Capítulo Onze: Esther, A Estrela da Esperança

Pego minha  mochila  vazia  e  dou  um  beijo  em  Whithelly,  ela está  sentada  no  chão  desde  cedo,  lendo  um  livro  maduro  e  chato  para  ela,  nós o  encontramos  escondido  embaixo do  piso  por  ser  proibido por  Altair.

–  Whithelly,  não  é para  entrar mais  naquele quarto,  entendeu?

–  Entendi  –  diz  ela  olhando  para  mim  sorridente,  então  volta  a  ler  o livro,  sei  que  ela  não  me obedecerá,  sempre  faz  o  que  deseja,  mas  deixo  por isso  mesmo,  já que  o  soldado não oferece  um  perigo  imediato.

–  Se comporte.

–  Tá.

–  Volto  daqui umas duas  horas. Tenho  receio  em  sair  e  deixar  a  Whithelly  sozinha  com  o  soldado,  eu sei  que  ele  pode  enganá-la  facilmente  e  a  usar  para,  de  alguma  forma,  se libertar.  Tenho  medo  de  deixá-la  e  quando  eu  chegar  não  encontrar  nenhum dos  dois  ou  até  mesmo  no  lugar  deles  me deparar  com  soldados vasculhando  o apartamento,  mas  temos  suprimentos  para  apenas  mais  um  dia,  não  posso adiar isso  e  é mais  perigoso  ainda eu levá-la comigo.

Vou  até  o  quarto em  que  está  o  soldado  para  vê-lo  antes  de  sair,  como  se  isso  fosse  tranquilizar meus  pensamentos.

Ele  está  dormindo,  em  cima  do  braço  bom  e  livre,  com  o  peito despido,  novamente  reparo  em  sua  aparência.  Deitado  nessa  posição,  seus músculos  se  destacam,  não  é  franzino  como  a  maioria  devido  à  fome,  mas também  não  é  como  um  fisiculturista,  mesmo  sendo  maior  que  a  maioria  dos soldados  de  sua  idade,  é  evidente  que  ele  fazia  bastante  musculação  e  atingiu um  ponto  perfeito  para  ele,  ideal  para  seu  corpo,  chegando  a  deixá-lo  bonito. Seus  cabelos  pretos  são  compridos  demais  para  um  soldado  e  ele  não  tem barba,  parece  que  demora  muito  a  crescer,  sua  pele  é  clara  e  sua  postura rígida,  lembro-me  de seus  olhos  cinza-ardósia.

Todo  o  tempo  que  fico  no  quarto,  ele  não  se  move.  Me  arrependo  de ter  tentado  matá-lo  outro  dia,  se  fosse  para  fazer  isso  eu  não    o  teria  salvado. Novamente  volto  a  pensar  o  que  farei  quando  ele  estiver  recuperado,  é perigoso  demais  ele  viver,  já  sabe  demais,  mas  não  quero  matá-lo,  tudo  isso foi  um  grande  erro  e  eu  não  posso  cometer  erros  com  a  vida  da  Whithelly  em minhas  mãos,  a  vida  e  a  segurança  dela  dependem  diretamente  de  minhas decisões.

Pego  a  faca  de  cozinha  que  usei  para  esfaquear  o  soldado,  seria  bem melhor  a  faca  que  está  sobre  a  cadeira  junto  com  seu  paletó  militar,  porém prometi  a mim  mesma  que não usarei suas coisas.

Pego  uma  das  munhequeiras  que  customizei  adicionando  placas  de chumbo  em  seu  interior  e  a  coloco  sobre  o  micro  transmissor  de  identificação em  meu  pulso  esquerdo,  já  devo  ter  sumido  dos  satélites  e  estar  invisível  para os  soldados.

Saio  do  prédio,  as ruas  sempre  imundas estão  mais  vazias  que  o normal,  nem  aqueles  que  possuem  o  Siruss  e  por  isso  foram  abandonados estão  pelas  calçadas,  eles  sempre  vagueiam pela cidade em busca  de comida.

Eu  vejo  uma  coluna  de  fumaça  subindo  em  direção  ao  céu  que  está extremamente escuro.

Rajadas  fortes  de  vento  se  chocam  contra  as  minhas  costas  e  fazem meus  cabelos  rebeldes  esvoaçarem,  as  nuvens  estão  baixas  demais  e  o  ar  esta repleto  de  ozônio  indicando  que  vai  chover  logo  e  será  forte,  quero  voltar antes  da chuva.

Os  prédios  à  minha  volta  estão  caindo  aos  pedaços,  quase  todos  têm enormes  rachaduras,  alguns  estão  até  completamente  desabados.  Vou  para  o leste, para  o  setor comercial  Shail,  o  que sobrou da  parte “nobre”  de  Kessler.

Patrulhas  em  Shail  e  seus  arredores  são  normais,  porém  hoje estão  mais  intensas,  com  diversos  pelotões  percorrendo  as  principais  ruas constantemente,  a  taxa  de  criminalidade  é  tão  baixa  que  o  exército  foca  quase todos  seus  recursos  na  guerra  que  já  se  prolongou  por  dez  anos,  faz  muito tempo  que  o  exército  não  policiava  os  quarteirões  de  Kessler,  atrás  de bandidos  e  foragidos,  o  que provavelmente é  o  caso.

Chego  ao  Centro  Setorial  de  Suprimentos  Kessler/Shail.  Tem vários soldados  por  toda  parte,  o  que  torna aqui  um  lugar  perigoso  para  mim.

Pessoas  não  infectadas  formam  enormes  filas  para  comprar alimentos, utensílios  básicos  e  outras  coisas  de  que  eles necessitam,  o  exército  montou várias  bases  e  barracas  com  caixas  que  são  descarregadas  constantemente  por caminhões que entram  e  saem  a  todo  instante.

As  caixas  estão  cheias  de  produtos  que  serão  distribuídos  para  a população  saudável,  entretanto,  é  claro  com  um  pagamento  “equivalente”,  que na  verdade  é  completamente  exorbitante  e  será  usado  para  manter  a  economia e a  guerra,  que todos  odiamos,  mas somos  obrigados  a  financiar.

Dou  algumas  voltas  pelo  pátio  externo,  então  subo  as escadarias  até  a  área  coberta  dentro  do  principal  prédio  do  sistema,  onde  é feito  o  comercio  com  os  mais  ricos,  nunca  estive  nesta  área,  quem  em  sã consciência  vai  querer  vir  a  este  lugar,  ver  playboys  comprando  besteiras  que custam  mais  do  que  um  ano  de trabalho  de  uma  pessoa comum?

Os  soldados  me  observam  e  seguem  meus  passos  com  seus olhares,  apenas  porque  minhas  roupas  estão  um  pouco  gastas  e  eu  estou usando  botas  de  operário,  os  mauricinhos  desviam  de  mim  como  se  eu  fosse um  animal selvagem.

Esses  vampiros  que  nos  sugam  constantemente,  absorvem  nossas forças  com  trabalhos  medíocres  que  nos  levam  à  exaustão  por  mixarias  que não  são  o  suficiente para  uma  pessoa sobreviver,  mesmo  que  miseravelmente.

Quando  Arcádia  tentou  uma  invasão  militar  à  Salty,  eles  fugiram  com o  rabo  entre  as  pernas  e  agora  me  encaram  com  esse  olhar  de  superioridade, odeio  cada  um  deles,  Altair  seria  um  país  melhor  sem  os  setores  nobres explorarem  os  outros  para manter suas comodidades  fúteis.

Aqui  é  completamente  diferente  do  pátio  externo,  praticamente não  se  vê  militares  e  a  maioria  daqueles  que  estão  aqui  tem  alto  posto  e  não está  aqui  para  fazer  a  comercialização  ou  fazer  segurança  das  mercadorias, não  tem  caixas  de  suprimentos  empilhadas  por  todos  os  lados,  nem  tentativas de  saques  que  geralmente  terminam  em  mortes  brutais  e  covardes  por  parte dos  soldados.

As  mercadorias  de  todos  os  acordos  comerciais  feitos  aqui  serão entregues  em  suas  residências  e  levados por  veículos  particulares.  Todos  usam roupas  de  grife  e  fofocam  coisas  banais  enquanto  brindam  com  suas  taças  de champanhe  branco.

–  Todos deviam  morrer  engasgados  –  eu  sussurro  para  mim  mesma.

Vejo  uma  garota  se  aproximando  acompanhada  de  dois soldados,  ela  é morena,  seus  cabelos  são  escuros,  lisos  e  compridos,  mas  estão presos. Eu  sou  alguns  centímetros maior  que ela.

Ela  aparenta  ser  nova,  deve  ser  um  ou  dois  anos  mais  velha  do  que  eu e  está  usando  uma  farda  militar  de  subtenente,  vejo  um  Rifle  M8A16 pendurado  por uma  guia  em  seu  ombro.  Deve  ter  sido  um  desses  que  atingiu  o soldado,  só  não  sei  o  motivo  de  não  ter  sido  uma  arma  inimiga,  um  fuzil Beliklovsch  que  são  as  armas  usadas  por  Arcádia  talvez,  a  única  explicação que  tenho  para  ele  ter  sido  baleado  por  uma  arma  de  Altair  é  que  ele  tenha sido  traído  por  militares  ou  que  ele  seja  um  traidor,  nenhuma  das  duas  opções me  parecem  viáveis.

–  Você  não  pode  ficar  nessa  área,  volte  agora  mesmo  para  o  pátio principal!  –  ordena  ela  como  se  eu  fosse  um  de  seus  subordinados  ou  apenas  o lixo  da  sociedade,  sinto  vontade  de  dar-lhe  um  soco  na  cara,  não  sei  porque, mas  esperava  uma  voz  meiga,  na  verdade  como  o  previsto  para  um  soldado,  o tom  de  voz  que  usa  é  rígido  e  autoritário. Obedeço,  não  quero  chamar  a atenção,  muito  menos  ser  presa.  Eu  saio  do  prédio  com  meu  objetivo concluído,  reconhecimento  do  local 100%.

Os  dois  soldados  me  seguem  até  eu  estar  fora,  para  meu  azar, eles  estão  bem  armados,  então  não  tento  nenhuma  investida,  que  seria perigosa  demais  para  arriscar. No  saguão  de  entrada  finjo  que  tropeço  e  o mais  novo  instintivamente  me  segura  pelo  ombro  impedindo  minha  queda,  o outro  o  olha  com  repreensão,  ele  me  deixaria  cair  ou  até  mesmo  me empurraria  para  longe  de  si,  eles  voltam  para  dentro,  me  deixando  do  lado  de fora.

–  Acho  que  aquele  soldado  não  vai  dar  conta  disso  tão  cedo  –  penso em  voz  alta  guardando  a  granada  que  consegui  roubar  na  mochila  vazia  que trouxe comigo.

Vejo  outro  caminhão  atravessando  o  pátio,  o  sigo  de  longe,  ele está bem  lento  e,  por causa da multidão,  fica parando  constantemente, ele logo dá  a  volta  no  prédio,  paro  de  acompanhá-lo  ao  passar  por  um  portão  com  um bloqueio  do  exército,  os  militares não  revistam  o  interior de seu  contêiner.

Paro  a  primeira  criança  que  vejo,  é  um  garoto,  ele  é  loiro  e franzino,  parece  não  ser  mais  velho  que a  Whithelly.

–  Você  quer  ganhar  dinheiro?  –  pergunto  eu  ao  garoto.  –  É  apenas  um Ren.  –  É  muito  pouco,  quase  nada,  dá  apenas  para  matar  a  sua  fome  e  de  um único  dia, ele poderá  trocar,  um  Ren  por  uma  garrafa  com  um  pouco  de água  e um  punhado  de  ração  ou  uma  lata  de  sopa,  mas  é  tudo  o  que  eu  tenho,  embora seja  o  suficiente  para  muitas  pessoas  fazerem  qualquer  coisa  para  ganhá-lo, até mesmo  matar.

–  Quero!  O  que  tenho  que  fazer?  –  Ouço  seu  estômago  roncar, enquanto  ele  olha  fixamente  o  Ren  em  minha mão,  uma  velha  moeda de  ferro, se tivesse mais  com  certeza  pagaria.

O  levo  para  um  ponto  cego  entre  os  dois  portões,  desse  ângulo  os soldados  não  têm  total  visibilidade  e  aqui  está  completamente  vazio.  As pessoas  se  concentram  em  torno  das  bancas,  precisam  comprar  hoje  tudo  que necessitarão  ou  passarão  a  semana  miseravelmente  com  fome  e  sede,  até  o Twen Trevor domingo,  quando  o  C.S.S.  Kessler/Shail  estará  aberto  para  o  comércio novamente.

–  Fique  aqui,  logo  um  caminhão  passará  entre  os  muros  de  contenção, passe  pela  cancela  e  coloque-se  à  sua  frente,  por  causa  do  pouco  espaço  eles não  poderão  desviar.  Logo  um  soldado  da  barreira  irá  tirá-lo  do  caminho,  diga a  ele  que  se  perdeu  dos  pais  ou  algo  assim,  ele  não  vai  dar  atenção,  então  você apenas sai e  pode ir embora.  Entendeu?

–  Sim.

–  Vou  te  pagar  agora,  tá?  Confio  em  você. Logo  que  assenti,  lhe  dou  o  Ren  e  me  afasto.  Passa-se  pelo menos  dez  minutos  para  o  próximo  caminhão  atravessar  a  pequena  estrada  de terra entre os  muros  de contenção  que  foram  criados  para  impedir as  tentativas de  saques  desde  que  um  grupo  de  pessoas  furiosas  com  o  fechamento antecipado  dos  C.S.S.  de  todo  o  país  se  rebelaram  e  saquearam  os  caminhões e  depósitos.  Tudo  terminou  três  dias  depois  com  uma  execução  em  massa, foram  mais  de quatrocentos  mortos e nenhum  preso.

Por  toda  a  extensão  do  muro  de  contenção,  ligando  o  pátio  norte  ao pátio  sul,  há  vários  pontos  de  travessia  que  são  vigiados  por  bases  de monitoramento  e  blitz militares.

Quando  o  caminhão  se  aproxima  da  travessia  próxima  a  nós,  a  cancela se  fecha  e,  cumprindo  sua  parte  do  acordo,  o  garoto  a  atravessa  antes  que  ela feche  sem  dificuldades  por  causa  de  seu  tamanho  e,  como  o  previsto,  com  o caminho  obstruído,  o  caminhão  para.

Ando  normalmente  me  guiando  pelo  muro  como  se  fosse  qualquer transeunte  até  o  prédio,  uso  o  encontro  entre  a  parede  do  prédio  e  o  muro  para conseguir  impacto  e  alcançar  a  parte  mais  alta,  tenho  um  pouco  de dificuldade e  meu  ombro  direito  dói  devido  o  movimento  e  por  obrigar  meu  braço  a sustentar meu  peso,  contudo  consigo  içar  meu  corpo.

Sento  no  muro  e  pulo  para  o  lado  interno,  meu  braço  ainda  dói  por algum  tempo,  ando  colada  à  parede  para  os  atiradores  nas  torres  de  vigilância não  terem  uma  visão  panorâmica  de  mim,  essas  edificações  foram  criadas para  manter  as  pessoas  longe  dos  caminhões,  não  para  cobrir  as  brechas  e entranhas do  muro.

Um  dos  soldados  da  base  que  monitora  a  cancela  se  aproxima do  garoto  e  o  chuta,  o  menino  cai  sobre  o  braço  que  agora  ferido  sangra  e  ele chora.

“Coitado”  penso  sentindo  um  grande  remorso.  Eu  devia  ter  arrumado outro  jeito.  Odeio-me  por  isso,  meu  sangue  ferve  de  ódio  pelo  soldado,  sinto vontade  de  matá-lo,  quero  ir  lá  e  defender  o  garoto,  mas  não  o  faço,  nós  só perderíamos  com  isso,  eu  seria  presa  e  executada  por  ser  uma  Nacionalista  e ele receberia uma forte represália por estar comigo.

–  Cala  a  boca!  Se  não  quiser  levar  um  tiro  na  cabeça!  –  grita  o  soldado o  tirando  da frente do caminhão.

O garoto  tenta conter  o  choro e começa  a voltar  para  a multidão que se concentra além  da  cancela.

–  Maldito.  –  murmuro,  o  soldado  se  posta  à  frente  para  o  caminhão  e sinaliza  para  o  motorista,  percebo  que  estou  sem  tempo,  não  deixarei  que fique  em  vão  o  garoto  ter  se  ferido,  corro  para  trás  do  caminhão,  as  comportas estão  bem  fechadas,  mas  não  trancadas,  abro  uma  e  por  sorte  não  tem  nenhum soldado  no  contêiner,  estou  sozinha,  do  contrário  a  minha  aventura  acabaria agora.  Entro  e  fecho  a  pesada  comporta  de  aço,  bem  a  tempo  de  o  motorista dar  a  partida.

Após  alguns  minutos,  o  caminhão  para,  ouço  vozes  do  lado  de fora,  pelos  meus  cálculos  chegamos  ao  portão  onde  os  soldados  deveriam fazer  uma  vistoria  no  veículo,  hoje  cedo  não  o  fizeram,  mas  sei  que  agora  eles vão  revistar  o  contêiner,  eu  me  escondo  atrás  de  uma  parede  de  mercadorias, uma  pilha de sacas de arroz.

Dois  soldados  abrem  as  portas.  Seguro  fortemente  a  faca,  ao  ponto  dos nós  dos  meus  dedos  ficarem  brancos.  Um  deles  sobe  no  caminhão  e  começa  a vasculhar  as  caixas,  vejo  o  outro  o  desanimando,  ele  não  precisa  de  mais  do que  duas  ou  três  frases  para  convencê-lo  a  negligenciar  sua  função,  então  os dois  descem,  escuto  o  barulho  do  trinco  se  fechando  pelo  lado  de  fora,  estou presa.

Torço  para  que  abram  essa  porta  ainda  hoje,  mesmo  que  sejam soldados,  não  estou  a  fim  de  ficar  trancada  aqui  até  o  próximo  domingo quando  o  Centro  de Suprimentos Setorial  vai ser  aberto  novamente.

Coloco  as  roupas  que  trouxe  na  mochila,  uma  calça  jeans,  uma blusa de couro  com touca  e  luva  3/4,  todas as  peças  pretas.

Sento  em  um  canto,  encostada  à  parede  de  metal  frio,  tento  planejar quais  serão  meus  próximos  passos,  falho,  nunca  fui  boa  em  criar  estratégias, sempre  reajo  no  calor  da  situação,  meus  movimentos  são  sempre  instintivos como  o  momento  pede.

Fico  parada,  praticamente  sem  respirar,  preparada  para  agir  quando  os soldados  abrirem  as comportas.

Passam-se  horas  até  que  as  comportas  se  movem.  Pego  a  faca  ao  me lado,  elas  lentamente  se  abrem,  e  três  homens  entram,  me  preparo  para  atacá-los,  então  percebo  que  não  são  militares,  apenas  trabalhadores  enviados  para descarregar o caminhão,  se me encontrarem,  eu terei alguma  chance.

Eles  descarregam  parte  da  mercadoria,  me  agacho  num  canto  para  não ser  vista e  faço  o  mínimo  de barulho possível,  para  o  próprio  bem  deles  e  meu, em  um  confronto  terei  que  os  matar  rapidamente  sem  fazer  alarde  e  estragar tudo,  eles  ficam  discutindo  sobre  política,  é  um  tédio,  não  sabem  que  é  crime discutir política? Se  forem  pegos serão  executados  por uma  besteira.

Após  encherem  um  carrinho  de  mão,  os  carregadores  descem, então  percebo  que  estava  prendendo  a  respiração,  solto  o  ar,  ouço  vozes  se afastando  com  o  barulho  do  carrinho  de  mão,  beijo  minha  estrela  para  dar sorte,  o  pingente  da  gargantilha  que  a  Mellanie  me  deu  quando  éramos pequenas.

–  Me dê sorte,  irmã.  Para  eu  poder  cumprir minha  promessa.

Coloco  a  touca  da  blusa  e  saio  do  contêiner,  a  claridade  das lâmpadas  fluorescentes  ofuscam  minha  visão,  levo  mais  de  um  minuto  para me adaptar.

Estou  em  um  enorme  galpão  com  vários  caminhões  da  empresa  Sile Mëllen  que  fornecem  suprimentos  para  Altair  e  pilhas  de  caixas  maiores  que eu.  Antes  dos  carregadores  voltarem,  eu  consigo  me  esconder  atrás  de  uma das  pilhas,  há  aqui  suprimentos  para  um  mês  inteiro  de  todos  os  cidadãos  de Kessler  e  Shail,  todos  os  C.S.S.  devem  consegui  sustentar  Altair  inteira  e  o sistema permite que  diariamente dezenas  de  pessoas morram  de fome.

Afasto-me  deles  sorrateiramente,  olho  as  etiquetas  das  caixas, passo  uma  por  uma  e  encontro  o  que  procurava:  remédios.  Ontem  procurei inutilmente  em  várias  farmácias  pelo  setor,  apenas  aqui  ainda  tem,  pego  uma pequena  maleta  de  primeiros  socorros  e  a  abro,  tem  vários  remédios essenciais,  entre  eles  antibióticos,  os  coloco  na  mochila,  junto  com  um  kit  de costura,  garrafas  de  água,  enlatados  e  outras  comidas  perecíveis  que normalmente não  são mais  encontradas.

Ando  entre  as  caixas  e  percebo  que  algumas  têm  o  símbolo  de radioatividade  e  de  ameaça  biológica,  estão  usando  as  C.S.S.  para  mascarar  os movimentos de  armas de  destruição  em  massa.  Não  percebem  que isso  levou  a destruição  da  antiga  civilização?  E  que  agora  poderia  nos  levar  a  destruição completa?  Da  última  vez,  a  humanidade  não  chegou  ao  seu  fim  porque sobreviveram  se  escondendo  como  baratas  nos  domos  ou  em  instalações subterrâneas,  no  caso  das outras  nações que  resistiram,  mas dessa vez,  se essas armas  forem  usadas  novamente,  não  poderemos  resistir,  até  porque  por  causa da  guerra  e  do  tempo,  dos  vinte  e  oito  domos,  quatro  estão  quebrados  e  outros nove trincados.

Caminho  rente à  parede.

–  Cadê?  Eu  sei  que  você  está por aqui  –  eu  sussurro  para  mim  mesma. Finalmente  encontro  a  entrada  para  os  dutos  de  ar,  está  mais  alto  do que  imaginei,  pego  algumas  caixas  de  enlatados  e  as  empilho,  uso  a  faca  para desparafusar  as  laterais  da  grade  e  entro  no  duto  apertado,  apenas  a  encaixo  de volta.

Ando  pelo  emaranhado  de  túneis,  até  as  escadas  que  peguei  hoje  cedo e  subo  para  o  salão  de  onde  eu  fui  expulsa,  as  luzes  estão  apagadas  e  como calculei  não  tem  mais  ninguém,  pego  a  tinta  spray  da  mochila  e  grafito  bem grande  em  uma parede  branca.

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