35: um toque do divino

Oi bonitos e bonitas! Não, isso não é uma alucinação, é isso mesmo que vocês estão vendo: eu postei capítulo!
Eu de fato sumi por mais de um ano, dei um ghosting muito triste em todos vocês, passei por idas e vindas bizarras e pesadas na vida e na saúde mental e abandonei essa história em meio a esse tempo. MAS, por algum motivo, eu tive uma vontade muito grande de abrir o Wattpad hoje e reler essa história para relembrar os velhos tempos. Enquanto lia, vi comentários feitos hoje mesmo de pessoas que AINDA leem essa história, e me senti malzinha de nunca mais ter postado nada. Eu ainda tenho alguns capítulos guardados que nunca tinha postado, então resolvi atualizar com o 35 (que é tipo, o MAIS importante até então). Quem sabe isso não me dá vontade de voltar definitivamente :)

Boa leitura! (O capítulo de hoje tem uma pira espiritual envolvendo a nossa querida narradora, espero que entendam e não me achem maluca. Ou que não achem a Myra de 2022, que escreveu ele, maluca)

Margareth encarava a superfície áspera e fria do túmulo de George Bolgart.

Não sabia que o corpo do rei havia sido enterrado nos territórios do castelo, mas também não esperava que Sienna, ou qualquer outra pessoa, saísse a contar sobre onde descansava o antigo e falecido rei de Kaena. Ela apenas se lembrava de que o assunto era sensível para a princesa, pelo pouco que havia conversado com ela sobre.

Naquela manhã de quarta-feira, ela levantou de sua cama com uma necessidade urgente e esquisita de rezar. Agora que havia saído ao mundo e assimilado a morte de Enrico como parte inerente da vida, ir à capela parecia a escolha certa a se fazer. Não porque ela era próxima de quaisquer ensinamentos religiosos – na verdade, nunca havia sido criada dessa maneira e nunca havia sequer pisado em uma igreja –, mas porque sabia que, quando alguém vinha a falecer, era isso o que as pessoas costumeiramente faziam: rezavam em nome daqueles que já se foram.

Então, enquanto os corredores do castelo ainda se encontravam vazios, ela se encaminhou diretamente à ermida, que também não havia recebido muitas visitas naquele dia. Nem mesmo o padre estava por lá. Ela percebeu que, com aquela solidão toda, nas cadeiras que deveriam ser ocupadas por fiéis, no altar que deveria festejar noivos, nas pinturas caladas e gentilmente espalhadas pelas paredes, e no tapete vermelho que apenas sustentava a sua passagem pouco importante, parecia faltar algo no lugar. Tudo parecia triste e vazio.

Não conseguiu rezar. Após minutos parada no silêncio de seus próprios pensamentos, levantou-se do chão gelado e se pôs a caminhar pelos jardins do fundo da capela. O gramado, cheio de moitas floridas e pequenas estradas de tijolos esbranquiçados, parecia-se com o padrão para os jardins de Kaena, exceto por sua extensão: ele era consideravelmente pequeno. Margareth demorou apenas cinco minutos para chegar ao seu fim, em um cubículo sem saída que resguardava um túmulo antigo com um banco velho de madeira clara a alguns passos.

Marga observou a combinação do banco com atenção. Havia pequenas hastes de plantas crescendo e cercando as pernas já gastas e enfraquecidas.

Sentou-se sobre o lugar, silenciosa. O túmulo à sua frente estava sozinho, sem nenhum outro acompanhante ao lado. Margareth aproximou o rosto. As lascas marcavam o nome de George Bolgart e uma frase logo abaixo:

Amado pai, irreverente rei.

A frase era simples, facilmente ignorável.

Solitário até em morte, ela pensou.

Uma pulga atrás da orelha de Margareth a fez acreditar que o banco havia sido posto ali por Sienna. Passar dias sentada em frente ao túmulo solitário de um falecido, apenas observando os pequenos detalhes das rochas e gramados se modificando conforme os meses e as estações se passavam, parecia algo que Sienna faria.

Marga fixou mais os olhos na frase gravada; com as pupilas dilatadas. Ela se perguntou se a princesa sentiu o que ela sentia em relação a Enrico quando perdeu seu pai. Se chegou a passar pela falta de ar, a incompreensão desesperadora, o vazio que consumia internamente. Tudo pelo que ela passava nos últimos dias.

Após algum tempo, não sabia bem quando, de tanto que havia se perdido nos caminhos das palavras sobre a pedra, ouviu um barulho cercear seus ouvidos. No caminho que, há pouco, havia feito, encontrou a figura distraída de Vivian de LaCruise, enfiada em um vestido longo verde, que parecia se camuflar sobre a grama de mesmo tom.

A garota parou o caminho que fazia ao erguer os olhos e enxergar Margareth bem à sua frente, no lugar em que ela planejava se sentar.

— Desculpe! — exclamou, antes mesmo de a mais velha dizer qualquer coisa. — Voltarei em outro momento.

A jovem já se preparava para sair dali, mas Margareth interveio, levantando-se da cadeira.

— Está tudo bem! — respondeu, rapidamente. — Pode ficar por aqui. Não será um incômodo.

Ela observou Vivian parar por um momento para avaliar a proposta. Por algum motivo, parecia nervosa em utilizar o lugar, com Margareth estando ali. Seus olhos cor de mel estavam pouco arregalados, e seu rosto se contorceu por um breve momento, como se estivesse pronta para dizer não. Mas, logo depois, ela o relaxou e suspirou:

— Está bem.

Margareth voltou a se sentar sobre o banco em que estava e deixou um espaço a mais, para que a mais nova também se sentasse, caso quisesse.

— Então, — Vivian abriu um sorriso sem graça em seu rosto conforme se aproximava da dama. — o que está fazendo aqui? Não deveria estar dando companhia à sua princesa?

Allboire retribuiu o mesmo sorriso.

— Senhorita Bolgart deixou que eu tomasse alguns dias de descanso. Vim aqui para rezar. — Respirou fundo, observando o chão à sua frente com os olhos cansados. — E por que está aqui?

— Pelos mesmos motivos. — Vivian voltou a contorcer o rosto e se sentou ao lado da mais velha. — E porque Anastácia ainda está dormindo. E Julie ainda não voltou para Kaena. Então, apenas restou...

— Deus? — Margareth brincou.

LaCruise relaxou os músculos do rosto em um sorriso aberto.

— Poderia ser — falou. — Ou não. Na verdade, venho aqui para conversar.

— Com quem? — Margareth franziu o cenho.

— Comigo mesma. — Ela deu de ombros, olhando ao redor. — Com os espíritos. Não sei.

Allboire ficou em silêncio por alguns segundos. Ela voltou seu olhar para o túmulo à frente das duas e ficou pensando.

— Com os espíritos?

Vivian ergueu as sobrancelhas, igualmente pensativa. Analisou o rosto curioso de Margareth e pensou bem no que falar antes de abrir a boca.

— Sinto eles, às vezes — explicou. Depois, olhou ao redor mais uma vez. — Mas, hoje, não há muitos por aqui. Nem mesmo George.

Ela apontou para o túmulo com leveza, como se apontasse para um estranho qualquer que passava por ali. Margareth olhou para o rosto da mais nova primeiro, contrariada. Depois, voltou a encarar a lápide, bem onde as quatro palavras simples estavam cravadas.

— Não acredita em mim? — Vivian perguntou.

Margareth suspirou.

— Não sei — admitiu, inquieta. — Quem está vendo, agora?

A pergunta foi feita com um tom de indiferença, como se ela não se importasse muito com a resposta que recebesse. Mas a verdade era que se importava, sim. Talvez, foi o que pensou, talvez ela esteja vendo ele. Enrico.

Vivian demorou para responder. Olhou ao redor, com os olhos semicerrados, como se pensasse muito, e foi aí que me viu. Depois de quase um minuto com os olhos grudados nos meus, voltou a encarar Allboire.

— Uma mulher — falou, e os ombros de Margareth abaixaram lentamente, desapontados. — Ela está te observando. Está cuidando de você.

Allboire franziu o cenho, curiosa.

— Minha mãe? — indagou.

— Não. Não é sua mãe — Vivian ponderou. — É uma amiga que fez na sua infância. Ela disse que você... Ela disse que você a viu morrer.

Margareth encarou LaCruise em silêncio por segundos ensurdecedores. Seu rosto não parecia crente, mas tampouco cético. Parecia apenas conformado.

— Não fiz nenhuma amiga na infância — foi o que disse, depois do silêncio. — E já vi muitas pessoas morrerem. Deve estar enganada.

Vivian deu de ombros.

— Talvez não se lembre — disse. — Mas ela conhece você. E Enrico. E Sienna. E todos ao seu redor. Mas você, com certeza, é a favorita.

Margareth apoiou o queixo sobre uma das mãos, pensativa. Seu cérebro brincava com a informação que Vivian havia entregado de forma tão gratuita. Mas ela não parecia se esforçar muito para crer naquilo e encontrar uma resposta para o que escutou. Poderia tudo ser uma mentira da mais nova, numa tentativa de expulsá-la dali.

— Anastácia disse que seus pais se foram cedo — disse, de repente. — Já conseguiu vê-los, alguma vez?

Vivian recuou um pouco. Parecia desconcertada com a pergunta, que não esperava receber tão subitamente. De repente, Marga também se arrependeu de ter perguntado.

— Desculpe.

— Está tudo bem — LaCruise exclamou, mas seu rosto ainda estava cabisbaixo. — Nunca os vi. Mas sei que os verei, um dia. Estou em paz com isso.

— Como consegue? — Margareth indagou. — Estar em paz com isso. Não pensar neles o tempo todo.

— Mas penso neles, sim. O tempo todo — a resposta de Vivian foi simplória, e um suspiro alegre saiu de sua boca enquanto falava. — Apenas sei que a ausência deles não me torna uma pessoa sozinha.

— Talvez não, mesmo — a dama concordou, com a mente quase ausente. — Mas como faz para acreditar que isso é verdade?

Vivian balançou a cabeça, com um sorriso simpático apertando suas bochechas.

— Porque tenho Anastácia e Julie comigo. — Afirmou. — Elas são... estranhas, infantis e exageradamente específicas. Mas são minhas pessoas.

Margareth calou-se, pensativa. Começou a analisar os traços do rosto cor de cobre de Vivian, como se pudesse extrair algo de seu olhar sóbrio, e parou após alguns segundos.

— Não sabia que era tão gentil quando a vi pela primeira vez — a dama disse, como se fosse um comentário preciso.

LaCruise franziu o cenho. Estava quase rindo.

— Não sou — respondeu. — Apenas estou inspirada, hoje.

Elas continuaram em silêncio, com Margareth encarando o rosto de Vivian, e Vivian observando o céu cheio de nuvens escuras. Apesar do clima calmo e vasto da manhã, o céu ameaçava de chover e os ventos estavam mais insistentes do que o normal. Era um indício de que aquele seria um dia aconchegante. Talvez.

De repente, o rosto de Vivian se iluminou, como se houvesse descoberto algo maravilhoso. Ela fitou Margareth.

— Deveria vê-la — foi tudo o que disse, agitada.

Marga franziu o cenho.

— Vê-la?

— A princesa.

— O que há com Sienna? — A dama endireitou as costas.

— Nada. Mas... — Vivian hesitou por um momento, como se reorganizasse os pensamentos em sua cabeça. — Sinto que ela tem algo para lhe contar. E, se não for até ela agora, talvez não descubra o que é.

Margareth abriu a boca para dizer algo, mas nada saiu de seus lábios por um bom tempo. Ela engoliu em seco.

— Agora? — repetiu.

— Sim, agora mesmo! — Vivian respondeu.

A dama continuou sem reação ao que havia sido dito. Mesmo que um grande vazio habitasse em seu peito, ela quase sentiu vontade de rir. Desde que havia chegado ao castelo de Kaena, era como se todos ao seu redor estivessem participando de uma grande brincadeira em que ela era a peça principal, sendo jogada de lá para cá e zombada em segredo.

— Isso é esquisito, Vivian — disse, então. — Está brincando comigo, certo? Não faça isso. Não estou em um momento bom. Não brinque com essas coisas.

— Não estou brincando — afirmou a jovem. — Sinto muito pelo que ocorreu com você, Margareth. Perder alguém para sempre é dolorido demais. Sei bem disso, e por isso não haveria razão alguma para que eu zombasse da situação. Estou dizendo a verdade.

— E se eu não acreditar no que diz?

— Pode ser que eu esteja mentindo. Ou pode ser que eu seja maluca, afinal. Neste caso, você poderia facilmente me levar a um hospício — explicou Vivian, num tom meio de brincadeira, meio de seriedade. — Mas sei que não estou. E, neste outro caso, então, não seria interessante saber o que Sienna tem para lhe contar?

LaCruise empurrou levemente as costas da dama, dando o impulso que ela precisava para se levantar dali. Margareth parou por alguns segundos. Encarou confusa o rosto de Vivian, e a mais nova fez um sinal com a cabeça para que ela começasse a andar.

A dama saiu dando passos lentos, pensando se não deveria rir da conversa que havia tido e de si mesma, por talvez ter acreditado em todas aquelas palavras ditas. Saiu sem dar tchau. E foi caminhando pelos corredores do castelo como se estivesse sob efeitos alucinógenos.

Mas, por algum motivo, algo dentro de si urgia com o que ouviu de Vivian. Ela achou que, talvez, fosse bom ir até o quarto de Sienna. Ao menos, para ter certeza de que estava tudo certo.

...

— O que achou deste aroma, senhorita? — indagou a criada, enquanto soltava pétalas exóticas de cor violeta sobre a água morna.

— Perfeito, Olivia. — Sienna apoiou a nuca sobre a borda da banheira, de olhos fechados e com um sorriso entreaberto. — Não sabe o quanto precisava de um banho quente. Poderia ficar aqui o dia inteiro.

A criada Olivia sorriu com o comentário, como se ela também experimentasse a tranquilidade que aquele banho fornecia a partir da satisfação da princesa.

— Banhos são passatempos tão agradáveis — comentou, com a voz aveludada. A criada tomou a liberdade de olhá-la nos olhos, agora que não estava sendo observada de volta. — Me pergunto por que as pessoas não fazem isso todos os dias.

Olivia permaneceu em silêncio, mas Sienna imaginou que ela continuava a sorrir com seus lábios finos e suas bochechas rosadas.

— É como se não houvessem preocupações — continuou. — Como se tudo desaparecesse de um minuto para o outro, e somente eu existisse no mundo. Entende o que digo?

— Senhorita — a criada chamou.

— Sim?

— Senhorita Vincent está aqui.

Sienna abriu os olhos no mesmo momento. Ela virou o rosto em direção à cortina de seda que separava o espaço de seu quarto da sala de banho e encontrou Gabrielle dentro de um capuz verde-esmeralda úmido, com os olhos castanhos bem abertos e as mãos se esfregando uma na outra. A barra de seu vestido azul-claro também estava molhada, o que significava que a chuva prometida já havia começado.

— Olivia — a princesa chamou, agora sentada sobre a banheira. — Nos dê um minuto a sós, por favor.

— Sim, alteza — a jovem disse, segundos antes de acenar com a cabeça e sair andando dali olhando para o chão, como um pequeno corpo sem alma.

Sienna esperou ouvir o barulho distante da porta de seu quarto se abrir e se fechar para que pudesse voltar a olhar para a amiga. Quando a criada as deixou sozinhas, ela respirou fundo, como se estivesse enfurecida, e se levantou da banheira em um só pulo.

— Finalmente, está aqui! — resmungou em tom de bronca. Ela pisou sobre o chão, balançando um pé de cada vez de forma desastrada. — Estava começando a acreditar que se casaria em segredo com aquele conde e nunca mais voltaria para o castelo.

— Foi uma ótima viagem, muito obrigada por perguntar! — disse Gaby, sarcástica.

A ruiva bufou enquanto enrolava o roupão fino sobre seu corpo molhado.

— Desculpe — murmurou. — Estou apenas estressada com tudo o que fui obrigada a passar nessa semana. E por falar nisso, por que não respondeu à minha carta? — Ela voltou a olhar para a amiga, retirando-se da banheira com os pés descalços. — Acredito que fui bem didática ao explicar todos os problemas que resolveram aparecer em minha vida de um dia para o outro!

Dessa vez, foi Gabrielle quem suspirou. Ela desenlaçou o longo capuz de seu pescoço e começou a enrolá-lo devagar, cansada demais para se explicar.

— Desculpe, mas a família de Gustavh é intensa demais — comentou, em meio a outro suspiro. — Aparentemente, fui a primeira pretendente a entrar pela porta daquela mansão. Que pesadelo!

— O que fizeram? — Sienna perguntou, de cenho franzido.

— Nada além de me tratarem com toda a atenção que eles possuíam a capacidade de dar. — A dama deu de ombros. — Não consegui ficar sozinha por um único segundo! Demorei três dias para conseguir ler sua carta por completo. E só consegui terminar quando estava na carruagem de volta para o castelo.

A ruiva balançou a cabeça, decepcionada.

— Sinto muito — falou. — Caso o casamento não dê certo com Gustavh, escolherei um homem com uma família menor.

— Não diga isso! — repreendeu a amiga, porém um pequeno sorriso havia se aberto em seu rosto. — De qualquer maneira, agora que consegui ler sua carta, parece que há problemas muito maiores do que aquela família.

— De fato. — Sienna arqueou as sobrancelhas, como se pudesse ver o problema bem à sua frente. — Margareth está tão... mal. E eu mal sei como lidar com tudo isso! Apenas ignorei a pobre garota durante toda a semana.

— Não há forma certa para se lidar com isso, imagino. — Gabrielle coçou o queixo. — A morte é uma noção complicada.

Sienna fez que não.

— Não estou falando sobre a morte — disse. — Estou falando sobre quem Enrico era em vida.

Vincent calou-se. Ela encarou a princesa por alguns segundos, tentando adivinhar o que ela queria dizer com aquilo. Depois, semicerrou os olhos.

— Não está querendo contar a verdade a ela... Está?

— Talvez. — Bolgart respirou fundo. — Ela merece saber. Não merece? Eu gostaria que me contassem.

— É arriscado. — Gaby fez que não. — Não sabemos se podemos confiar nela.

Você não sabe se pode. Eu sei.

— O que está dizendo? — resmungou a dama. — Foi a senhorita quem disse que não deveríamos contar nada a Margareth. Que ela poderia representar um problema, um perigo, para tudo o que construímos.

Sienna acariciou a testa com os dedos, preocupada.

— Sim, foi o que disse — admitiu. — Mas isso foi antes de eu ver seu irmão ser decapitado na frente de seus olhos! Se souber a verdade, ela pode ser útil para nós. Podemos usar sua raiva... Seu desejo de vingança...

— Sienna, não está pensando com clareza. E com certeza seu possível "desejo de vingança" não é o motivo para querer contá-la tudo. — Vincent suspirou. — Conhece ela há pouco mais de um mês, mas está agindo como se a conhecesse a vida toda.

A ruiva deu de ombros.

— Conhece Gustavh há dois meses e deseja que ele enfie um anel em seu dedo e a tenha como propriedade pelo resto de sua vida. Há alguma diferença?

Toda a diferença, Sienna. — Gabrielle a encarou com ira nos olhos. — Mas não desiste nunca, não é mesmo? Não podemos simplesmente contar a Margareth que seu próprio irmão era um rebelde sem comprometer tudo o que temos! Como acha que explicará a ela o motivo para você saber dessa informação? Vai mostrar a ela todos os documentos roubados, as pesquisas que você fez no castelo de Irbena enquanto ela achava que as duas estavam em uma lua de mel?

— Cale a boca — Sienna devolveu o olhar irritado. — E se eu quiser comprometer tudo o que temos?  Não podemos ser somente eu e você para sempre. É impossível que seja assim. Não vê?

— É preciso que seja assim — reforçou a dama. — Até que possamos fazer algo de útil. Não tente mudar o que já está planejado.

Sienna não disse nada. Ela olhava para Gabrielle como se uma guerra moral ocorresse dentro de si, mas não havia nenhuma. Ela não havia desistido de contar. Na verdade, não havia sido nem um pouco convencida de que a verdade deveria permanecer na escuridão. Mas Gabrielle parecia convicta demais em seus pensamentos para mudar.

— Não vamos brigar — disse a princesa, por fim. — Já houve drama o suficiente por hoje.

Foi o que concluiu.

Gaby demorou para fazer algo em troca. Ela encarou a amiga com a mesma face de dúvida. Mas, depois de alguns segundos decidindo, assentiu.

Aproximou-se para dar uma abraço em Sienna. As duas estavam molhadas e geladas, o que tornou tudo bem menos incômodo. Gabrielle depositou um pequeno beijo na testa da ruiva.

— Falaremos sobre isso mais tarde — definiu. — Agora, vamos vesti-la.

Afastou-se da princesa com passos leves e a acompanhou até as cortinas de seda que levavam para o cômodo principal dos aposentos.

Quando atravessaram a passagem escura, as duas pararam no mesmo momento, como um choque que havia as atingido conjuntamente. À sua frente, vivia uma sombra, a cinco passos da porta de entrada, que as encarava com lágrimas frias nos olhos. E os olhos das duas, por sua vez, começaram a perder a luz. Gabrielle deixou sua capa cair no chão, e Sienna levou a mão ao estômago, que começava a revirar.

— Margareth... — tentou dizer, mas sua voz falhou. Então, ela deu um passo à frente, tentando tocar o quase invisível.

A sombra chorosa, por sua vez, não deu tempo de reação. Saiu dali feito outro raio vindo do céu – um que queimava o topo de uma árvore solitária em meio ao nada – e bateu a porta ao sair. O escuro do quarto estremeceu e intensificou.

Gabrielle continuou calada, de boca aberta e olhos paralisados. Parecia mais amedrontada com seus segredos sendo revelados do que com aquela que os descobriu.

Já Sienna tremia – de frio, talvez – e juntava lágrimas em seus olhos. Mas não chorava pelos segredos destrancados de si. Na verdade, não chorava por nada relacionado a si. Era, ainda, um mistério o que se passava entre as suas lágrimas e o seu interior. Mas não havia de entender nada naquele momento.

Havia um turbilhão de ondas queimando em seu estômago para que ela pensasse com clareza.

Então, sem mais, agarrou a capa de Gaby jogada ao chão e saiu correndo dali.

...


Margareth não sabia como ainda se mantinha de pé pelos corredores. Podia jurar que suas pernas ruíam.

Enquanto andava para longe do quarto – sem rumo algum em seu caminho –, a tempestade lá fora se intensificava. Cada trovoada que ela ouvia soava como um grito vindo de dentro de seu próprio peito.

Ela não possuía sentimentos palpáveis dentro de si. Estava tudo uma mistura assustadora e angustiante, como quando um vulcão entra em estado de erupção e sua lava se choca com o mar. Mas, naquele momento, talvez não pelo que escutou, mas por tudo o que veio antes disso e intensificou aquele momento, o que não saía de sua mente era que ela apenas queria deixar de existir.

— Margareth! — uma voz soou atrás de si e a fez estremecer.

Ela olhou para trás, mesmo que já soubesse quem estava ali, e confirmou com seus olhos a presença de Sienna desfeita de suas roupas, com uma simples capa por cima de seu roupão molhado, correndo atrás de si.

Olhou para frente no mesmo momento e não parou de andar. Na verdade, também começou a correr. Correu até chegar na entrada do jardim daquele andar – o mesmo jardim que havia visto em seu primeiro dia ali – e não parou. Continuou avançando e adentrou a chuva forte como se esta fizesse parte de si.

— Margareth! — ouviu a princesa gritar mais uma vez.

Quando olhou para trás novamente, notou que Sienna não havia ultrapassado a saída do castelo. Ela já estremecia como se estivesse congelando. Tinha a certeza de que, caso pegasse aquela chuva, ficaria de cama pelas próximas semanas. E isso, Marga sabia, era algo que a princesa não arriscaria.

Margareth parou de correr, sabendo que uma parede invisível a separava de sua perseguidora, e caminhou até a ponta daquele jardim. Um pequeno muro a separava de cair morro abaixo e acabar com toda a sua história. Ela parou bem ali, com as mãos postas sobre o muro, observando o resto do mundo ruir com os ventos fortes.

Fechou os olhos e soluçou, conforme sentia a bagunça de água atingir seu corpo por todos os lados.

Sua garganta apertava mais cada vez que um soluço tomava conta de si. Seus ouvidos começavam a se fendar apenas para o som da chuva. Os pingos fortes e os trovões eram tudo o que ouvia. Ainda assim, dessa vez, não havia paz.

— Margareth — a voz de Sienna a alcançou, próxima e atrás de si, e o silêncio se quebrou.

Ela abriu os olhos marejados, ainda em soluços.

— Vá embora — disse, com dureza exacerbada, sem se virar.

A ruiva demorou a dizer algo.

— Não — disse, de repente.

Marga engoliu o sabor amargo de suas lágrimas, raivosa.

— Então eu vou.

A dama virou bruscamente para ir embora, mas as mãos geladas da princesa impediram seus ombros molhados. Ela a segurou firmemente, dos dois lados, como se segurasse vidro, e Margareth lutou contra o toque, tentando se soltar e gritando como se aquilo queimasse sua pele. Elas esbanjaram água de chuva para todos os lados, mas, ao fim, Sienna continuava segurando os ombros da garota com firmeza.

Margareth continuava fitando o chão, rendida pelos braços da princesa. Depois de parar de soluçar, ela ousou levantar o olhar para a figura à sua frente, e o que viu foram olhos arregalados para si em um rosto fantasmagoricamente trêmulo. A capa florida de Sienna havia caído no chão com a briga, e agora ela apenas tremia com boa parte da pele desnuda na chuva. Margareth não sentiu um pingo de comoção.

— Como pude ser tão burra — falou, com os lábios enojados.

Sienna fez que não.

— Não é burra.

— Sou — insistiu. As lágrimas voltaram a encher seus olhos. — Sou burra. Sou burra, e insípida, e inútil, e uma desgraçada. É isso o que sou!

— Pare! — pediu Sienna, com urgência em sua voz.

— E você é pior ainda — continuou ela. — Você é egoísta, e mesquinha, e incapaz de sentir empatia pelos outros. E não acredito que demorei tanto para descobrir isso.

A ruiva piscou os olhos com força. Um trovão assolou o local por alguns segundos, mas elas não se moveram.

— Me desculpe — murmurou a princesa, com lágrimas nos olhos.

— Pare de se desculpar! — gritou Margareth. — Você não precisa se desculpar. Pode fazer o que quiser, o que bem entender, e nunca sofrerá as consequências disso! É por isso que não se importa com ninguém. Pode pisar em qualquer um a qualquer momento!

— Isso não é verdade, Margareth...

— É a verdade — ela afirmou. — Não se importa com ninguém. Nunca se importou com ninguém além de si mesma.

— Eu me importo com você.

Margareth olhou nos olhos da jovem, preparando xingamentos em sua mente.

— Mentiu para mim sobre a única coisa que poderia me destruir.

Sienna ficou calada. Encarou o rosto dolorido da dama com uma súplica silenciosa. A chuva não cessava.

— Me solte — pediu Margareth, com a voz recuperando a frieza anterior.

— Por favor...

— Agora. Me solte.

A ruiva suspirou conforme suas mãos se afrouxavam nos ombros da dama. Allboire não esperou nem mais um segundo. Empurrou os braços de Sienna para longe de si e pôs o pé para fora dali.
Sienna observou o lugar onde Margareth antes estava, agora vazio. Ela ficou calada em sua própria órbita, enquanto escutava os passos de Allboire se afastando na grama. Ouso dizer que as palavras sombrias deixadas pela dama ainda reverberavam em seus ouvidos, mas o que ardia e amargava seu peito era o fato de que ela ia embora dali ainda sem conseguir o que mais queria. Isto é, a verdade.

Sienna cerrou os punhos. Quando ouviu o grito com a chegada de mais um raio no céu, foi como se este houvesse viajado léguas e atingido seu corpo. E seu corpo, de repente, pareceu se esquecer de todo o tremor que a chuva causava.

Ela virou-se em direção à dama, com o olhar travado em determinação.

— Margareth! — gritou.

A jovem não parou, muito menos deu atenção ao chamado. Então, Sienna começou a traçar o caminho de Marga.

— Você está certa. Eu sou egoísta! — continuou a gritar. — Eu sou egoísta, porque menti para você quando deveria ter dito a verdade no momento em que a descobri. — Ela engoliu em seco, continuando a seguir a jovem. — Eu sou egoísta, porque sei que você merece alguém muito melhor como amiga, mas não faço nada para mudar isto! Eu sou egoísta, porque empurro você para longe o tempo inteiro. Eu a empurro para longe o tempo inteiro e lhe faço mal porque eu simplesmente não posso olhar para seu rosto sem ter de encarar a maldita verdade!

Margareth cessou o caminho e ficou de costas para a ruiva por algum tempo. Depois de secar suas lágrimas, ela se virou. Encontrou a princesa a cinco passos de si, separada somente pelos pingos violentos que caíam entre as duas.

— Qual? — disse a dama. — Qual é a verdade?

No momento em que fez aquela pergunta, seu coração pulou com mais força. Ela já sabia a resposta. Foi como estar prestes a cometer um grande erro e mesmo assim seguir em frente. Ela possuía a certeza absoluta de o que estava por vir. Mas continuou. Pelo gosto de ver acontecer.

— A verdade é... — Sienna hesitou por um segundo, como se o olhar dominante de Margareth houvesse desestabilizado suas certezas. — A verdade é que qualquer proximidade com sua presença nunca parece ser o suficiente para mim. Eu estou vergonhosamente ardendo de agonia desde que lhe conheci. E tudo porque... Tudo porque você é a única pessoa deste castelo que poderia me arruinar. E mesmo assim eu apenas quero que você se aproxime de mim e me beije e faça o que quiser comigo.

Margareth a encarou com o olhar acuado. A ruiva ficou parada, sem arrependimento. Esperava por alguma reação, alguma resposta ao que havia dito. Agora, os pingos gelados da chuva já não pareciam tão desagradáveis quanto antes. Marga já estava emergida na atmosfera barulhenta do clima àquele ponto, e seu corpo congelava em silêncio, de pouco em pouco.

Quando seus olhos relativizaram o ódio que transmitiam há alguns segundos e seus ombros começaram a relaxar, ela viu Sienna respirar mais forte e engolir em seco. Ao piscar uma vez as pálpebras molhadas, viu a ruiva sair de seu lugar com passos decididos em sua direção. E, ao momento em que piscou novamente, os braços da princesa encontravam um lugar ao redor de sua cintura e uma de suas mãos subiam até seu pescoço, cincundando-o como se intentasse sufocá-lo, mas com a maciez de uma pena.

Naquele momento, seu peito apertou como se houvessem pedras esmagando cada centímetro de seu coração. E então, finalmente, ela entendeu o que estava acontecendo. O rosto de Sienna estava de frente ao seu, e seus olhos castanhos que, desde o início, pareciam confusos e hostis, na verdade imploravam por algo o tempo inteiro.

Sienna piscou algumas vezes, com a respiração acelerada. Parecia prestes a falar algo que pudesse estragar tudo. Então Margareth, sem quaisquer dúvidas restantes, pressionou as mãos em sua nuca molhada e a beijou.

Elas colidiram uma contra a outra com a força de um raio. Beijaram-se com pressa e furor, feito a primeira chama a entrar em combustão em toda a história, como se houvessem desperdiçado todo o tempo válido do mundo até aquele momento.

O aroma de Sienna consumia seu corpo. Os cabelos molhados de Sienna se embaraçavam em meio às suas mãos. O corpo frio de Sienna se fundia ao seu deliberadamente. As mãos de Sienna acariciavam sua pele de cima a baixo. E os lábios de Sienna eram ainda mais atraentes do que quando ela apenas os observava de longe. Era algo totalmente assustador e cativante ao mesmo tempo.

Quando se afastaram, a princesa soltou o corpo da dama e reembrulhou seu roupão quase desfeito.

Ela mantinha a cabeça baixa, de olhos quase fechados, e sua respiração continuava pesada, como se houvesse acabado de carregar o céu sozinha. Margareth quis gritar que ela não estava sozinha.

— Me desculpe — a ruiva murmurou entre os soluços, balançando a cabeça. — Me desculpe.

Allboire piscou algumas vezes e engoliu em seco, como se ainda assimilasse os últimos segundos. Sua pele continuava a tremer com os pingos que caíam nas partes que antes estavam cobertas pelas mãos de Sienna. Mas agora seu corpo estava quente. Ela estava verdadeiramente aquecida.

— Não se atreva a me pedir desculpas por isso — disse, com o tom firme de antes.

Sienna ergueu o olhar para ela, surpresa e estarrecida. Abriu a boca para dizer algo, mas ficou parada, aterrorizada, por um tempo. Quando seus lábios se moveram e formularam alguma coisa inaudível, um trovão rugiu atrás de si e o céu ficou mais branco por um segundo.

Margareth encolheu-se e afastou-se do som, incomodada.

— O que disse? — gritou, brigando contra o som alto da chuva.

Sienna umedeceu os lábios avermelhados e voltou a se aproximar da jovem. Seus olhos estavam marejados. Havia melancolia exposta neles.

— Disse que contarei toda a verdade — falou alto. — Sobre Enrico, a guerra, os rebeldes... Sobre tudo. Tudo o que sei.

Marga ficou calada. A chuva insistia em cair, e a princesa apertou cada vez mais o robe fino contra seu corpo. A dama queria abrir seu robe e tocá-la como nunca havia feito antes. E, ao mesmo tempo, queria cobri-la do frio. 

— Mas é preciso que saiba — Sienna disse — que não haverá volta.

Não se esqueça de deixar seu voto! <3

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