37: mas livrai-nos do mal, amém

Quando os sinos de emergência do castelo tocaram, um vulcão entrou em erupção dentro do peito de Margareth. Em apenas algumas horas daquele dia, ela se sentiu transportada de volta ao seu passado, quando a ocorrência de ataques chegava a ser rotineira. Foi como se tudo houvesse passado a ocorrer de maneira desordenada, como pequenos desencontros em sua memória.

Ela se lembrava apenas de Sienna estando ao seu lado no momento em que ambas ouviram o soar dos sinos e de alguns rostos aparecendo em seu caminho de vez em quando. Mas, tomando as rédeas, contarei cada passo dado pela dama naquele assombrado fim de tarde...


O quarto da princesa estava escuro e quente. Margareth continuava sentada sobre a cama, com ambas as mãos presas ferozmente ao lençol e os olhos vidrados na porta fechada, o corpo completamente paralisado. Sienna andava nervosamente de lá para cá, recolhendo algumas coisas em suas mãos magricelas.

— Temos que ir — falou, enquanto agarrava os documentos que havia deixado anteriormente sobre a cama. Um dos papéis caiu sobre o colo de Marga, mas a dama não moveu um músculo, ainda com a atenção paralisada na porta. Sienna o recolheu por ela. — Agora.

Sienna correu até sua escrivaninha e abriu a mesma gaveta, tomando mais alguns papéis e objetos que havia deixado ali dentro. Ela a fechou e a abriu novamente algumas vezes. Na terceira vez que a abriu, retirou dali uma faca e a enfiou dentro de seu vestido.

— Está ouvindo? — perguntou à dama. Fechou a gaveta com o joelho e recolocou o monte de papéis sobre a cama, ao lado de Margareth. Depois, limpou as mãos e começou a caminhar até sua penteadeira, do outro lado do quarto.

No entanto, a dama continuou sem dar um pio, o que fez Sienna encurtar seus passos e encará-la, com o rosto ofegante.

— Margareth? — repetiu.

A dama engoliu em seco. Aos poucos, foi notando que seu nome havia sido chamado pela voz ainda doce e fixou os olhos em Sienna.

— O quê...? — murmurou, tentando encontrar a racionalidade dentro de si. A ruiva a encarava com o rosto franzido.

Temos que ir — insistiu a princesa. Ela esperava por uma ação, esperava que Marga se levantasse de súbito e começasse a sair correndo dali junto dela. Mas a dama ainda a encarava com os olhos paralisados. — O que foi? Está amedrontada?

Margareth abriu a boca, como se fosse pedir ajuda, mas não falou nada.

— Margareth, preste atenção. — Sienna colocou suas mãos brancas e geladas ao redor dos ombros da garota. — Você tem que sair daqui.

— Eu tenho que... — a dama balbuciou, confusa.

— Deve achar nosso esconderijo — interrompeu a princesa. — Há três entradas, mas deve seguir pelo caminho mais próximo... Ele está no quarto de minha mãe. Estará segura lá. Ao menos, até que tenhamos certeza de que isso não é um... — Ela reprimiu a própria fala, mas estava certa em dizer "ataque".

Marga franziu o cenho para a ruiva.

— Assim que entrar no quarto de minha mãe, vá até a parede florida e encontre a porta escondida. Está me ouvindo? — indagou, sem esperar por uma resposta. — Caso algo aconteça e você não consiga ir aos aposentos de Anna, também há uma entrada escondida no salão principal. Mas ele está no primeiro andar do castelo, é muito longe. Temos que evitá-lo, está bem?

— Mas — balbuciou a dama. — Não... Não. Mas e você?

Sienna mordeu o lábio e respirou fundo, ainda com as mãos acariciando os ombros de Margareth. Os sinos continuavam a tocar.

— Preciso esconder estas provas. — Apontou com a cabeça para o bolo de papéis sobre a cama. — Se as encontrarem, estará tudo perdido.

— Eu ficarei aqui.

— Margareth, não.

— Eu esperarei. — Allboire exibiu seus olhos azuis com desespero, em busca de uma autoridade inexistente dentro de si.

— Mas é perigoso. Você não pode...

— Meu irmão está morto, Sienna — falou, com a dor dos últimos dias embutida em sua voz. Ela percebia, agora, o quão doloroso era transformar aquela dor em palavra dita. — Você viu o que acontece quando tentamos bancar os heróis. Não vai cometer o mesmo erro que ele.

— Mas... é o meu dever. — Sienna a encarou por alguns segundos, indecisa, como se pensasse em diferentes formas de convencê-la a ir embora dali o quanto antes, ao mesmo tempo em que pensava em diferentes formas de ignorar os sinos e o perigo e beijá-la mais uma vez. — Venha. — Estendeu a mão direita para a dama, que a alcançou sem pestanejar.

Ela andou até a porta do quarto com pressa, com Margareth indo logo atrás de si, segurando sua mão com força. Mas a ruiva a soltou assim que a outra mão alcançou a maçaneta da porta. Marga encarou seu rosto com incompreensão.

— Não vou deixá-la aqui — insistiu.

— Estou falando sério, Margareth. — Sienna abriu com força a porta pesada, sem olhar para o conteúdo lá fora. — Nós não temos tempo. Deve ir agora.

— Não. — Margareth balançou a cabeça, com os olhos vidrados nos da princesa.

Marga piscou algumas vezes. Sua visão começava a desfocar conforme os olhos se preparavam para soltar as lágrimas que se agrupavam. Ainda assim, entre os pequenos lapsos de escuro, foi capaz de ver os lábios de Sienna fechando-se um no outro, o nariz expirando uma onda pesada de ar e a garganta formulando uma onda conforme ela engolia em seco.

— Princesa! — Uma voz elevou-se ao fundo.

As duas desenroscaram o olhar uma da outra para apanhar o guarda que se aproximava do fim do corredor. Sua respiração estava ofegante.

— Um guarda! — A ruiva endireitou as costas e virou-se para ele. — O que está havendo?

— O pior ocorreu, alteza. — O homem parou assim que alcançou as duas figuras. — Estão nos atacando.

— Não... — Margareth murmurou. — Rebeldes?

— Sim. — Ele engoliu em seco, transtornado. — Já tomaram conta da entrada. As senhoritas não estão seguras. Devem seguir comigo imediatamente.

Ele estendeu uma das mãos para que as duas passassem à sua frente, porém Sienna não seguiu. Ela pressionou a mão em um dos braços de Margareth. A dama encarou seu rosto.

— Se você não for, eu não vou — falou.

A princesa fez que não com a cabeça. Puxou Margareth para trás de si, apressando-se para fechar a porta de seus aposentos. A dama não entendeu o que ela havia acabado de fazer. Mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, Sienna havia sacado a faca para fora de seu vestido - e a apontava para o homem.

— Você não é um guarda.

— Princesa... — O homem estendeu ambas as mãos para a mulher, confuso. — Isso é um mal entendido...

— Sienna... — Margareth sussurrou.

— Cale-se — a princesa ordenou. Marga não soube dizer se a ordem fora direcionada a ela ou ao guarda. Mas a faca continuava apontada para ele. — Vai nos deixar em paz, agora. Não pode me matar.

O homem balançou a cabeça, decepcionado. Lentamente, foi abaixando as mãos, e suas feições foram perdendo o medo. Em seu lugar, abriu-se um meio sorriso.

— Me pegou.

O ambiente permaneceu em silêncio por cinco segundos - com exceção das explosões do sino ao fundo. O homem não sacou a espada logo de início. Apenas apoiava uma das mãos sobre ela, dentro de sua bainha.

— Não precisamos dificultar as coisas — ele disse, de repente. — Apenas me diga onde está sua amiguinha e poderemos todos voltar para nossas camas no fim do dia.

Margareth mordeu o lábio. Seu coração batia forte como se pedisse para parar. Sienna não respondeu.

— É ela? — Ele apontou com a cabeça para a dama, que continuava escondida atrás da princesa. — Vamos lá, senhorita Bolgart. Não é uma troca tão difícil assim.

A princesa balançou a cabeça, com ódio nos olhos. O homem a encarou como se houvesse alguma chance de convencê-la, como se estivesse no controle de tudo. De certa forma, ele estava. Deviam haver outros que já se aproximavam. E Sienna nunca soube lutar.

— Vá à merda — ela grunhiu. Então, avançou para cima dele com a faca.

Margareth soltou um grito, assustada. O homem rapidamente sacou a própria espada e avançou para cima de Sienna. Ela foi capaz de se desviar de duas investidas. Mas, na terceira, ele jogou sua faca para longe.

A princesa deu alguns passos para trás. Margareth agarrou um de seus braços com força. Queria ter o poder de transportá-las para longe dali naquele exato momento.

— O que foi? Não está mais tão corajosa. — O homem riu. Ele continuou se aproximando delas, com a espada erguida.

— Se encostar nela — Sienna grunhiu — eu o mato.

Aquilo não foi o suficiente para fazê-lo parar. Na verdade, o rebelde parecia ainda mais ansioso por alcançá-las, ainda mais deliciado com a situação, apesar de se aproximar em passos lentos. Sienna segurou a mão de Margareth. Não havia o que fazer. Estavam em uma encurralada.

De repente, alguns segundos antes de o homem chegar a elas, como uma bomba explodindo direto do céu, um relâmpago em forma de guerreiro surgiu e pulou sobre o rebelde, agarrando seu pescoço com as duas mãos.

Margareth gritou com o susto e fechou os olhos para a luta.

Sienna apenas observou, paralisada, Klaus Bolgart sentenciar a morte do homem em menos de cinco segundos, levando-o até a borda dos muros e jogando-o do alto daquele andar para o chão da floresta, lá embaixo.

Quando tudo ficou silencioso novamente, Margareth abriu os olhos aguados e procurou pelo homem, mas havia apenas Klaus, com a respiração pesada e os ombros cansados.

— Klaus! — as duas gritaram em uníssono.

Sienna correu para abraçá-lo. Quando se afastou, encarou seu rosto com os olhos arregalados. Ele a encarou de volta.

— São quantos? — a ruiva perguntou.

Ele balançou a cabeça, cansado.

— Muitos.

No mesmo momento, os pelos de Margareth se arrepiaram. Seu corpo começou a tremer com a perspectiva de perigo.

— Precisamos ir — ela afirmou, fazendo o olhar dos dois pender sobre si — para algum lugar seguro.

— O porão — disse Sienna, convicta. Mas, por algum motivo, a palavra a fez estremecer mais ainda, como se o porão abrigasse algum tipo de fantasma perigoso.

— Vocês vão — mandou Klaus. — Eu revistarei os arredores para que possam passar.

Sienna pegou na mão do ruivo, assentindo com a cabeça.

— Está bem. Mas cuide-se.

Ele assentiu de volta. Antes de sair, depositou um beijo na testa da princesa e despediu-se de Margareth. E então, foi-se.

Marga esperou ele desaparecer em alguma esquina ao longe para voltar a olhar para Sienna. Ela já negou com a cabeça.

— Sem chances — disse. A ruiva respirou fundo.

— Isso não é sobre você, Margareth. — Ela encarou a dama com gentileza. — Eu não corro o menor perigo, comparado a Gabrielle. E comparado a você. Vocês duas são parecidas. Você usa as vestimentas dela. Se eles a alcançarem, o que acha que os impedirá de pegarem você no lugar dela? Ainda mais se estiver comigo.

Margareth ficou em silêncio, mastigando as palavras de Sienna em sua cabeça.

— Gabrielle... Onde ela está?

— Gabrielle sabe o que fazer — Sienna falou, simplória. Depois de alguns segundos, acrescentou: — E eu também.

Margareth se recusou a dizer qualquer coisa, como uma criança teimosa.

— Não acha que também não estarei preocupada em mandá-la sozinha? — insistiu a princesa. — Se algo acontecesse com você, eu...

Ela hesitou, engolindo em seco. Depois, abriu a boca para continuar a frase, mas Klaus reapareceu no final do corredor. Dessa vez, vinha pelo caminho oposto, o que significava que já havia dado a volta completa por ali.

Elas retiraram suas atenções uma da outra para encarar o cavalheiro.

— E então? — disse Sienna quando ele se aproximou.

Klaus fez que não com a cabeça suada.

— O caminho está vazio — concluiu, após alguns segundos.

Ela assentiu, silenciosa. Retirou seu olhar do príncipe para encarar a dama de companhia. Margareth implorava com os olhos, em igual silêncio.

— Não temos tempo — murmurou Sienna.

— Klaus ficará com você — disse Allboire. Na verdade, ordenou.

Os olhos da princesa arregalaram-se no mesmo momento. Margareth sabia o que queriam dizer. Que Klaus não podia ver os papéis. Igualmente aos guerreiros de Irbena, não podia sonhar com a existência dos papéis.

— Só vou se ele ficar. — Margareth permaneceu com a face séria, o rosto duro como pedra.

— O que está havendo? — Klaus se intrometeu, confuso. Continuava a olhar para os lados, preocupado.

Nenhuma das duas respondeu. Sienna continuou a encarar o rosto de Marga, dizendo milhares de coisas apenas com o olhar. Se fosse outra situação, com outra pessoa, ela provavelmente não teria paciência para considerar qualquer outra opção. Mas, com Margareth ali, seus olhos, por mais assustados que estivessem, continuavam convincentes.

Sienna fez uma última vez seu pedido, em silêncio. Mas Allboire permaneceu irredutível. Ela já havia presenciado mais ataques rebeldes do que havia tido refeições completas em sua vida. E não arriscaria perder mais ninguém por bobagens.

A princesa respirou fundo e colocou a mão sobre o estômago.

— Klaus, espere aqui enquanto pego algo em meu quarto — disse, por fim, vencida. — Margareth, já sabe o que fazer.

A dama assentiu com a cabeça.

— O que está havendo? — Klaus indagou uma outra vez.

— Não há tempo — concluiu Sienna. Seus olhos insistiram em Margareth uma última vez. — Vá.

Allboire não esperou mais. Deu alguns passos hesitantes para trás, em direção ao corredor, e virou-se para o caminho mais próximo do quarto de Anna Bolgart. Apenas seguiu em frente, com passos ligeiros, sem olhar para trás.

Os sinos começaram a reverberar pela sua garganta embrulhada.

Enquanto ia embora, pensou em como queria abraçá-la e não o fez. Talvez houvesse esquecido pela adrenalina do momento. Permaneceu com isso em mente até o último segundo naquele corredor.

Depois, virou a primeira esquina, e tudo o que estava atrás de si dissipou de seus pensamentos.

...

Seguiu em frente por pouco tempo, de tanto que apertou o passo em seu caminho. O trajeto até o quarto de rainha Anna era longo, mas, de alguma forma, seu cérebro pareceu desligar-se em algumas esquinas, esquecendo-se imediatamente de que ela havia acabado de passar por elas.

Quando chegou ao corredor que dava aos aposentos da rainha, seu corpo gritou de emergência. Parou por alguns segundos. Não havia guardas à frente da entrada, como costumava ser, e as portas do quarto estavam esgueiradas para dentro, com apenas uma escuridão indefinida sendo vista dali. Marga imaginou que as velas do espaço houvessem sido todas apagadas, o que era, de alguma forma, aterrorizador, já que duvidava que alguém de dentro do castelo houvesse feito isso. Talvez eles já houvessem chegado até ali.

Ela começou a andar rápido, ignorando o fato de que, naquele corredor gigantesco e agora vazio, era possível escutar ecos de todas as outras coisas que aconteciam nos corredores e andares anteriores.

Ela ouvia longínquos gritos ao fundo, como se memórias de seu passado em Irbena rastejassem de volta à superfície de seus pensamentos. Nos últimos meses, ela costumava sonhar que esses gritos voltavam para atormentá-la. Mas, dessa vez, os gritos eram mais do que só memórias - eles eram reais, estavam ali e podiam alcançá-la caso se esforçassem um pouco mais. Podiam pertencer a pessoas que ela conhecia e acreditava amar. Se estivesse suficientemente fora de si, podiam pertencer a ela mesma. E aquilo era assustador.

Tentava calá-los com seus passos propositalmente pesados no chão. Assim que entrasse no quarto de Anna e encontrasse a passagem secreta, os gritos cessariam de vez. Ela acreditava que sim.

Mas algo a fez parar no meio do caminho. Um grito - não, um choro fraco, bem mais fraco e baixo e feminino do que um grito, mas igualmente desesperado - vindo de uma sala fechada, a alguns passos dali. Uma voz reconhecida por seus ouvidos.

Margareth virou o rosto para o lugar de onde o barulho vinha. A porta fechada quase ao seu lado a encarava como um convite e uma ameaça ao mesmo tempo. Ela a encarou, indecisa e com medo de que talvez encontrasse algo que não gostasse ver - nada bom vinha de um choro de mulher em situações como a que estava.

Ela aproximou-se da porta com cautela.

Ao encostar uma de suas mãos na maçaneta frouxa, a porta fez um estralo e o choro imediatamente cessou - ou foi engolido em seco. Ela aproximou o rosto da superfície, em busca de algum som de vida humana, mas não ouvia nada.

Marga virou o olhar para a porta do quarto de Anna Bolgart novamente, depois voltou a encarar aquela à sua frente. Agora, só havia os gritos em bando e passos desgovernados ao fundo, e eles começavam a se tornar mais altos e claros, como se fosse questão de tempo até que o terror da invasão chegasse até ali. Ela tinha poucos minutos - ou menos - para que encontrasse a passagem secreta nas paredes do quarto da rainha e estivesse segura. Mas seu coração a traía e pedia para que ela abrisse a porta e ajudasse a dona do choro perdido.

Empurrou levemente a maçaneta e tentou olhar pela fresta o que se escondia ali. À sua frente, um rastro fresco de sangue tracejava um caminho sobre o chão. Margareth arregalou os olhos com força e tampou a própria boca para evitar um grito. O rastro levava até atrás de uma mesa no centro da sala, forrada com um pano longo o bastante para esconder a origem de todo aquele sangue - a única visão que sobrava para quem estava na porta era um par de pés masculinos virados para baixo.

Ao deparar-se com aquilo, os músculos de Margareth enrijeceram. Ela adentrou a saleta vazia com urgência, correndo até o corpo morto do desconhecido. Jogou-se sobre ele, que deitava de barriga para baixo, e puxou seus ombros para cima para que visse as roupas, o rosto, ou qualquer coisa que identificasse o homem.

Ela olhou bem para seus olhos azuis, abertos e paralisados, para seu rosto bronzeado e sua barba rala cobrindo metade do queixo — não o conhecia, achava. O homem também não usava armaduras, ou quaisquer insígnias de Kaena no peito. Na verdade, estava vestido de trapos escuros e não segurava uma espada, como os cavaleiros faziam, mas uma adaga velha e enferrujada.

E foi então que percebeu que, a menos que este fosse um morador secreto do castelo que obteve a má sorte de sair de seu esconderijo durante uma invasão de homens violentos, ela estava colocando as mãos sobre o corpo — e o sangue — de um rebelde — e um provável assassino.

Margareth soltou os ombros do desconhecido de uma vez só e levantou-se lentamente, em choque. Encarou suas mãos, que estavam ensanguentadas, como se ela mesma houvesse o matado, e as esfregou com força na saia de seu vestido, enjoada e com a empatia desaparecendo.

Olhou ao redor. Estava em uma sala de reuniões. Ela nunca havia entrado de fato em uma e já as achava assustadoras pela perspectiva de que Anna Bolgart pisava frequentemente por ali. Mas, agora, parecia ainda pior.

Em meio ao momento em que seu coração desacelerava e ela recuperava o fôlego, notou que o choro que ouvia antes havia voltado.

Marga levantou o olhar para a origem do som. Fixou os olhos a alguns metros dali, num canto de parede entre uma cômoda e uma cortina de seda que se estendia até o chão. Novamente, apenas via os pés da querida criatura brotando para fora do tecido, mas estes estavam vivos, usavam sapatos verdes que haviam sido manchados por sangue e tremiam, encostados um no outro.

Margareth, antes, suspeitava, mas agora tinha certeza de que sabia quem era.

— Vivian? — ela sussurrou.

No momento, a figura escondida não disse nada inteligível. Mas, conforme Margareth aproximava-se, mais podia ouvir murmúrios e gemidos intermináveis saindo de trás da cortina.

— Vivian... — Seus dedos roçaram o tecido de seda. Ela empurrou lentamente a cobertura que escondia a garota encolhida no chão.

De LaCruise estava com a cabeça abaixada, escondia o rosto entre as pernas trêmulas. Seus braços estavam com pequenas marcas roxas, como se houvesse batido-o várias vezes seguidas durante uma briga, e o vestido verde-esmeralda que usava misturava-se com manchas molhadas em cor escarlate. Então, ela era a responsável pelo corpo que jazia atrás de si.

— Não, não, não... — a menina murmurava sozinha, entre soluços.

— Vivian? — Margareth a chamou novamente, mas ela não pareceu dar a mínima para os sons ao seu redor.

— Não faça isso... — a menina repetia, desuniforme. — Pare... Não vá... Não faça isso...

A dama ajoelhou-se à sua frente, aflita. Arriscou tocá-la — não havia tempo para que esperasse o delírio passar, era preciso tirar as duas dali o quanto antes.

— Vivian, sou eu... — Marga ergueu a mão direita e encostou, gentilmente, os dedos no braço gelado da jovem.

No mesmo momento, Vivian acordou de seu pesadelo.

Ela ergueu a cabeça e olhou nos olhos de Margareth. Por um segundo, pareceu enxergá-la, reconhecê-la, mas, logo em seguida, seu rosto voltou à expressão amedrontada de antes, como se houvesse visto um fantasma, e ela gritou.

Marga caiu sentada para trás, igualmente assustada com o grito.

— Não encoste em mim! — Vivian berrou, esgueirando-se à parede atrás de si.

Ela levantou-se num sobressalto, enquanto Margareth observava a cena em choque. Tentou correr até a porta da sala, mas o chão molhado de sangue derramado impediu seu caminho. Vivian escorregou com força sobre o chão, batendo o pulso durante a queda, e grunhiu de dor. Mas continuou a se arrastar até a porta.

— Vivian! — Marga gritou, correndo até a garota machucada.

Ela tentou segurá-la, tentou erguer seu corpo, mas Vivian continuava a debater-se e a soltar-se das mãos de Allboire.

Me solte! — berrava em choro alto. — Me largue! Não encoste em mim!

— Vivian, sou eu, Margareth! — a dama tentou dizer, mas de nada adiantava. A menina não entendia coisa alguma.

Na verdade, Vivian parecia compreender quem estava à sua frente. Enxergava, de fato, Margareth ali. Apenas estava com muito, muito medo dela.

A garota levantou-se com dificuldade e empurrou Marga, que foi de encontro à cômoda atrás de si. O móvel remexeu com força e estralou com o impacto. Enquanto isso, sem olhar para trás, Vivian retirou-se da sala pela porta de entrada.

Margareth desencostou-se da cômoda com dificuldade e respirou fundo. Havia batido o quadril na quina da madeira da cômoda, mas a dor do impacto parecia ser ofuscada pela confusão que sentia no momento.

Igualmente a De LaCruise, ignorou todo o resto daquela sala e correu em direção à porta.

Assim que voltou ao corredor vazio, seus olhos pousaram em Vivian, que estava a alguns metros de si e corria em direção à porta dos aposentos da rainha, como se também soubesse que era para lá que havia de ir. Ela começou a ir em sua direção.

— Vivian! — Margareth chamou, com a voz cansada.

A garota parou de correr e virou-se para trás. Ainda estava amedrontada, com os olhos cheios de lágrimas e as maçãs do rosto avermelhadas. Parecia prestes suplicar à dama que ela a deixasse em paz, que fosse embora dali. Mas, alguns segundos depois, seus olhos desconcentraram-se de Marga e focaram para além de seus ombros, em uma das esquinas do corredor.

Margareth engoliu em seco e virou-se junto. Um invasor, que usava os mesmos trajes de seu colega morto na sala de reuniões, havia acabado de aparecer em uma das entradas.

Ele ainda não havia percebido a presença das duas ali. Olhava para o lado oposto ao que elas estavam, procurando pela existência de alguém no início do corredor.

Marga travou a respiração. Pensou em dar um passo à frente, mas o barulho que seus sapatos faziam era alto demais e chamaria a atenção do rebelde. Ela voltou seu olhar a Vivian, que também a encarava, paralisada e com os olhos arregalados. A garota parecia pensar minuciosamente nas consequências de qualquer uma de suas ações. Se fugisse para o esconderijo do quarto da rainha, deixaria Margareth à sua própria sorte. Se voltasse para ajudá-la, as duas estariam em perigo de morrer.

A dama sabia o que se passava pela mente de Vivian — começaria a correr para um dos dois lados. Ela fez que não com a cabeça, implorando a De LaCruise para que mantivesse silêncio, mas não foi preciso.

— Ei! — o homem atrás delas gritou, encarando as duas com uma fúria determinada no olhar e começando a dar passos até ali.

Vivian não esperou um segundo: começou a correr para os aposentos de Anna Bolgart.

Margareth foi logo atrás de si. Continuava a balançar a cabeça, em negação de que aquilo estaria realmente a acontecer. Mas a menina não olhava para trás nem por um segundo.

— Vivian! — ela gritou assim que De LaCruise alcançou a entrada dos aposentos.

A garota a encarou do lado de dentro, com as duas mãos segurando as portas. Margareth começou a correr mais rápido. Viu aqueles olhos abertos voltados para si, sentindo-se traída. Vivian não carregava uma expressão de satisfação no rosto, como se quisesse deixar a dama para trás. Na verdade, ainda estava com medo. Muito medo.

Antes de vê-la fechar as portas do quarto de uma vez só, Margareth ainda conseguiu encontrar seu olhar de tristeza uma última vez.

VIVIAN! — berrou assim que o caminho se fechou. Segundos depois, chegou até as portas. Começou a empurrá-las com violência, esmurrá-las com ambas as mãos. — Vivian! Me deixe entrar! Vivian!

Margareth olhou para trás. O invasor estava quase a alcançando. Ele mal se dava o trabalho de correr. Não havia caminho para onde ela pudesse ir. Sua presa estava segura, bem ali.

— Vivian, abra a maldita porta! — gritou a dama, em tom raivoso.

Tentou puxar as maçanetas, tanto que os cabos que ficavam presos à porta cederam aos puxões e se soltaram das fechaduras. Ela caiu para trás com o impulso.

Antes que pudesse olhar para trás, levantar-se ou reagir de qualquer forma, duas mãos grandes e fortes agarraram seus braços por trás e puxaram-na para cima de uma só vez, forçando-a a ficar de pé.

Ela berrou, mas sua voz quase não saiu.

O perseguidor prendeu os braços da jovem atrás de suas costas com uma das mãos e, com a outra, agarrou seu queixo.

Me largue! — ela gritou. O homem apenas lhe chacoalhou forte, fazendo seu pescoço estralar e seus braços arderem com os apertões.

Ele ficou em silêncio, mantendo o corpo dela de costas para o seu, apenas observando o lado de sua face com um olhar que atenuava entre desprezo e admiração, enquanto Margareth se contorcia entre seus braços e lutava para sair.

Quando gritou novamente, ele a prendeu contra a porta e fez um "shhh" com os dentes.

Ela ficou em silêncio. Então, uma risada áspera saiu da boca do homem. Ele apertou mais o queixo da garota e virou mais ainda seu rosto para o dele, de forma que ela pudesse ver bem quem a segurava.

Um frio subiu por sua espinha. Ela sabia que ele achava que havia pego Gabrielle. Em meio aos apertões em sua garganta, ela engoliu em seco.

— Não sou quem pensa que é — disse, com a voz embargada.

— Sei... — ele respondeu, tão áspero quanto a risada. — Diga isto à recompensa que ganharei por sua cabeça.

Margareth bufou.

— Me largue! — ela grunhiu, alto e claro, como se desse uma ordem. Remexeu os braços para tentar se soltar, mas o homem a agarrava mais cada vez mais forte.

— Fique quieta, sua merdinha! — ele rosnou, puxando seus cabelos com uma das mãos.

A garota segurou um grito em sua boca.

— Tente ser boazinha — disse o homem. — Não quer tornar isso desconfortável para você.

Mantendo as mãos da garota em sua posse, o homem agarrou o que parecia ser uma corda presa em seu cinto. Ela olhou de relance para o rosto abaixado do desconhecido: seus olhos fixavam no material que logo mais usaria para amarrar os braços da dama.

Ela precisava de uma deixa, de um momento de fraqueza para se soltar e fugir dali.

Por alguns segundos, notou a firmeza na mão que a segurava se desfazer levemente para que a corda pudesse ser posta sobre seus pulsos, e engoliu em seco. Não havia deixa. Ela precisava fugir naquele exato momento, ou teria de fazer isso com os punhos amarrados.

Sem esperar a primeira volta ser feita em seus braços, ela empurrou o próprio corpo para trás até que sentisse a respiração quente do homem em seu pescoço e jogou a cabeça com força em direção ao nariz do rebelde. O impacto foi imediato. Ela o ouviu grunhir, seus ouvidos zumbiram, sua cabeça girou dentro de si mesma, e sua visão enturveceu. Mas já não sentia suas mãos sendo apertadas por outras maiores.

Margareth se empurrou para frente e agarrou uma das maçanetas jogadas sobre o chão. Virou o rosto para seu inimigo. O homem ainda estava curvado sobre si mesmo, recuperando-se do ataque com as mãos sobre o nariz quebrado. Quando seus olhos enraivecidos caíram sobre os dela, Margareth estremeceu de medo.

No mesmo segundo, foi para cima do rebelde. Atacou sua cabeça com a haste que segurava. O homem, atordoado, cambaleou e caiu para o lado. Margareth o ouviu rosnar. Então, chutou o estômago do rebelde com força. Ele gritou e se contraiu, e ela o chutou novamente - dessa vez, mais embaixo - e novamente. Apenas parou quando já não ouvia gritos saindo de sua boca. Quando tudo o que o homem fazia era gemer baixo, tentando não engasgar no sangue que saía de seu nariz.

Ela se afastou do corpo encolhido e encarou a porta à sua frente. Ergueu os dedos de uma das mãos e a empurrou uma última vez. Ainda trancada.

Voltou a olhar para o rebelde ferido. Quando começou a ter noção de seu próprio corpo novamente, notou que lágrimas saíam de seus olhos e que as batidas de seu coração tentavam atravessar seu peito.

Ela pensou em Vivian, e em Gabrielle, e em Anastácia, e em Sienna, e no esconderijo onde deveria encontrá-la. Ela precisava encontrar a entrada do esconderijo. Mas não podia derrubar a porta — não tinha força suficiente para isso. Não tinha força suficiente para mais nada. Sua visão começou a ficar turva.

— Margareth! — Ouviu uma voz no fim do corredor chamá-la.

Ela ergueu o rosto. Era Lorde Lurk.

Ele correu em sua direção assim que notou a presença do corpo do rebelde ferido sobre o chão. Quando a alcançou, pousou as mãos sobre seus ombros, preocupado.

— Você está bem? O que houve? — Ele indagou, porém Margareth não o escutava direito. — Está machucada? Alguém te machucou? Deveria estar escondida!

Ele aguardou alguma — qualquer — resposta, porém os olhos da dama já estavam longes. Ela sentia que a qualquer momento cairia e, antes que perdesse por completo a consciência de seu corpo, apenas conseguiu suspirar uma palavra, que soou, para Lurk, mais como um pedido:

Sienna...

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