Capítulo Único
As irmãs Azren eram amaldiçoadas. Condenadas a conviverem com a habilidade de se comunicar com os mortos. May lidava melhor com isso, era assertiva, durona, já Meg era um poço de medo, uma rata assustada como a irmã mais velha gostava de dizer. Elas eram as únicas mediadoras de todo Complexo e duas de meia dúzia que existiam no resto do mundo, tendo ouvido durante toda a vida sobre quão gloriosa era sua raridade, como se de alguma forma ser incomum não fosse um inferno em suas vidas e sim algo para ser comemorado.
Meg sempre ansiou a vitória no Guide, mas sendo do grupo cem as chances não estavam ao seu favor. May não estava muito melhor, no grupo setenta e três as chances de conquista pareciam bastante distantes. Mas Meg ganhou e pode enfim pedir um pouco de paz para as duas.
Entretanto, conforme as duas aterrizaram de forma bastante dolorosa sobre o chão musgoso de uma floresta desconhecida, elas não tinham ideia de que talvez essa paz viesse de uma forma diferente do que esperavam.
― Onde diabos nós estamos? ― exigiu May se levantando e tentando se livrar da sensação gosmenta.
― Eu não faço a menor ideia ― respondeu a mais nova baixinho.
― Que templo era esse que você tinha em mente, Meg? Por acaso você decidiu se juntar aos feéricos?
― Você sabe que eu nunca faria isso ― se defendeu, magoada. ― Eu só queria um lugar seguro onde pudéssemos meditar.
― Lugares seguros não existem, Megara, você já deveria saber disso.
Ambas perceberam, quase no mesmo instante, o pequeno barco de madeira que se encontrava na margem do rio próximo. Meg se aproximou involuntariamente mesmo que não conseguisse ver mais adiante do rio por causa da neblina.
― O que você pensa que está fazendo? ― demandou sua irmã puxando seu braço.
― Não sei, mas sinto que talvez devamos tomá-lo.
― Você está completamente louca ― retrucou May enquanto entrava no bote.
As duas se revezaram para remar sabendo que o único caminho possível era em frente. May sentiu um arrepio na espinha e Meg sentiu um suor frio começar a escorrer pela testa. Um sentimento que demonstrava, mais do que seus olhos viam, que estavam cercadas de espíritos.
As irmãs olharam ao redor da floresta em sincronia, mas pela primeira vez em suas vidas atormentadas, não viram nada.
― Onde eles estão? Por que não aparecem?
― Eu não sei ― replicou a outra. E de alguma forma o não saber conseguia ser pior do que encarar os olhos vazios e tristes.
Por causa da nevoa densa, só perceberam que haviam chegado em terra firme quando o barco bateu com violência contra o banco de solo da margem.
― Acho que é isso ― apontou May. ― Acho que esse é o seu templo seguro.
A voz irônica de May refletia bem o que o lugar era. Sua estrutura frágil, suas janelas estouradas e cercado por mato alto. Aquilo era como a representação viva de como elas se sentiam ao serem cercadas pelos mortos.
Ao pensarem nisso, a sensação de estarem sendo observadas voltou como uma vingança. Ainda assim, as duas seguiram na direção do templo abandonado como se estivessem compelidas e no momento em que entraram, a porta bateu as prendendo ali.
May correu em sua direção, tentando abri-la com violência, sem sucesso:
― Veja no que você nos meteu com sua tola procura por paz! ― exclamou.
E naquele momento Meg não aguentou mais segurar:
― Cala a boca! Por um segundo, cala essa boca, May!
E fosse choque por ver a irmã pela primeira vez brava ou se por perceber que passou dos limites, a mais velha se calou.
― Minhas filhas, ― ouviram no silencio chocado que as envolvia ― sei que vocês sempre acharam que eu as abandonei por causa da peculiaridade do seu dom, mas eu nunca daria um fardo dessa magnitude para alguém que eu não achasse capaz de carregar.
― É fácil dizer isso quando não é você que é cercado por mortos em todo maldito lugar que vai ― retrucou May.
― Pretencioso da sua parte essa afirmação, May Arzen, quando eu tenho quase a mesma idade que esse planeta.
― May, cale a boca! ― repetiu a mais nova com um sussurro tremulo.
― Oh, Meg ― o deus quase suspirou ― sempre a recolhida das duas.
O pouco de autoestima que existia dentro de Meg desmoronou como um castelo de cartas. Ser chamada de "recolhida" por um deus era tudo, menos um elogio.
― Por que nos mandou para cá? ― encontrou forças para questionar.
― Porque aqui está a paz que vocês tanto buscavam encontrar. Esse lugar foi deixado assim ainda no mundo antigo, mantido quase completamente intocado para quando esse momento chegasse. Esse ― destacou ele ― é o meu presente para vocês.
Conforme a presença da divindade sumiu e elas voltaram a estar sozinhas junto de centenas de fantasmas, da mesma forma que sabiam que eram irmãs, elas souberam o que deveriam fazer.
Sentaram-se no chão sujo e empoeirado de linóleo, quase como se estivessem em um transe e juntaram as mãos. Suas mentes cheias das almas perdidas, pela primeira vez pensando no sofrimento deles e não no próprio. Suas extremidades esquentaram e as mãos unidas avermelharam e como um peso saindo de seus ombros, elas os libertaram.
As irmãs se levantaram juntas, em um silencio confortável pela primeira vez desde o nascimento de Meg, pois não haviam palavras para serem ditas.
May se sentia calma, despida do fervor que sempre a tinha consumido, já a mais nova se sentia forte, possuidora de uma voz que ela mesma nunca tinha sido capaz de ouvir.
Elas saíram do templo abandonado e seguiram para o barco deixado na margem. Elas olharam para trás uma última vez, notando que a construção já não parecia tão destruída quanto anteriormente.
Ao entrarem na pequena embarcação, elas os viram e entenderam o que Crown havia querido dizer. Eles as olhavam, agradecidos e cheios de paz e elas se sentiam assim também. Então começaram a navegar pelo rio, de volta ao lugar onde haviam aterrissado para que pudessem voltar para casa, conforme as almas ao seu redor começavam a ascender, enchendo o céu azul, não mais nublado, de estrelas.
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