Capítulo Dois: Tiro, Um Último Adeus
Marshall
Atravesso o corredor externo da academia, como estou atrasado vou sozinho para o treinamento de tiro no segundo prédio, ando desanimado já que eu sei que por ter me atrasado para a aula irei receber um castigo por isso, estou aqui há pouco tempo, mas já conheço tudo.
Como nesse momento todos estão em aula agora o pátio está completamente vazio, mas mesmo assim não percebo que estou sendo observado até ser tarde demais, passo em frente a uma porta e em um único instante sou puxado para dentro a força, tento debater-me e gritar, mas sou imobilizado e uma mão tapa minha boca, olho para meu agressor e vejo que é meu pai. Faz três anos que não vejo meu pai. Desde que ele foi preso não tive mais noticias dele e isso foi o que mais me afetou.
Ele é dois anos mais velho do que a mãe, então agora tem trinta e sete anos, contudo continua praticamente igual, quase não vejo diferenças nele desde a última vez que o vi, exceto por seus cabelos que estão mais cumpridos e totalmente brancos. Ele se contaminou e contraiu o Siruss na noite em que estávamos em Dylan, eu o vi adoecer ao longo dos anos seguintes, mas desde que ele foi preso por insurreição à doença evoluiu muito rapidamente. Nesse tempo sua barba deve ter crescido bastante, mas ele a raspou recentemente e isso indica que ele fugiu da prisão já há algum tempo.
Noto que ele é mais parecido com a Trice do que comigo, tem exatamente os mesmos olhos e tinha os cabelos tão escuros quanto os dela, agora ele não tem mais essa semelhança, já que o Siruss a modificou, eu já me pareço mais com a mamãe.
- Marshall, fique quieto.
Ele para de tapar minha boca ao ver a compreensão em meus olhos, então me solta, eu fico calado por alguns segundos, apenas o observando após tanto tempo, nos últimos tempos eu tenho ficado isolado na academia e fico muito feliz em ver um rosto diferente de todos os outros alunos ou militares, contente em ver alguém que amo e por saber o que ele está fazendo aqui.
- Pai. - o abraço, no entanto é uma demonstração de carinho muito rápida.
- Eu vim te tirar daqui, vamos.
- Por que você foi preso. - pergunto finalmente, faz muito tempo que eu queria saber isso, mas nunca mais o vi e a mamãe nunca me responde.
- Por que eu me tornei um Nacionalista.
Nacionalista, odeio essa palavra, odeio cada um deles e não consigo perdoá-los pelo que fizeram com as pessoas, adoecendo todos. Apenas por minha vontade de destruí-los é que eu aceitei me tornar um soldado como a mamãe quer, poder proteger aqueles que não conseguem fazer isso sozinhos. Papai percebe minha mudança de humor.
- Por quê? Eles não são bandidos frios e sanguinários?
- Não... - é tudo que ele diz e fica calado.
- Não são monstros?
- Marshall, você terá que decidir quem são os monstros por si próprio.
Ele pega em minha mão e eu o acompanho para de volta ao corredor externo. Eu tinha outras perguntas, mas não temos tempo para conversar agora e suas palavras me tornam pensativo.
Saímos do pátio pelo caminho que ele fez para entrar. Devido à hora não encontramos ninguém que poderia ser uma ameaça, passamos por alguns alunos. Acho que eles olham para mim muito demoradamente, meu pai apareceu nas listas de inimigos de estado e tenho medo que alguém o reconheça e denuncie para ele ser preso novamente, mas ele está vestido de militar e por isso devem achar apenas que estou sendo conduzido para ser castigado por algo.
Damos a volta no prédio e entramos no campo de treino, uma centena de árvores que ficam na propriedade da academia, uma pequena parte de uma floresta. Meu pai anda rápido e às vezes tenho dificuldade em acompanha-lo.
Seguimos o muro até que chegamos a um trecho que tem uma corda presa do outro lado, meu pai me ajuda a usá-la para pular o muro e logo em seguida ele também pula. Andamos pela floresta por alguns minutos, papai parece seguir por um caminho que ele conhece, andamos até que ouço o som de carros passando e então saímos de entre as árvores, elas se abrem para uma rua e há um jipe militar nos esperando.
Meu coração salta de medo, pulsando mais forte que o normal em nossa aventura que durou tão pouco tempo, porém um alívio surge em meu peito quando vejo que o jipe está vazio e eu não vejo nenhum soldado nas proximidades.
- Entra. - percebo que o papai o roubou e ele usou esse jipe para chegar até aqui. Não é nossa ruína e sim salvação.
Obedeço e entro no veículo, vejo que o painel já está destravado, papai o liga e partimos rumo a uma vida juntos e felizes.
Sinto o ar natural de Kessler entrar em meus pulmões, fora de um dos Grandes Domos sempre tão quente e árido. O único som que chega a nós é o motor do veículo e as rodas deslizando na areia, até chegarmos à cidade de Salty, faz uma hora que deixámos o setor militar de Likheshire, onde fica minha academia e seguimos atravessando o deserto exposto de Dead Zone para chegarmos a nosso setor natal.
Estar novamente ao lado de meu pai faz eu me sentir novamente feliz, mas também me trás as memórias de cinco anos atrás, quando tudo ainda estava bem e começou a ruir com os atentados Siruss. Posso ver Salty no horizonte, se aproximando rapidamente, a cidade sendo banhada pela luz da lua.
Já sabia que o papai tinha fugido do presídio Stantgrow semana passada e que contrariando a vontade da mamãe a qualquer momento ele iria me buscar. Era o que mais desejava, entretanto ele estaria arriscando sua liberdade recém-conquistada, liberdade para me tirar sem autorização de Kally, a instituição de ensino militar que a mamãe me enviou quando ele foi preso.
A mamãe sempre acreditou que eu seria como o papai e me tornaria um desertor quando chegasse à hora de eu ingressar no exército. O normal é aos doze anos, mas assim que completei nove ela me enviou para uma instituição militar e nos últimos dois anos a Academia Kally passou a ser minha casa e meu lar.
O papai disse que faz muito tempo desde que o mundo se contaminou com a radiação das guerras da civilização antiga e que por isso o maior perigo já passou e que Altair mente dizendo ser letal a exposição prolongada ao ar de fora dos Grandes Domos, que não há tanto perigo assim e por isso nós podemos estar ao ar livre sem problemas e atravessarmos a Dead Zone sem ser de helicóptero, mas mesmo assim tenho muito medo e apenas respiro tranquilamente quando voltamos para dentro de um Domo, o Grande Domo de Kessler, seguimos até o bairro de Salty e papai estaciona o jipe militar roubado em frente ao prédio The Golden Gaiden.
Ele desce do veículo, eu o sigo tentando acompanhar seus passos largos. Subimos para o andar que a mamãe mora e que eu morava antes de ir para Kally integralmente. O apartamento está totalmente silencioso.
- Vá pegar a sua irmã. - diz ele quando nós entramos na sala, eu apenas assinto e ele vai para o quarto que dividia com a mamãe.
Obedeço e subo para o quarto da Trice, faz tanto tempo que eu não a vejo, agora ela está com oito anos. As luzes estão apagadas, finalmente com seu programa de reestruturação nacional a mamãe conseguiu colocar uma rede elétrica no apartamento, que deve ser o único de todo o
condomínio a ter energia. A Trice está dormindo em baixo das centenas de estrelas incandescentes que reluzem no teto de seu quarto, receio em acordá-la, mas o faço.
Ela senta na cama, posso ver em seus olhinhos apertados de sono que ela está confusa, tentando medir os atuais acontecimentos. Está maior do que eu me lembrava, seus longos cabelos negros estão enormes e milagrosamente soltos, ela odeia quando seus cabelos estão assim e por isso quase sempre o amarra, mas ela fica linda de qualquer jeito.
- Venha! - falo estendendo a mão, mesmo sem saber de nada, ela não hesita em pegar minha mão. Ela confia tanto em mim que se eu a conduzisse para um abismo ela não lutaria, mesmo a um passo do precipício.
Eu a levo para a sala, papai está terminando de colocar maços de dinheiro que estão sobre o sofá em uma mala. Ouço um som alto demais, um som que vem de cima. Ele para o que está fazendo e apreensivo vai até a janela mais próxima, olha para fora e vê vários veículos militares parando no pátio externo de onde descem grupos táticos que se destacam do esquadrão e cercam todo o perímetro. Rapidamente tomando as escadarias e subindo cada andar em nosso encontro.
- Pai, está tudo bem? - pergunto assustado, mesmo sabendo que devia ficar quieto. - Que barulho é esse?
- Nossa carona filho, um helicóptero, está pousando no terraço do prédio.
Ficamos calados, papai calculando seus próximos passos e a Trice aperta meu braço ao segurá-lo cada vez com mais força. Sem dizer nada papai pega a mala, segura meu pulso fortemente, a Trice solta meu braço e ele me guia até a porta dos fundos. Viro e vejo a Trice parada me encarando, eu a chamo e ela nos segue hesitando, do nada o papai para à minha frente, olho para a porta e vejo a mamãe apontando uma arma para a cabeça dele.
- Seu maldito! Você não sabe a quantidade de coisas que me fez perder, agora era para eu ser a líder suprema desse país! Mas você tinha que se envolver com a escória dos Nacionalistas, agora eu também estou sendo investigada.
- Sharon... - o papai se aproxima tentando acalmá-la.
- Cale essa maldita boca! - ela bate nele com a arma e um filete de sangue escorre por seu rosto. - Eu não posso nem mais exercer minha função e meu dinheiro está congelado no Finance Pride!
O papai tenta tomar a arma da mão dela, tiros são disparados. Os projéteis atravessam as paredes e os móveis, busco em meu corpo por ferimentos à bala, mais tiros são dados e a Trice grita. Olho rapidamente para ela que chora sem parar, procuro em pânico por algum ferimento em seu pequeno corpo.
- Você foi atingida? - pergunto preocupado, ela não me responde nada, ficar calada é seu modo de reagir quando está muito assustada, suas roupas não estão sujas de sangue e eu não encontro sinais que ela foi baleada.
- Você está bem? - pergunto novamente já com um alivio surgindo em meu peito, ela balança a cabeça positivamente. Apenas por sorte ninguém foi ferido, olho a minha volta, para mamãe e para o papai, eles estão bem e ainda lutam pela posse da arma, logo as munições acabam e o papai consegue dominá-la.
Tento acalmar a Trice que não para de chorar.
Já é tarde para sairmos do prédio tem soldados por todos os lados, eles apenas não invadiram o apartamento ainda por causa da mamãe que é muito importante, eles jamais arriscariam a vida dela e o papai sabe disso.
Após horas de negociações ele consegue fazer com que os soldados se retirem do corredor em frente ao apartamento.
- Não se preocupe, não vou te ferir. - sussurra ele ao meu ouvido, então coloca a pistola nove milímetros em minha cabeça. - Anda. - diz ele se posicionando as minhas costas, começo a caminhar, não arrisco virar, mas tento realmente acreditar que a Trice está nos seguindo.
Subimos lentamente as escadarias do andar de cima, eu sei o que ele está pensando, nós precisamos chegar ao terraço, embarcarmos no helicóptero e poderemos viver em paz, apenas o papai, a Trice e eu. Escuto um estampido alto, seguido de outro, quase no mesmo instante, sinto a mão do papai sobre o meu ombro se afrouxar, vejo seu sangue voar a minha volta e me encharcar, ele cai ao meu lado agonizando e a seu redor lentamente se forma uma poça de sangue. Ele foi atingido, um projétil penetrou suas costas e o outro atravessou seu peito e me atinge de raspão, mas principalmente sou atingido pelo medo de vê-lo morrer, pelo medo de perder o papai, perder a Trice.
Alguns soldados se aproximam rapidamente. Luto com todas as minhas forças, mas eles me tiram de perto do papai. Quero ficar a seu lado, mesmo que seja pela última vez. Olho para a Trice, ela está em choque, paralisada a minha frente e chorando, também está suja com o sangue do papai, vejo a mamãe na porta, em suas mãos encontra-se sua pistola, ela segura com força a arma que atingiu o papai, ela atirou nele.
Vejo meu pai ser levado para longe de mim, ele perdia muito sangue devido a minha mãe o ter baleado. Durante dois dias a Trice e eu não tivemos mais informações dele, até que nossa mãe mandou que nos vestíssimos elegantemente como que para uma festa a rigor. Depois de algumas horas num carro governamental todo preto e sem placa chegamos a Grande Capital, mesmo os setores ricos tendo crescido a capital é diferente, muito mais evoluída, anos de desenvolvimento a frente de qualquer outro setor.
Nós entramos na base central ΩMEGA na Grande Capital e nos sentamos numa enorme mesa na sacada do segundo andar de frente para o pátio principal e ficamos junto com pessoas renomadas de Altair.
Reconheço alguns por ter estudado sobre eles na Academia Kally, na maioria ministros da congregação de Altair ou lideres militares de alto escalão, vejo o homem que venceu a mãe na última eleição da Congregação e graças a isso agora lidera o país, ela troca algumas palavras com ele.
Não demora até eu ver meu pai, ele está completamente exaurido e é arrastado até o centro de uma espécie de arena a céu aberto e amarrado a um mastro de aço. Sei que aqui é como as praças de execuções nos centros dos setores.
Meu pai agora acorrentado em pé extremamente rígido, apenas encara a sua frente com o rosto muito alterado e especialmente cansado, nem sei se ele vê alguma coisa ou se está em um estado de inconsciência devido à dor. Acima de tudo se destaca uma expressão assustadoramente vaga nos olhos como se ainda não compreendesse o que lhe está acontecendo.
Entre hoje e o dia em que fora capturado surgiu um hematoma em sua testa por cima do olho esquerdo agora extremamente roxo e inchado, assim como o lábio inferior que agora está aberto por um grande ferimento. Obviamente fora torturado, provavelmente queriam que ele denunciasse seus antigos parceiros.
- Não vou ficar parado aqui. - digo tremendo de raiva e medo, pois sei o que vai acontecer com ele.
Nos últimos anos tem diminuído muito, mas constantemente alguém era condenado a morrer no mastro. Sempre achei que todos mereciam por serem assassinos frios, por terem gerado o Siruss, até desejei levar alguns a esta morte, no entanto com meu pai é completamente diferente, ele sempre foi tão dócil e a vida toda lutou para melhorar o mundo.
- Marshall! - chama-me minha mãe tão rigidamente quanto ela sempre age. Olho para ela e antes que eu perceba uma argola de algema prende meu pulso com uma corrente a mesa. É obvio que ela planejara tudo muito antes de chegarmos aqui.
Eu luto para me soltar, e sem sucesso sou atraído pelos soluços da Trice que não para de chorar, assim como todos, ela já viu pessoas serem executadas no mastro. Estendo meu braço livre para ela e a aproximo, a Trice afunda sua cabeça em meu peito molhando minha camisa com suas lágrimas. Volto a olhar para meu pai, agora seis soldados o cercam segurando a coleira de enormes pastores alemães, eles latem e rosnam vorazmente.
Assim que os ponteiros em todos os relógios batem às nove horas os guardas soltam as coleiras, os cães avançam correndo, logo encurtam a pouca distância de sua vítima. Assim que o primeiro cão morde a perna de meu pai quero desviar os olhos, mas não consigo. As lágrimas acumuladas por tempo demais escapam de mim sem controle. Os cães famintos mordem e rasgam qualquer pedaço de carne que encontram, e agora no completo silêncio os gritos de meu pai é audível mesmo a essa distância, ecoando até nós, a Trice em meus braços tenta tapar os ouvidos para não ouvi-los.
- Adeus papai... - digo num soluço, sei que essa é a última vez que o verei. A ARN o abandonou, não sei o motivo de meu pai ter se tornado um revolucionário e se aliado a eles já que são pessoas tão cruéis, contudo ele foi fiel até o ultimo suspiro. Sinto uma raiva incontrolável crescer dentro de mim e decido me tornar um soldado para cumprir minha promessa agora reforçada, eu irei levar todos os Nacionalistas à execução.
Aqui está o segundo capítulo espero de se divirtam, chorem, riam e se apaixonem lendo essa minha obra
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