Capítulo Quinze: Sentimentos, Caçada Iminente

Marshall

Poucos minutos após Marryweather sair, Whithelly entra no quarto e se aproxima de mim com uma expressão travessa. Ela está com "O Anarquista", o livro que papai nos deu sem nossa mãe saber, ele o lia escondido todas as noites antes de nós dormimos. Como não tinhamos outros, chegamos a lê-lo quatorze vezes, mamãe sempre nos presenteava com livros políticos, mas, como toda criança, nós só queriamos saber de ficções, mesmo agora sabendo que esse livro não era tão ficcional assim, já que do mesmo modo era politica, apenas de outro ponto de vista. Tudo me traz lembranças da Trice, sinto saudades dela, queria poder têla ao meu lado.

- Oi, Yanako!

- Oi, mas meu nome é Marshall.

- Então Yanako é seu sobrenome? - pergunta ela após um acesso de tosse.

- É... - minto para não ter que explicar.

- O meu é Whithelly.

- A sua irmã deve ter te mandado ficar longe de mim.

- A Marry não está aqui.

- Vocês são bem parecidas.

Não nos falamos por um bom tempo, o quarto fica tão quieto que os únicos sons são o de nossa respiração, e os meus gemidos de dor quando me movo.

- Whithelly, você sabe onde ela deixou as chaves?

- Ela as levou. Ela comenta depois de algum tempo em silêncio

- Ela tem medo de você, acha que vai os entregar na primeira oportunidade, mas não quer realmente te matar, eu acho que ela gostou de você, mas não quer demonstrar isso.

- Isso deve ser bom, posso viver por mais tempo - brinco, ao rir, eu sinto meu peito doer.

- Sei que você não nos denunciaria.

- Por que acha isso?

- Seus olhos... - Ela hesita. - Não são como os dos homens que levaram a mamãe, você não é como eles, sei que você é bom.

- Que pena que a Marryweather não pense assim.

Ficamos calados por mais alguns minutos, então novamente a Whithelly quebra o silêncio: - Dói? - diz ela apontando para meu ferimento no peito, o projétil que quase me matou.

- Às vezes - minto. Dói constantemente, mas ela não precisa ficar sabendo disso.

- A Marry cuidou de você, eu disse que você morreria, mas ela te manteve vivo e depois de muita febre e quatro dias você acordou.

- Nossa! Não sabia que tinha dormido tanto.

- Ela está arrependida de ter ferido você.

- Sei... - Ela não percebe meu sarcasmo.

- Não se preocupe, a Marry não costuma matar ninguém, a não ser que ela esteja com muita raiva.

Vejo em minha mente Marryweather me encarando com seus olhos sedentos por sangue.

- Esse é o problema, ela odeia soldados.

Reparo que a garotinha ficou a todo o momento com as mãos nas costas.

- O que você está escondendo? - Ela não tenta disfarçar, assim como a maioria das crianças o fazem, simplesmente estende o braço em minha direção. Um pouco abaixo de seu pulso está o bracelete militar que roubei, um aparelho com cinco botões e um transmissor holográfico, o Lide!

- Você não devia ter mexido nisso!

- Desculpe, eu fiquei curiosa.

- Vem aqui. - Ela se aproxima devagar como se estivesse com medo de eu repreendê-la.

Tento tirá-lo, está bem preso e só tenho um braço livre para usar, que logo começa a doer e ficar pesado como se eu estivesse segurando pesos, teria que ligá-lo para ele se soltar de seu pulso, é a única maneira que conheço, desisto sem nenhum sucesso.

- Para que serve isso?

- Tem muitas utilidades como, por exemplo, se comunicar, ter acesso à internet e bancos de dados, receber ordens de missões...

- Eu... Posso ter o meu?

- Só se entrar para o exército e duvido que Marryweather vá deixar. - Sua pergunta me faz pensar como será o futuro da Whithelly, sei que ela já está perto dos doze anos, logo terá que se alistar ou então se tornará uma desertora assim como Marryweather, essa não é uma boa vida, mas também é triste pensar em uma garota tão doce se tornando um soldado frio, Marryweather jamais permitiria isso.

Assim que digo seu nome, ouço passos no corredor e ela surge na porta, sua mão está enfaixada e ela está parecendo uma motoqueira com suas roupas de couro pretas.

- Whithelly, eu mandei você ficar longe dele! - A garotinha apenas sorri. - O que é isso no seu braço?

- Foi um acidente! - diz ela como se não tivesse culpa alguma.

Ela me encara com raiva, como se eu fosse o culpado por Whithelly ter colocado o Lide, talvez ela ache que eu mesmo o coloquei na garota.

- Dá para rastrear isso? - pergunta Marryweather se dirigindo a mim com raiva.

- Enquanto estiver desativado, não, porém se apertar qualquer botão, em menos de meia hora haverá pelotões aqui. Ela deixa uma mochila cheia no chão, caminha até Whithelly, cobrindo o espaço entre elas rapidamente, assim como eu, Marryweather tenta removê-lo.

- Não adianta, eu já tentei.

- Mas meu braço não está arrebentado! - diz ela rudemente.

Vejo que isso não é inteiramente verdade, pois seu ombro direito está claramente lesionado e agora ela tem um ferimento consideravelmente grande no antebraço esquerdo.

Em pouco tempo, sem nenhum sucesso, ela também desiste.

- Foi fazer umas compras? - comento puxando assunto ao indicar a mochila com a cabeça, quando termino de falar, eu percebo a idiotice de minha pergunta.

- Não posso fazer algo do tipo, não me alistei! - Seu tom é como se estivesse falando com o ser mais ignorante do mundo. Por um instante, me esqueci de que ela é uma desertora, se aparecer em um prédio do sistema como os centros setoriais de suprimentos, passar por onde tenha uma inspeção militar ou batida do exército, seria presa e provavelmente condenada a alguma pena capital.

- Tenho uma coisa para você.

- Um presente, nossa! Não esperava! - falo entornando a voz em sarcasmo, mas é realmente inusitado. Ela abre a mochila e pega um estojo prata que tem o tamanho de um livro, sinto uma enorme curiosidade, porém assim que ela a abre, meu interesse murcha completamente, vejo uma seringa, enorme por sinal, e pior ainda, é de metal. Marryweather a enche com o líquido de uma ampola preta.

- Odeio agulhas.

- Sério? - pergunta ela novamente sendo sarcástica.

- Você está pálido.

- Minha mãe vivia me dando injeções aparentemente sem necessidade.

- Então era para você estar acostumado e tenho certeza que o projétil que atingiu suas costas foi pior - diz ela em tom de ironia e deboche.

- Também foi mais rápido.

- Pare de lamentar! - manda ela em um tom autoritário próprio de um militar já injetando o conteúdo da ampola em meu braço, ela tem a habilidade que atualmente falta em muitos enfermeiros por todo o mundo.

- Pronto, acabou. Morreu? - diz ela falando cada palavra como uma sentença.

- Não, mas foi por pouco - exagero brincando.

- E o pior ainda está por vir - diz ela praticamente correndo até sua enorme mochila.

- Como assim? - Percebo que ela está mais feliz do que o habitual, isso me contagia, vê-la feliz desse jeito. Não tenho uma resposta, ela simplesmente sai do quarto, voltando após alguns minutos, trazendo faixas novas, uma toalha úmida, um kit de primeiros socorros e uma bacia com bem pouca água.

- Para que tudo isso? Não preciso ser operado.

- Não, mas precisa ser suturado. Ela coloca tudo sobre o criado mudo e acende cinco velas, não é como uma lâmpada, mas até clareia bem, então abre a janela, faz o melhor que pode tirando algumas madeiras, a luz forte da manhã se espalha pelo quarto, mas não ilumina completamente o ambiente.

- Whithelly, vai para a cozinha! - Não tinha notado que a garotinha se aproximou curiosa.

- Ah...! Eu quero ver. - Trouxe chocolate para você, está na minha mochila.

- Eba! - Ela corre para fora do quarto e nós ficamos a sós, Marryweather me encara séria.

- Eu estou quente, será que não é tétano?

- Não é isso, é só uma forte febre. - Como você pode ter tanta certeza? - Não é tétano.

- Olha a minha coxa, está feia.

- Só infeccionou - responde ela revirando os olhos.

- Então não vou ter de amputar? - brinco.

- Você tem certeza que não é russo? É tão exagerado quanto - brinca ela pela primeira vez desde que a conheço e ela ri, ficando tão bonita, não sei o que andou fazendo, mas foi bom para ela.

- Agora é sério, deita aí e não se mexe, vai doer um pouco, mas com certeza no exército você já passou por coisas bem piores. - Ela tem razão, o exército foi um inferno e as torturas na prisão conseguiram ser ainda mais dolorosas.

Mesmo com o braço ferido, ela dá prioridade em usar a mão esquerda, seu braço direito parece estar lesionado, acho que até sente dor quando o usa muito, às vezes a pego abrindo e fechando os dedos com certa dificuldade que normalmente passa despercebida, provavelmente foi alguma lesão mal tratada.

- O que aconteceu no seu braço?

- Um imprevisto - diz ela secamente.

- Deite-se e não se mova.

- Não era desse braço que eu estava falando. - Ela fica quieta, como sempre não responde minhas perguntas pessoais. Obedeço-a calado, ela joga álcool nos instrumentos que vai usar e com um pano umedece em volta do ferimento da minha barriga, que dói ao seu toque, ela começa a costurar uma das extremidades, sinto a agulha perfurar minha pele e o local queimar.

Ela tem a habilidade de um médico em seu início de carreira, é evidente que ela já fez isso várias vezes, a agilidade que ela possui não é de uma pessoa sem experiência.

- Como você aprendeu a fazer uma sutura desse jeito? - pergunto intrigado.

- Não fale. - Eu desisto de uma resposta à minha pergunta, então ela começa a falar melancolicamente, percebo que sua voz mudou da água para o vinho.

- Com meu pai... Ele era um médico habilidoso e um pesquisador melhor ainda... Ele me ensinou muitas coisas e por causa dele eu queria me tornar médica...

Ela se perde em suas memórias e para de falar, agora tento total certeza de que quando ela tentou me matar, seu alvo era exatamente meu coração, ela conhece bem anatomia e se eu não tivesse sido rápido em desviar de um ponto vital agora estaria morto.

- Um dia meu pai apareceu com uma garota quase da minha idade dizendo que era sua filha, minha mãe, é claro, sabia que ela nascera de uma traição e logo se divorciou dele e eu passei a vê-lo cada vez menos, até que anos depois eles se reconciliaram e logo depois que minha mãe teve Whithelly, ela contraiu o Siruss.

Ela para por um instante se lembrando do passado que deve pesar como chumbo em seu coração, um trauma que praticamente todas as pessoas que vivem atualmente possuem para atrapalhar seus sonos e arruinar suas vidas.

- Quando a Sile Mëllen colocou em vigor o Programa de Contenção ao Siruss, ela se internou num complexo de tratamento e depois de alguns meses, minha mãe apareceu em casa, ela estava mais magra e sofrida que antes e se encontrava em estado de choque, ela nos revelou que eles matavam todos que não serviam para serem estudados.

- Isso é um horror... - Isso faz eu me lembrar de quando estava com meu pai em Dylan, sei cada vez mais que fiz a escolha certa deixando Altair, não pertenço a esse mundo de monstros.

- Em seguida a minha meia-irmã também adoeceu gravemente, meu pai fez de tudo para manter ela viva e ele me ensinou muita coisa sobre primeiros socorros e suas pesquisas biológicas. Sozinhos até que nós conseguimos vencer muitas barreiras, mesmo nenhuma delas sendo realmente significativas, mas logo minha irmã foi consumida pela doença.

Ela faz outra pausa, agora mais demorada, quando suas memórias começam a se tornar mais dolorosas. Lembro-me de Mell, exatamente todas as pessoas, mesmo que indiretamente, sofreram com o Siruss.

- Poucas horas depois de minha irmã morrer Altair fez uma batida por todo o setor e eles não demoraram a chegar até nós, meu pai foi preso por suas pesquisas serem consideradas criminosas.

- Sinto muito. - Não tenho muito que dizer.

- Os responsáveis por isso que têm de lamentar, não você. - Pela primeira vez ela não direciona o ódio para mim, deve ter visto que sou diferente, muitos soldados, inclusive eu, seguem ordens cegamente e não sabem o que pode estar por trás delas.

Diversas vezes como soldado, eu vi casos onde mesmo massacrando cidades inteiras, os responsáveis viam essas ações como necessárias para melhorar o mundo ou não sabiam da existência de povoados até lançarem seus mísseis e após sobrevoarem a destruição e o genocídio que causaram às cegas.

- Eu e Whithelly passamos a morar com alguns parentes distantes que eram insuportáveis - continua ela. - Então eu fugi e a sequestrei, às vezes penso que seria melhor para ela se eu a tivesse deixado com eles, ela teria uma vida normal, estudaria, teria amigos, entraria para o exército, não precisaria viver escondida e foragida comigo, entretanto, não suportaria ficar longe da Whithelly.

Não as conheço realmente, mas sei que a Whithelly abandonaria tudo isso, toda essa vida para permanecer ao seu lado.

- Dizem que a melhor maneira de se conhecer uma pessoa é fazendo-a de sua prisioneira.

- Ao ouvi-la dizer essa frase, sinto-me como se sofresse de síndrome de estocolmo.

- Devem ter razão - concluo por fim. Não apenas ela passou a me conhecer, como também eu passei a conhecê-la, contudo eu me sinto culpado pela maior parte das coisas que ela sabe sobre mim ser mentira ou uma verdade distorcida. Decido dizer a verdade.

- Eu não sou um soldado, não sou Samon Yanako e sim Marshall Kleyer - digo finalmente, há muito tinha isso engasgado em minha garganta e sinto um alívio em contar a verdade, afinal ela tem feito muito por mim.

- Sou um criminoso procurado por diversos homicídios e considerado muito perigoso, eu fugi usando essa farda e me passando por soldado.

Vejo em seus olhos que ela desconfia de minhas palavras, para ela soaram muito superficiais, mas acho que no fundo de seu coração ela vê a verdade e acredita em mim.

- Terminei. - Ela dá o último ponto na sutura e também em nossa conversa, ignorando o que acabei de confessar a ela, então enfaixa minha barriga com menos delicadeza do que há poucos segundos e logo em seguida costura meu ombro onde enfiou a faca, não continuamos nossa conversa e se instala um ar constrangedor a nossa volta, em que nenhum de nós dois consegue pensar no que dizer e acabamos ficando ambos calados.

- Eu ter contado meu passado não mudou em nada nosso convívio - fala ela ao finalizar a sutura. - Você é um soldado e eu sou uma desertora. Não hesitarei em te matar, do mesmo jeito que você não hesitaria em me mandar para o mastro.

Agora ela é direta e fria, nem reconheço mais a garota que estava se abrindo para mim quase agora. Ela me deixa sozinho, o resto do dia se passa normalmente, como agora Marryweather está presente, Whithelly não me procura mais para conversar.

As vejo novamente somente quando Marryweather vem me trazer a janta e Whithelly fica esperando na porta com receio de se aproximar ou falar algo comigo com sua irmã presente.

Marryweather coloca o prato sobre o criado-mudo e então solta a corrente para que eu possa comer. Às vezes ela é excessivamente cuidadosa quanto a se aproximar de mim, como se eu fosse extremamente perigoso e tivesse de ser minuciosamente controlado e supervisionado para não lhes fazer mal e em outras ela relaxa e age como se eu fosse um amigo ou mesmo da família, confesso que nisso não a entendo.

Hoje a comida está muito melhor, há macarronada e peixe enlatado, e é muito bom comer algo diferente da sopa em lata que elas comem quase diariamente.

Ela serve a janta num prato em vez da lata, não sei aonde ela foi, mas deve ter enchido a dispensa. Ela me deixa comendo sozinho e volta para a cozinha com Whithelly, provavelmente para jantarem também. Tarde da noite, quando tento dormir, ouço suas risadas vindas da cozinha, risadas que advém da brincadeira das duas e devido à cantiga que Marryweather canta sempre que a brincadeira se reinicia.

Reconheço a brincadeira, eu costumava brincar disso com Trice quando nós éramos crianças e nossa vida ainda era normal, na medida do possível. As ouço brincar distraídas e fico feliz por ainda ser possível esse convívio familiar existir mesmo no mundo de hoje infestado de injustiça e devastado pela guerra e pelo Siruss.

Demoro a dormir, mesmo depois que tudo se silencia, provavelmente por elas terem dormido, as dores por ter tratado os ferimentos me impedem de pegar no sono, estou farto de senti-las e exausto de ficar deitado. Após algumas horas na escuridão da noite e em silêncio, consigo pegar no sono.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top