Capitulo Vinte e Sete: Abnegação, Promessa Rompida
Mellanie
Como esse bairro da Grande Capital é pesqueiro os portões do domo ficam agora constantemente abertos e não podem ser fechados, como estão nos caçando as saídas estão sempre muito vigiadas, então conseguimos sair dele, cada vez que é necessário conseguimos encontrar um jeito de fazer isso, hoje consigo me esconder entre as mercadorias que serão carreadas em um barco pesqueiro e saio do domo, subo novamente a colina em direção ao farol para encontrar-me com meu pai, entretanto novamente ele não aparece.
Hoje o Sam não me acompanhou, no lugar disso ficou na cidade para conseguir algo para nós comermos. Nesses dias juntos eu percebi que o Sam não veio à capital apenas para tentar uma vida melhor como quase todos que perderam suas vidas na ponte, ele tem um objetivo muito forte, mas acho que está se prendendo a mim, noto que principalmente comigo ferida ele limita-se em tudo e adia seu objetivo para não me deixar.
A cada dia fico mais preocupada com meu pai e minhas irmãs, já se passaram quase duas semanas desde que eu e o Sam conseguimos chegar a Grande Capital e vivemos escondidos no píer.
Outras três vezes os soldados fizeram batidas pela cidade, eles sabem que quem a maioria dos que procuram está nos arredores desse bairro, distribuíram pela cidade uma lista com dezessete nomes e fotos, com o meu em destaque, estranho por não ter o Sam entre todos que conseguiram, mas ele me disse que não devem saber que ele estava entre nós, afinal Altair perdeu totalmente o controle minucioso que sempre tem sobre todos nós e a cada dia que passamos juntos mais confio nele.
Altair conseguiu capturar onze pessoas que atravessaram o rio naquele dia e mais quatro pessoas que os ajudaram ou os esconderam, todos foram executados por pelotões de fuzilamento no centro do bairro da capital em que foram encontrados ou na ponte para servirem de exemplo a todos que desejarem fazer o mesmo.
Fico triste por saber que tantas pessoas estão sendo mortas por tentar realizar um sonho, e apenas uma coisa me deixa um pouco mais aliviada que é saber que a mulher que nos ajudou continua segura, não fora descoberta sua "traição" em nos dar abrigo, mesmo nós sendo foragidos. Ela já sofrera demais perdendo a filha e não aguentaria saber que morreu por que nos ajudou, por que salvou minha vida.
Quando o sol começa a se por no mar desisto de esperar o meu pai por hoje, pra eu poder andar pela cidade livremente coloco a blusa com capuz que o Sam conseguiu para eu esconder meus cabelos dos perigosos olhares curiosos e então sigo a trilha de volta para a cidade.
Ao chegar vejo as pessoas se aglomeradas em uma praça no centro, provavelmente mais uma execução pública, sei que não devia, mas não consigo me conter e aproximo-me escondida entre as pessoas que assistem, vejo a praça de execução isolada por uma cerca farpada, nela muitos soldados batem e torturam um homem, não consigo ver direito a cena por causa do número de pessoas entre mim e a cerca.
Nunca vi torturarem os prisioneiros publicamente, eles são trazidos para a praça de execução pública apenas para serem executados. Aproximo-me mais da cerca e meu coração palpita subitamente pulsando mais forte ao eu ver um letreiro num telão.
"Se entregue Mellanie Silence ou ele sofrerá até morrer."
Com o peito comprimido já com a certeza de meu maior medo presto mais atenção ao homem agora caído levando vigorosos chutes na barriga e confirmo que ele é meu pai.
– Pai... – sussurro, mas minha vontade mesmo é gritar seu nome, é correr até ele. – Pai! – ignoro as consequências disso e repito seu nome, agora é audível, o próximo será um grito carregado por todos os sentimentos que há dentro de mim, dou o primeiro passo para correr até a cerca, mas sinto alguém segurar meu pulso.
– Não faça isso. – olho para o dono da voz e vejo o Sam postado à minha frente segurando meu pulso com firmeza e carinho.
Meus olhos marejados se tornam lágrimas apressadas em deixarem meu corpo e escorrerem por meu rosto, o abraço muito forte e choro toda a agonia que se forma em meu peito.
Eles o prendem atado em pé como cristo na cruz e ficam alguns soldados o vigiando, nós ficamos mais algum tempo, no entanto as pessoas perdem o interesse e começam a se dispersar, então o Sam me convence a deixarmos o local para não ficarmos tão expostos, reluto a aceitar deixá-lo, mas o faço.
Nós voltamos para o galpão e eu me isolo num canto, sentada rente à parede e abraçada aos joelhos como eu fazia quando era criança e estava triste, consigo apenas pensar em meu pai e em minhas irmãs, penso se ele chegou a sair da ponte, se ele recebeu os cuidados necessários devido ao tiro que levou, ou se ele ficou livre aquela noite, encontrou minhas irmãs e eles foram pegos ao tentarem atravessar a ponte por que Altair sabia que eles são meus parentes e se esse é o caso onde elas estão.
Mais tarde o Sam me entrega um prato de sopa pronta e gelada e isso me lembra do último dia em que passei com minha família, que a vi unida, agora duvido se conseguirei fazer com que nós fiquemos juntos novamente, eu pego a prato que ele estende para mim, mas sem fome alguma deixo ao meu lado sem comer nem uma colherada.
O Sam por vezes tenta me animar e puxar conversa comigo, mas não consigo sair de meu casulo de medo, dor e preocupação, varias vezes penso em me entregar para meu pai ser liberto, qual é a garantia de que depois dele não será a vez das minhas irmãs serem torturadas? Não posso o deixar sofrendo por mim, não vou deixar minhas irmãs sentirem dor no meu lugar, mas também sei que eu me entregar não soluciona nada, provavelmente eu conseguiria no máximo uma morte mais rápida para aqueles que amo.
– Isso não resolveria. – diz Sam com um semblante tão pesaroso quanto o meu como se sofresse por minha dor, ele sabe o que está passando em minha cabeça. – No lugar de se sacrificar viva por ele.
– Eu sei... – digo com sinceridade, mas são apenas palavras de minha razão que meu coração não consegue ouvir.
– Se eu estivesse no seu lugar e fosse lá seria apenas para cuspir na cara de meu pai, então não posso dizer que te compreendo ou saber o que o seu pai diria, mas por tudo que você já me disse sobre ele eu sei que ele prefere morrer a ver você se entregar.
O Sam me faz companhia até altas horas da noite, ele não fala mais nada. Não desejo dormir, eu não sinto fome nem sono, apenas consigo pensar em meu pai e chorar, o Sam pega no sono no meio da madrugada e o galpão se torna mais solitário.
Quando amanhece passo toda a tarde esgueirada numa parede de um beco observando meu pai ainda dependurado, hoje me aproximo menos, não tem pessoas o suficiente para me esconder dos soldados, as pessoas já perderam o interesse em meu pai e seria óbvio demais eu ficar parada em frente da praça, principalmente por meus cabelos brancos, mesmo os escondendo logo seria descoberta.
O sol hoje está forte e o faz sofrer mais, sem comer ou beber nada há um dia ele está desidratado e completamente exaurido, ele permanece consciente, no entanto não se move, parece já estar morto, mas ainda respira, sei que não suportará por muito tempo.
O Sam permanece todo o tempo comigo, não sei se para me dá seu apoio como um ombro amigo para eu chorar ou se ele apenas quer garantir que eu não tente nada para libertá-lo das mãos daqueles monstros.
Passo mais uma noite com as dúvidas e dores que não me abandonam até altas horas da noite eu decidir o que farei, não posso deixar meu pai sofrendo e viver com isso, mesmo que exista um por cento de chance de eu salvar sua vida vale apena eu arriscar.
Olho para o Sam, ele está dormindo tranquilamente envolto em um cobertor, levanto decidida e saio antes que ele acorde, sei que ele tentaria me impedir de fazer o que estou pensando e provavelmente conseguiria.
Vou para a praça de execução no centro da cidade, hoje estão novamente fazendo uma batida meticulosa pela cidade, Altair deseja capturar todos que conseguiram atravessar a ponte, mas é óbvio que tem um interesse especial em mim, talvez se me tiverem em suas mãos as coisas voltem um pouco ao normal para todos, os portões da cidade se abram novamente, parem as batidas durante as madrugadas e as pessoas que conseguiram chegar e ainda não foram capturadas possam aproveitar suas novas vidas aqui na capital.
Quatro soldados vigiam o meu pai então mesmo desejando muito eu não me aproximo abertamente, volto para o beco, onde eu posso observá-lo sem ser notada. O vejo uma última vez, agora ele está mais disposto devido à noite estar fresca depois de um dia muito quente, ele olha para mim e acho que me reconhece.
Agora fico pouco tempo e ao virar-me para sair vejo o Sam postado no meu caminho, seu rosto parcialmente iluminado pela luz do posto da rua, seu olhar transmite raiva, mas sua voz é calma e compreensiva.
– Sabia que te encontraria aqui... O que você estava pensando em fazer?
– Eu não sou fria o suficiente para ficar de braços cruzados enquanto fazem o que querem com a minha família.
– O altruísmo é uma benção, mas também uma maldição, eu sei que você sofrerá muito nas mãos deles e não quero ver isso. Adianta de alguma coisa eu pedir para você agora não ser abnegada? Ser egoísta e pensar apenas no seu próprio bem?
– Eu preciso fazer isso... – é tudo que digo.
– Se não posso te impedir então me deixe ajudá-la. – pede ele e lembro tudo que ele fez por mim, sou muito grata a tudo, mas assim ele se sentirá livre para fazer o que veio fazer na capital e não pode por se sentir preso a mim.
– Certo, fique aqui e garanta a segurança do meu pai.
– E Você?
– Seja um pouco egoísta e pense em si mesmo, eu ficarei bem.
Por uma última vez o vejo sorri, pergunto-me se ele percebeu que para mim isso é uma despedida.
– Nunca se esqueça de mim. – pede ele quando nos encontramos, passo por ele que se aproxima de meu pai e então corro para longe.
Logo estou em frente ao Congresso Supremo, que é o prédio onde o líder supremo Walter Thistell se esconde enquanto controla Altair com severidade e onde se reúne a Congregação Ministerial quando não estão em ΩMEGA. Dessa vez eu irei direto a pessoa por trás de tudo isso.
Não tenho mais por que me esconder então tiro o capuz deixando meus cabelos completamente livres e agora lentamente me aproximo do portão principal que é guardado por soldados demais, pego a faca e a coloco em meu pescoço, muito próximo da pele e a centímetros da jugular. Três soldados se aproximam de mim, um deles manda que eu largue a faca e me entregue.
– Quero ver Walter Thistell agora! – digo em tom de ordem.
Eles apontam as armas para mim agora me vendo como uma ameaça por resistir às ordens, o soldado repete, mas agora mais alto e violento, eles parecem me ignorar, entretanto sei que já devem estar cuidando de avisar Thistell para ver como procederão.
Leva poucos minutos até Thistell surgir de dentro do Capitólio com seus guarda costas, ele se aproxima e para ao lado da linha formada por seus soldados.
Um odioso sorriso de satisfação surge em seu rosto, o amaldiçoo por tudo que ele me fez.
– Estava me perguntando quanto tempo levaria para você se entregar. Tragam-na!
– Não tão rápido... Tenho duas condições.
– Ou então? – pergunta ele com a voz desafiadora.
– Eu me mato. – aperto a faca contra o pescoço e um filete de sangue escorre até meu peito. – Acho que eu não tenho serventia para você estando morta, certo?
Arrisco sem ter nenhuma garantia de que funcionará, mas ele hesita.
– Tudo bem, o que você deseja?
– Liberte meu pai.
– Só isso?
– Agora! Vamos por parte, entre em contato com alguém na praça de execução e mande libertá-lo.
Espero ele fazer isso, Thistell demora, acho que medindo as opções que tem em mãos, então ele pega um o Lide de um soldado e faz o que mandei, está funcionando, ele também manda que os soldados me cerquem para eu não fugir depois dele ser liberto.
– Lá há alguém esperando por ele, mande que o deixem passar e leve meu pai sem serem seguidos, também quero ouvir você dando a ordem e falar com ele para saber que cumpriu com o combinado.
Ele coloca no viva-voz e faz tudo exatamente como exigi.
– Você está aí pai? Está livre. – Pergunto com uma mistura de preocupação com eles e feliz por poder falar com meu pai depois de tanto tempo.
– Ele está bem Mellanie. – me responde Sam, sei que ele o ajudará. Fico muito feliz e aliviada por eles estarem bem, o Sam tenta dizer mais alguma coisa, mas Thistell desliga o Lide antes dele começar a falar, percebo que o semblante de Thistell muda repentinamente, se torna sério quando o Sam começa responde, acho que é por meu pai ter sido livre, mas não acredito que isso seja motivo suficiente para isso.
– Apenas isso?
Espero algum tempo até considerar que eles estão longe o suficiente para não serem seguidos e estarem seguros, sei que o Sam não deixaria que o seguissem. Agora eles vão ficar bem.
– Onde estão minhas irmãs? – pergunto quando Thistell começa a mostrar impaciência.
– Irmãs... – repete ele aparentemente sem saber do que estou falando, mas não sei se está fingindo, não o conheço, mas sei que sendo quem é não posso confiar nele.
– É isso mesmo... Também quero minhas irmãs livres.
– Ahh... Você fala das filhas do Dr. Silence... Quanto a isso eu não posso fazer nada, não sei do paradeiro delas desde que a reavemos dez aos atrás.
Presto muita atenção nele e em suas palavras e deduzo que ele parece está sendo sincero, será mesmo que ele não está mentindo, sei que não posso confiar nele, mas acho que realmente meu pai não chegou a encontrá-las, ele deve ter sido pego na ponte mesmo para agora ser usado como moeda de troca.
– Isso é muito fácil de saber, devem ter se alistado e morrido na guerra ou desertado e sido executadas como criminosas.
– Como e quando capturaram meu pai?
Ele começa a falar sem relutar, parece-me que ele não liga em me dar as informações que quero, elas não afetam seus interesses e parece fazer qualquer coisa para me ter em suas mãos novamente.
– Ele foi encontrado quase morto na ponte no dia seguinte que vocês tentaram atravessar, durante esse tempo esteve preso.
Minhas irmãs devem estar bem e um pai está seguro com o Sam, hesito por um tempo pensando em tudo que me fizeram enquanto eu estava presa num laboratório, sei que se me pegarem novamente eu voltarei a ser uma cobaia e provavelmente pelo resto de minha vida.
Então meus olhos novamente se enchem de lágrimas, os soldados avançam para me impedir de fazer o que planejo, mas estão longe demais, eu enfio a lâmina da faca em minha garganta e faço um grande corte, eu caio e meu sangue jorra de mim muito rapidamente, uma quantidade maior do que eu imaginaria.
Ninguém toca em mim com medo de piorar a hemorragia, Thistell estava enganado, ele pensou que acima de tudo eu queria viver, mas acima de tudo eu quero ser livre e assim me liberto de todas as correntes que me prendiam de uma vez e para todo o sempre. Fecho meus olhos como quando fui dada como morte, no entanto agora será eternamente, permaneço consciente por mais algum tempo esperando a morte me abraçar.
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