguela como se já me conhecesse. ― Eu achei que ia morrer sem te ver novamente e a perspectiva de ter nossa filha tirada de mim, ― embarguei, as lágrimas escorrendo livremente pelo meu rosto agora ― de viver em um mundo onde eu nunca mais poderia tê-los ― solucei. ― Eu quis morrer, Nicholas, eu não via motivos para continuar a respirar. Então agora que eu os tenho comigo, só posso pensar em uma única coisa, eu te amo, Nicholas, amo você e a nossa pequena Hope.
Ele chorava também.
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E ai? Gostaram de rever a Luna depois de tanto tempo? O próximo é narrado por ela tambem então vai dar bem para matar a saudade.
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