33: o vestido azul-escuro de senhorita Bolgart

Voltar ao senso frio e desalmado dos corredores do castelo de Kaena era como acordar de um sonho nostálgico de primavera. E Sienna, indubitavelmente, odiava acordar de sonhos bons.

Se, ao menos, o local de onde veio fosse um pouco menos miserável do que aquele em que estava, ela teria espaço para se apoiar nas memórias boas que se passaram. Mas não era exatamente isso o que havia acontecido. Na verdade, a realidade estava bem longe desse cenário: Sienna fugiu da morte em Irbena para se afogar novamente na fantasia frágil e sombria de Kaena. No fim de tudo, não havia vida em nenhum dos dois lugares. E ela não possuía memórias de um cenário melhor no mundo para se apoiar durante esse vazio.

Agora, era como se estivesse coberta por uma nuvem de fumaça asfixiante, que cobria todos os rostos que passavam por si.

Caminhava pelo chão taciturno do terceiro andar, com a companhia desamparada de Anastácia Sinclair e Vivian De LaCruise. Ambas aflitas, porém uma, é claro, mais incomodada do que a outra.

Antes, Sienna se encaminhava à sala de estudos, onde encontraria senhor Mendraud, seu tão antigo professor. Mas elas haviam encontrado a princesa sozinha pelos corredores, por acaso do destino. Se aproximaram incertas, com passos miúdos, como se não soubessem se aquele era um momento aceitável para incomodar a ruiva.

Vinham com as mãos vazias, o que significava que o bilhete que Sienna havia, anteriormente, escrito a Margareth estava entregue. E, enquanto a princesa umedecia os lábios e disfarçava sua súbita energização inconsciente, as outras duas faziam reverências profundas na sua frente, aguardando o momento de voltarem às posturas originais.

— E então? — Sienna falou com a voz contida, deixando sair apenas um frasco da agitação desgostosa que havia em seu interior.

Elas elevaram seus corpos de volta ao topo.

— Senhorita Bolgart — Anastácia preparou o ambiente, esquecendo-se de sua tristeza para dar espaço à ansiedade de voltar suas palavras a uma figura maior. —, senhorita Allboire recebeu o bilhete pessoalmente.

A ruiva ficou calada por um instante. Passou a respirar pela boca, nervosa, mas a loira não pareceu notar.

— Ótimo — declarou. Piscou por alguns segundos e, depois, voltou a falar: — E como ela estava?

Ana franziu o cenho, já triste.

— Ela estava afetada, Alteza — lamentou. — Como em todos os outros dias.

— Certo, mas... — Sienna enrubesceu. — Deixou claro a ela que eu era a remetente. Não deixou?

— Sim, Alteza — Vivian intercedeu, com a postura muito mais calma do que a das outras duas. — Ela está ciente disso.

A ruiva umedeceu os lábios e assentiu, tramando um sorriso no rosto.

— Isso é bom. Obrigada.

De LaCruise avaliou o olhar perdido que permaneceu no olhar da mulher, mesmo após as perguntas respondidas, com seus olhos de caramelo empáticos. Pareceu pensar por um instante e formular uma face de preocupação no rosto.

— Há algo mais que gostaria de perguntar, Alteza? — indagou.

Sienna a olhou diretamente, algo que não havia feito, até então. Ela franziu o cenho para a menor, aflita, como se estivesse ofendida pela pergunta feita. Mas, após isso, apenas engoliu em seco.

— Sim — foi o que disse. Os olhos castanhos vidrados no rosto negro escuro da mais jovem. Ela avaliou seus pensamentos por um segundo e abriu a boca muito antes de pronunciar qualquer palavra: — O que ela falou, quando soube do bilhete?

— O que quer dizer, Alteza? — Anastácia disparou, perdida.

— Ela disse "Obrigada" — afirmou Vivian, em um tom sóbrio e caridoso.

Sinclair encarou a amiga com confusão no olhar, como se não visse sentido algum em uma pergunta como aquela. Mas foi alucinada pela certeza no olhar das duas e pareceu se adequar a tempo ao ambiente.

— Bem... — pensou alto, de repente, enquanto penteava seus cachos dourados. — Ela não pareceu mais tão triste, Alteza. Na verdade, parecia surpresa. Como se não esperasse. E seus olhos fizeram aquela coisa que ela faz, quando está ansiosa. — A garota imitou a expressão de Allboire na frente das duas, arregalando os olhos azuis de um modo exagerado.

Sienna soltou uma risada solitária que durou um único segundo. Não porque Anastácia não sabia imitar a expressão de Margareth, nem de longe, mas porque a ruiva tinha a certeza de que aquilo realmente havia acontecido. Porque ela imaginou, no momento em que escrevia e entregava a carta, que essa seria a reação que Marga teria.

Seu rosto voltou à seriedade logo depois de seu pensamento ligeiro e doce. Ela o disfarçou, franzindo os lábios para ambas.

— De qualquer forma, — Respirou fundo e começou a retomar o caminho que fazia antes. Dessa vez, com as duas ao seu lado. — ela fez alguma pergunta?

Sienna não sentiu a necessidade de acrescentar o "sobre mim" à frase. Era como se todo o teor daquela conversa já explicitasse isso. E não desejava transformar aquilo em algo perto do constrangedor.

Ela observou as duas amigas se entreolharem, caladas, como se tramassem uma frase motivadora de último minuto em silêncio, e sabia que aquilo significava que a resposta era não. A ruiva abriu mais um sorriso amargo – dessa vez, mais contido –, porque também já imaginava aquilo.

— Ela estava absorta demais em seus próprios pensamentos, senhorita Bolgart — Vivian tentou justificar, como se precisasse.

Anastácia, com suas pernas curtas, tentava acompanhar o caminho das duas na mesma velocidade, ao mesmo tempo em que trabalhava para escutar a conversa.

— É verdade, Alteza! — acrescentou. — Mas parecia sentir a falta da princesa. Tenho a certeza disso.

Sienna não respondeu. Achou aquilo esquisito: ser consolada por duas garotas tão novas e distantes. Parecia algo que ela faria com Gabrielle, apenas, porque elas eram próximas o suficiente para isso. Mas, naquele momento, era apenas estranho e incômodo. Aquela terrível sensação de proximidade forçada a fez querer fugir dali.

Ela apertou um pouco mais o passo, forçando as duas a acompanharem seu ritmo. Não sabia mais para onde estava indo. Apenas andava até que algo acontecesse e aquilo acabasse.

— Senhorita — Anastácia voltou a falar. A ruiva apenas assentiu com a cabeça, dando espaço na conversa. — Poderia eu fazer uma pergunta dessa vez, se não se importar?

— É claro — Sienna respondeu rápido demais. Na verdade, mal havia pensando. Sua boca apenas se moveu sozinha, como se possuísse vida própria.

— Bom... — Sinclair se calou por um instante. Não parecia pensar no que dizer, mas avaliar se o que estava em sua mente era de bom tom. — Penso se não seria mais fácil, Alteza, se... talvez... a senhorita pudesse... Entende o que digo? Visitá-la.

A ruiva parou sua caminhada no mesmo instante, com os olhos cheios voltados para o rosto jovem e corado de Anastácia. A garota proferiu sua opinião de forma tão inconstante, travada e gaguejante, que Sienna mal teve o ímpeto de sentir raiva.

Na verdade, por mais atrapalhada que tenha sido aquela tentativa de intervenção, a sugestão feita pela garota conseguiu tocar, mesmo que um pouco, a consciência da princesa.

Ela trocou seu olhar entre as duas e abriu um sorriso frio.

— Não tenho certeza — disse. E mentia. — Não sei se seria a melhor opção.

E a verdade era que ela sabia, sim. Havia estado perto de Margareth em todas as manhãs daquela semana. Com o rosto a centímetros da porta fechada de seu quarto, todos os dias, no mesmo horário. Desde que haviam voltado para o castelo.

Em todos os dias, ela elevou seu pulso fino e tangeu bater à porta da garota. E em todos os dias, alguns segundos depois de fazer isso, ela desistiu.

— Tenho estado muito ocupada — acrescentou, de repente. — O castelo tem estado movimentado. São muitos imprevistos. Mas é claro que me importo com o estado de senhorita Allboire.

E, pelo menos, em relação àquilo, ela não mentia.

Além de Marga, Sienna havia sido a única dali que vivenciou a mesma cena que ela, em Irbena. E a morte não era nem um pouco simples de se lidar. Se, para a princesa, seus pensamentos estavam infestados de insetos podres, com memórias explícitas sobre cada momento daquele dia, ela mal podia imaginar que tipo de lar havia se tornado a mente de Margareth.

E, apesar de querer vê-la, como antes a via, Sienna sabia que tudo o que poderia sair de si era pesado demais para transferir ao coração da dama. Era melhor que um coração sofresse em luto sozinho, do que adicionasse o peso de outras dores em cima de si. E Sienna não queria ser um peso para Margareth. Então, fez o que fazia de melhor: se absteve da situação.

E, por um tempo, tudo pareceu ocorrer bem. Mas a verdade era que ela estava com saudades. E queria o aroma de morango, e as conversas com olhares sinceros, e a presença inerentemente calada de Marga de volta ao seu lado.

— E foi por isso que enviei o bilhete — completou. — Para que soubesse que desejo o melhor para ela e que mal posso esperar para tê-la como dama, novamente.

Sienna manteve o sorriso que havia construído minuciosamente em seu rosto. Ela avaliou os olhares surpresos das duas donzelas à sua frente e sabia o que elas estavam pensando – que a princesa era uma criatura dotada de pura frieza. Talvez, fosse melhor que pensassem assim.

Desconfortável, a ruiva desviou seu olhar para o chão e alisou a saia de seu vestido longo. Ela usava azul-escuro naquele dia, porque era o mais próximo de preto que poderia usar.

Depositou um último sorriso para as garotas antes de retomar sua caminhada, sem esperar que elas a seguissem. Mas, assim que começou a dar seus passos, ela ouviu os passos secundários das mais jovens atrás de si, ainda no mesmo tom de insegurança. Dessa vez, mais forte. Imaginou as duas cochichando sobre sua atitude enquanto seguiam as suas costas.

Quando virou à primeira esquerda, pensou que deveria ir à sala do senhor Mendraud. Ele, provavelmente, estava à espera de sua presença na aula. Apesar disso, ela não queria ir para aula. E, agora, a presença de outros dois pares de passos atrás de si estava começando a se tornar exaustiva.

Ela respirou fundo e parou na encruzilhada do fim de corredor do último andar do castelo, onde a vista ao Mar do Norte era exposta a qualquer um que focasse bem o olhar através daqueles muros. Ali era um bom lugar para se esquecer de tudo o que lembrava.

Virou-se para as duas garotas, que esperavam atrás de si, caladas. Estava pronta para abrir a boca e dispensá-las, sem fazer a menor questão. Mas os olhos de Anastácia se tornaram vorazes, de um segundo para o outro, e um sorriso gigantesco se abriu no rosto da pequena.

Ela apontou para atrás dos ombros de Sienna, mais animada do que nunca.

— Margareth! — foi tudo o que disse, e ainda acrescentou à fala um tom anormal, como se ela não acreditasse no que dizia.

Sienna observou o olhar de Vivian também se tornar vívido, quase tão vívido quanto o da amiga ao lado. E, então, não restava dúvidas de que Sinclair não estava alucinando ou pregando peças.

Ela voltou seu campo de visão para onde o dedo carnudo de Ana apontava, e lá estava, ao final do corredor à direita. Realmente era Margareth. Uma versão mais apagada, fraca e estarrecida de Margareth. Mas, com toda a certeza, tratava-se dela.

E ao seu lado, estava Stephan Lurk. Uma mesma versão de sempre de Stephan Lurk, com sua postura convencida e seu rosto reprimido em uma expressão pura de superioridade.

Sienna os encarou por alguns segundos. Observou-os juntos, próximos, feito um casal de recém-conhecidos em um baile, e tudo pareceu extremamente certo. Aquilo a fez estremecer. Ela engoliu à força um fogo que tentava subir à sua garganta.

Em questão de segundos, Margareth notou a presença das três ali. E seu olhar magoado atingiu o de Sienna como uma flecha certeira, e foi como se tudo o que tentou evitar sentir com sua ausência durante a semana voltasse em um único milésimo de segundo. Isso fez seu peito apertar ainda mais.

Que vergonha.

Engoliu em seco. Ela estava pronta para sair correndo em direção à dama e abraçá-la por horas. Ou para retirar-se dali o mais rápido possível e sumir por mais três semanas seguidas. Não sabia ao certo. Mas havia, dentro de si, o ímpeto para seguir uma dessas duas opções.

No entanto, quando havia, enfim, escolhido uma das duas — e devo admitir que não se tratava da melhor opção —, toda a atenção que tinha posto ali foi retirada pelo som estridente dos sinos de emergência do castelo. Todos os participantes daquela troca de olhares absurda pareceram tremer ao mesmo tempo, atordoados com o que aquela onda de terror significava.

Sienna engoliu em seco.

Significava que algo de ruim havia acontecido.

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Essas semanas, recebi algumas mensagens de leitoras me perguntando se estava tudo bem. Em um geral, agora está! Apenas tive um final de semestre corrido e não consegui olhar para nada além disso :(
Ainda assim, gostaria de agradecer pelas mensagenzinhas que eu recebi. <3 Fiquei realmente feliz de saber que algumas pessoas gostam bastante de ler essa história. Também gosto demais de escrever ela, e fico muito feliz que vocês acompanhem.
Bom, de qualquer forma, espero que gostem dos acontecimentos que estão por vir daqui para frente. Beijinhos <3

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