29: espetáculo no vilarejo
Aviso de conteúdo: violência.
Sienna se sentou à mesa redonda de madeira que estava na sala única da cabana.
Margareth estava sentada logo ao seu lado, com uma de suas mãos dada a Eleanor. A mulher não pareceu soltá-la desde o momento em que a viu chegar. Seus olhos escuros ainda estavam avermelhados, de tanto que havia chorado ao descer as escadas e ver a cunhada reaparecer bem na sua frente, como se fosse um fantasma ressurgido do passado.
Analisando em meio ao silêncio, Sienna gostou do modo como ela olhava para Marga, como se estivesse olhando para um arco-íris após uma chuva vigorosa. Havia um certo carinho maternal guardado ali.
— Então... — Enrico colocou dois copos de água sobre a mesa, sentando-se na última cadeira restante. Ele respirou fundo. — Esteve em Kaena — a frase saiu com um tom desacreditado, como se ele precisasse de uma confirmação – pela quarta vez – de que havia escutado certo.
— Exato — Margareth confirmou. Pela quarta vez.
— Inacreditável. — O irmão franziu o cenho, consternado. Ele fitou o rosto da princesa com indiscrição, sem saber que olhava para uma figura de autoridade. — E sua... amiga?
Sienna apenas percebeu que ainda encarava Eleanor quando a mesma devolveu seu olhar a ela, esbanjando o sorriso simpático que faltava em Enrico. A ruiva havia se perdido em seus pensamentos, sem perceber.
Ela desviou o olhar no mesmo segundo, assustada.
— Nos conhecemos assim que Marga chegou ao castelo — respondeu, levantando o rosto aos olhos escuros do rapaz. Ele pareceu incomodado pela intimidade inesperada entre as duas, como se chamá-la de "Marga" fosse um gesto de ultraje. — E nos aproximamos, assim que a princesa teve a gentileza de chamá-la para ser sua dama de companhia.
Margareth abriu um sorriso discreto ao ouvir a ruiva elogiar a si mesma na terceira pessoa, como se possuísse uma grande autoestima. Bolgart mordeu o lábio inferior ao notar aquilo, com suas bochechas também inclinadas a sorrir.
— Ela a chamou assim, sem mais nem menos? — Enrico arqueou a sobrancelha. Sua desconfiança não parecia intencional, apenas protetiva.
— Não foi sem mais nem menos. — Sienna arregalou os olhos, assertiva. — Margareth possuía algo que as outras não possuíam. Ela escutava. E era bom conversar com ela. Era como... se houvesse humanidade — explicou, séria. Depois, percebeu que Enrico e Eleanor a observavam com um quê de estranhamento, por sua fala tão pessoal, e foi abrindo um sorriso aos poucos. — Ao menos, foi o que a princesa contou.
Margareth respirou fundo, soltando uma risada nervosa.
— Gabrielle está apenas sendo gentil — disse devagar, balançando a cabeça. — Para ser sincera, acredito que minha linhagem proporcionou grande parte desses bens. — Ela suspirou, pensativa. A história de seus pais vivendo em Kaena foi a primeira coisa que havia contado a Enrico, quando chegou. Ela não podia negar que, se não fosse por eles, talvez, ainda estivesse presa e perdida nos calabouços do castelo. Talvez, até morta.
Sienna franziu o cenho, incomodada pela fala. Mas não disse nada a respeito.
— Inacreditável — Enrico repetiu. Ainda mantinha a expressão incrédula em seu rosto. Mas, mesmo com ela em aparência, não deixou de abrir um sorriso sincero para a irmã. — Mas fico feliz que você esteja bem. Viva, de preferência.
— Com certeza. — Eleanor abriu o mesmo sorriso, apertando ainda mais a mão da garota. — Estávamos sem esperanças. Mas vê-la chegar, no dia de hoje, é um sinal de que o Universo está sempre ao nosso lado.
Enrico respirou fundo com a constatação da esposa, franzindo os lábios. Parecia incomodado com algo.
Margareth percebeu o olhar entre os dois.
— O que há no dia de hoje? — perguntou.
Eleanor abriu a boca para falar, mas desistiu no mesmo momento. Ela soltou a mão da mais nova e Enrico se levantou da cadeira, coçando sua nuca cheia de cabelos e caminhando até a janela pequena atrás de si, para observar a paisagem lá fora.
— Já faz um mês — ele murmurou, aflito. — Muitas coisas mudaram no vilarejo, desde que você se foi.
— Eu percebi — Marga disse. — As ruas estão vazias. As casas também. As pessoas me olharam estranho, quando cheguei. E não tenho certeza se foi apenas pelo vestido ou por... Gabrielle. — Ela trocou olhares com Sienna. — O que houve por aqui?
— Ninguém sai, mais. Os homens do... — Eleanor parou a si mesma, antes de pronunciar homens do rei. Talvez, não soubesse o que a nobre ao seu lado pensasse desse termo. — Os guerreiros nos visitaram, há uma semana. Diziam que estavam a comando maior, que havia rebeldes entre nós. Levaram alguns deles. Outros foram marcados.
— Marcaram? — Sienna repetiu, confusa. — Marcados para que?
— A morte — explicou Enrico, voltando a olhar para a mesa. — Estão marcados para morrer.
A ruiva piscou algumas vezes, sem expressão no rosto. A forma como o casal falava sobre aquilo dava a entender que era algo péssimo o que estavam fazendo.
— Mas são rebeldes, não são? — Marga franziu o cenho, contrariada. — Eles fazem parte das pessoas que mataram quem amamos. São perigosos.
— Nem todos, Marga — o irmão respondeu, com um tom de voz vazio e silêncio. — Os homens do rei apenas escolhem quem os convêm escolher para matar. Isso não muda nada para eles. Quem vai e quem fica. E honestamente, não podemos confiar na Coroa para resolver problemas que ela mesma criou.
Enrico respirou fundo, olhando para o nada. O ambiente entrou em silêncio, de repente.
Eleanor apenas estava triste, encarava as lascas de madeira da mesa à sua frente. Mas o silêncio que partia de Sienna vinha da culpa, porque ela havia decidido fazer parte desse projeto de exterminação de pessoas. E, agora que Margareth sabia dos planos da Coroa de Irbena para os rebeldes, essa responsabilidade também recaía sobre ela.
Depois dos segundos de quietude incômoda, Enrico decidiu dar fim ao assunto:
— Bem, — Suspirou, fingindo uma felicidade instantânea no sorriso que se formou em seu rosto. — quem gostaria de me ajudar com o almoço? Nós estamos com sorte, hoje. Muitas das pessoas que fugiram do vilarejo deixaram suas plantações para nós. Temos feijão, batata e abóbora de sobra!
— E eu farei geleia de morango! — Eleanor exclamou, numa tentativa de animar a si e às outras. — Será um dia especial.
Margareth ainda parecia séria demais para dar um sorriso verdadeiro. Então, Sienna resolveu tomar as rédeas:
— Sempre quis saber como se faz geleia — comentou ela, adotando um sorriso tímido ao rosto. — Posso ajudá-la?
— Mas é claro! — A mulher soltou uma risada sincera, encostando uma de suas mãos na de Sienna, como fazia com a de Allboire, há poucos minutos.
— Margareth — chamou Enrico. A garota levantou o olhar preocupado para ele. — O que acha de me ajudar a preparar o almoço? Só nos dois?
...
Margareth poderia mentir e dizer que odiou esquecer de seus problemas. Mas passar as duas horas que passou com Enrico, Eleanor e Sienna ao seu lado, cozinhando e conversando sobre banalidades dignas de nobres desatarefados, foi ótimo.
Ela gostou da forma como ouvia a risada de Sienna com Eleanor, ao fundo, como se aquilo fosse algo rotineiro em sua vida. Ela gostou da forma como a via interagir com outras pessoas e achava aquilo verdadeiro demais - até mais verdadeiro do que vê-la sentada em um trono. Seus olhos escuros se fechando quando um sorriso sincero surgia em sua face. Como se ela não fosse princesa de coisa nenhuma. Apenas Sienna. Um ser humano que existia.
Mas também gostou de ter Enrico ao seu lado e gostou de contar sobre todos os casos que viveu no castelo. Ela deixou de fora os momentos perigosos e estranhos que vivenciou, é claro. Aquilo era algo que a deixava aflita até aquele momento. Mas não deixou de mencionar as amizades feitas e os jardins e tudo de feliz que havia para contar.
— Eu tomaria cuidado com essa Anastácia — disse o irmão, após Margareth contar sobre o jantar com a garota. Seus olhos estavam semicerrados, mas seu tom era sarcástico. — Ela parece ser obcecada com você.
Marga riu, esmagando a massa batata dentro da tigela à sua frente.
— Ela é apenas curiosa — pontuou, com o rosto ainda guardando felicidade por se lembrar do humor inabalável da loira. — Além de que, em Kaena, todos parecem ser obcecados com alguma coisa.
— Até a princesa? — Enrico arqueou uma sobrancelha. Nesse momento, Sienna pareceu se interessar na conversa, parando de mexer o líquido avermelhado que estava sobre a mesa para ouvi-los, de longe. — Até você?
Margareth pensou por um instante, divertindo-se com as perguntas.
— Não tenho certeza — respondeu, olhando para o teto. — Há muito para se procurar pelo castelo. Se eu passasse mais tempo por lá, talvez me tornasse obcecada com algo. Mas a princesa... — Ela respirou fundo, certa de que estava falando alto o suficiente para ser ouvida por todos na sala. — Não sei dizer.
— Não sabe dizer? — Ele semicerrou os olhos, novamente encarando a irmã. — Não quer revelar nenhum segredo constrangedor de gente rica?
— Não. — Margareth riu. — A princesa apenas é diferente dos outros. Não é possível saber com o que é obcecada. Na verdade, ela é quem se torna a obsessão de outras pessoas, normalmente. É engraçado. E assustador, às vezes. Mas compreensível.
Enrico ficou quieto, assimilando as informações enquanto assentia com a cabeça lentamente. Aos poucos, ele foi voltando a focar na clareira do fogo à sua frente, enquanto mexia a panela com um meio sorriso no rosto.
— Parece que morar no castelo lhe deixou profunda — ele murmurou, com o tom sarcástico na voz. — E piegas.
Margareth suspirou um sorriso para irmão. Seu rosto estava pacífico, como se não houvesse nem uma só preocupação se escondendo em seus pensamentos. Quando seu olhar atravessou a sala e cruzou com o de Sienna, sentada a alguns metros de distância de si, ela percebeu que a ruiva estava igual. Sorridente, de repente.
Aquilo a acalmou.
— Terminou de misturar? — Eleanor indagou, chamando a atenção de Sienna para a tigela na mesa.
A ruiva voltou a olhar para sua tarefa e começou a misturar a geleia de morango quase pronta com uma velocidade maior, envergonhada por ter se distraído com a presença de Margareth.
Eleanor encarou seu rosto com um sorriso entendido.
— Parece feliz — ela comentou, de repente.
Os olhos castanhos da ruiva se arregalaram para a mais velha.
— Estou. Muito. — Ela abriu um sorriso. — Realmente não sabia como fazer uma geleia de morango. E a sua parece deliciosa!
— Que ótimo! — As bochechas escuras do rosto de Eleanor se aglomeraram, acompanhando o entusiasmo da garota. — Mas quis dizer que parece feliz em estar aqui. Conosco.
— Ah. — Sienna riu de si mesma. — Me desculpe. É que não estou acostumada com... essa simplicidade. É bom.
Eleanor franziu o cenho.
— Se Enrico estivesse ouvindo, ele diria que passar fome não é nada bom.
— Desculpe, não foi o que quis dizer. — A princesa desfez o sorriso. — Quis dizer que vocês não precisam ser nada para ninguém. E isso parece tão... verdadeiro. É como se pudessem ser como são, sem ter medo de que os julguem por isso. Entende?
— Bem, é assim que as famílias funcionam — respondeu a mais velha, com a voz suave. Ela analisou o rosto inquieto da ruiva por alguns segundos. — Sinto que não é assim que a vida funciona para a senhorita, em Kaena. Estou certa?
Sienna fez que sim com a cabeça, envergonhada com a ação.
— A única família que tenho é meu primo. — Ela umedeceu os lábios, como se o ato de enfrentar seus sentimentos consumisse a água de seu corpo. — O resto é apenas... Bem, como a senhora disse. Apenas não funciona assim, para mim.
As sobrancelhas de Eleanor se juntaram uma à outra, com empatia grudada nos cantos de seus olhos. De repente, sua mão pousou sobre o ombro de Bolgart e ela lhe lançou um sorriso de canto.
— Não se preocupe, Gabrielle — disse, olhando nos olhos vulneráveis da jovem. — Famílias não seguem regras. E é sempre possível escolher alguém que não tem o seu sangue para fazer parte da sua.
Ela sorriu, afastando-se da garota e voltando a dividir a geleia em pequenos recipientes de vidro, como se nada houvesse acontecido. Sienna não teve certeza, mas achava que ela estava falando sobre Margareth. Acreditou ter visto seu olhar se voltar para ela, algumas vezes, enquanto falava.
— Obrigada — disse, de repente.
Eleanor apenas assentiu com a cabeça, mas seus olhos afiramvam que estava tudo bem.
— O almoço está pronto — Enrico anunciou, com um sorriso orgulhoso.
Eleanor adotou um tom alegre ao bater palmas para si mesma.
— Ah, até que enfim! — exclamou. — Estava morta de fome.
Sienna acompanhou seu sorriso sincero, ficando em silêncio por algum tempo. Havia algo na mulher que a atraía e que a fazia querer segui-la, para lá e para cá. Talvez, fosse o olhar maternal.
— Tirarei essas coisas daqui. — A mulher levantou, erguendo consigo as tigelas de geleia que estavam sobre a mesa.
— Gabrielle, querida — Margareth chamou. Sienna a olhou assustada. O termo "querida" nunca esteve no vocabulário da morena. — Poderia ajudar Enrico a carregar os pratos?
A ruiva pensou, antes de readotar a vivacidade em seu rosto e fazer um sim com a cabeça.
— É claro. — Ela sorriu e se levantou, sem jeito.
Margareth levava uma toalha para forrar à mesa, conforme Sienna entrava na área da cozinha, onde só havia Enrico, agachado em frente à lareira.
A ruiva engoliu em seco, olhando para ele, e seguiu adiante, até passar pela figura agachada e chegar à prateleira que guardava cinco pratos velhos e alguns talheres feitos à mão.
Ela continuou encarando o homem pelo canto da visão. O rapaz fitava o fogo da lareira com os olhos entreabertos, como se estivesse focalizando o horizonte daquela brasa em seus pensamentos. Como se estivesse se decidindo se deveria se jogar ali ou apenas apagar o fogo. Ele mal parecia ter notado a presença de Sienna. Porque, se houvesse, ela duvidava que ele demonstraria estar tão triste quanto estava.
Enrico despertou de si, de repente, voltando seu olhar para aquele que tanto o encarava. Sienna se assustou, dando um passo atrás e esbarrando na prateleira de talheres. Foi tudo ao chão, de uma vez só.
— Me desculpe! — Ela fez uma careta, encarando a bagunça feita.
Mas, diferente de sua carranca enrubescida de mais cedo, Enrico expressou uma risadinha, como se aquilo fosse apenas mais uma prova de que o desastre sempre vinha direto da nobreza.
— Está tudo bem — ele murmurou. — Eu lhe ajudo.
Já agachado no chão, o rapaz pôs-se de joelhos e começou a caçar por talheres espalhados por aí. Sienna fez o mesmo, sem jeito algum para dizer qualquer coisa que não fosse mais um pedido de desculpas.
Mas ele não parecia bravo. Nem um pouco. Parecia se preocupar com mais coisas na vida do que com alguns talheres derrubados.
— Não estou acostumada a trabalhar na cozinha — Sienna puxou assunto, sem saber se era o que deveria fazer enquanto procuravam por objetos no chão. — Mas estou gostando. Mesmo sendo um completo desastre, às vezes.
Enrico apenas respirou fundo. Como um homem de poucas palavras, como Margareth havia mencionado uma vez, ele murmurou:
— A prática leva à perfeição. Ou é o que dizem.
E então, sorriu para a ruiva.
— Pronto — disse, depois de pegar todos os talheres consigo.
Ele se aproximou para entregar à jovem sua parte dos objetos, estendendo os dois braços desnudos a ela.
— Obrigada — ela exclamou, ainda rindo por sua falta de tato.
Após olhar em direção aos talheres que deveria pegar para si, seu sorriso se desfez aos poucos.
No braço esquerdo, marcado sobre a pele escura como uma queimadura antiga e insistente, estava um círculo preto, com uma pequena coroa desenhada. Era um símbolo simples e minúsculo, algo que ninguém perceberia e que aqueles que percebessem não se preocupariam tanto com o que viam. Talvez, Margareth e Eleanor olhassem para aquele desenho o tempo todo, todos os dias.
Mas a diferença, naquele momento, era que Sienna conhecia aquele símbolo. E, de repente, o mundo pareceu virar de cabeça para baixo.
Com os talheres em sua mão, ela levantou o olhar lentamente para o rosto suado de Enrico. Estava certa de que ele havia percebido que ela viu. Ele a olhava com a face séria. Talvez, estivesse esperando para saber se seria preciso inventar uma desculpa ou não.
— Quem é você? — Sienna sussurrou, com os olhos vidrados e a voz insegura.
Enrico rapidamente retirou seus braços da frente dela, com uma expressão vigorosa e irritada. Ele a fitou por alguns instantes, sua respiração acelerando. Ela tinha certeza de que o coração do rapaz estava batendo forte, naquele momento.
— Sou eu quem pergunto — rebateu, no mesmo tom de voz baixo que a mais jovem, mas mais irado e protetor. — Para saber o que é isto, — a marca em sua pele foi erguida, novamente. Dessa vez, sem vergonha alguma. — a senhorita não pode ser uma simples dama de companhia.
Sienna ficou em silêncio. Encarava ele com medo. Não do que o rapaz poderia fazer, mas medo de que ele não houvesse contado isso a Eleanor e nem a Margareth. Estava com medo de que Marga estivesse vivendo em um sonho em que Enrico era totalmente inocente aos seus olhos e de que, se sim, a ruiva também fosse precisar manter esse segredo às escondidas. E ela não queria mentir. Não dessa vez.
De repente, quis ir embora dali para sempre.
— Está tudo bem? — a voz doce e descompromissada de Margareth surgiu ao lado do pilar, atrás deles.
A bolha de tensão gigantesca entre os dois se dissipou em um único instante. Enrico virou-se rapidamente para a irmã e Sienna adotou um sorriso despreocupado, como se este estivesse em seu rosto o tempo todo.
— Está, sim — respondeu a ruiva. — Apenas derrubei os talheres no chão e seu irmão me ajudou.
Ela viu o rapaz concordar com a cabeça.
— Está certo. — Marga riu. — Eleanor e eu estamos morrendo de fome. Venham!
— É claro, levarei os pratos à mesa. — a ruiva afirmou com a cabeça, erguendo os objetos da prateleira com as duas mãos, conforme jogava os talheres sobre eles, e caminhando para fora da área da cozinha.
Atrás de si, Enrico trazia duas tigelas de comida quente, que cheirava a abóbora e feijão e invadia a órbita do perfume de Sienna. Ela gostou de ter sua presença quebrada pelo doce cheiro de comida quente e feita. Ela teria adorado aquilo, não fosse pelo que viu, alguns segundos antes.
— O cheiro está ótimo — exclamou, conforme dispunha os pratos na mesa.
Todos pareceram concordar com a constatação, o que a fez se sentar sobre sua cadeira, forçando um sorriso de satisfação.
Apenas Eleanor, sentada bem ao seu lado, não parecia feliz com o almoço. Ela apoiava a mão sobre o estômago e piscava rapidamente, como se estivesse prestes a vomitar ali mesmo.
— Está tudo bem? — Sienna colocou sua mão sobre o ombro da mais velha.
Ela a retribuiu com um olhar perdido e com a respiração disforme. Abriu um sorriso entre o sofrimento de sua face.
— Está sim, querida — afirmou, mas não parecia nada bem. — Tenho apenas estado enjoada, nos últimos tempos.
A ruiva assentiu. Mas continuou encarando a mulher com um quê de curiosidade no olhar. Não disse nada para ela.
Apenas pensou, para si mesma, sobre o peso dos segredos que cada ser humano escolhia guardar dentro de si.
...
Depois do almoço, as coisas ficaram difíceis. Não que já não estivessem para Sienna. Mas, depois do almoço, as coisas ficaram difíceis para todos.
Bolgart e Eleanor cuidavam de lavar a louça usada com o resto de água que tinham guardado na cozinha, e Margareth e Enrico comiam geleia de morango e conversavam, sentados à mesa quase vazia, a alguns passos dali. Suas feições eram sérias e o tom de voz era baixo demais, o que incomodou Sienna.
Ela já começava a imaginar que Enrico criaria alguma narrativa disforme para expulsar a ruiva daquela casa o quanto antes pudesse. Mas não podia julgá-lo. Se estivesse em seu lugar, é o que teria feito.
A garota fitava a dupla com os olhos estreitos e vidrados, mais do que qualquer pessoa normal faria. Ela tentava retirar alguma coisa dos sussurros que chegavam sutilmente ao seu ouvido direito, mas era como se falassem outra língua completamente diferente. De repente, sentiu falta da liberdade de poder caminhar até ali e os obrigar a falar a verdade, como Sienna Bolgart faria, se estivesse no castelo de Kaena.
Seus olhos desfocaram de seu objeto de estudo quando um estrondo se fez bem ao seu lado. Ela olhou para Eleanor, assustada, com os ombros elevados. A mais velha se apoiava sobre o balcão, visivelmente atordoada com algo, mas não olhava para nada específico. Com uma das mãos, amaciava as têmporas, enquanto parecia fazer esforço para manter os olhos abertos e funcionando da forma devida.
Sienna franziu o cenho e se aproximou rapidamente da mulher.
— O que houve? — Ela encostou em seu ombro com a ponta dos dedos.
Eleanor respirou fundo. Ela demorou um tempo para responder, como se pensasse no que pensar.
— Nada — disse, mas as palavras pareceram sair por impulso, apenas. Um sorriso se fez em seu rosto, em meio ao olhar perdido. — Pode ser o calor do dia. Apenas isso.
A jovem assentiu e observou Eleanor voltar a lavar o prato que tinha em mãos, desconfiada.
— Não acha melhor que eu... — Sienna hesitou quando a mulher voltou a olhar para ela. — Não acha melhor que eu continue a lavar?
— Está tudo bem. — Eleanor franziu o rosto, com uma risadinha sutil invadindo seu olhar dolorido. E não precisou dizer nada para que a jovem compreendesse o que ela pensava. Qualquer um poderia fazer melhor do que uma mulher que nunca tirou as luvas para nada. E havia um pouco de verdade nesse pensamento.
Sienna assentiu com a cabeça, mordendo o lábio inferior com os olhos baixos.
Ela ficou quieta, observando os pratos de barro sendo molhados e esfregados por mãos finas, mas a verdade era que desejava apenas ignorar a completa falta de intimidade que tinha com a mulher à sua frente e dizer que ela não precisava esconder o que ocorria. Que Sienna — ou Gabrielle — era alguém de confiança, e que Eleanor não precisava temer coisa alguma. Seja lá qual fosse seu medo.
Mas ela não fez isso. Na verdade, se Eleanor possuía motivos para esconder algo, não cabia a uma completa estranha chegar na sua frente e tentar desgrudar o que carregava de si. Ela se contentou com o silêncio das águas se movendo sobre a bacia.
De repente, sobre o ambiente inquieto, uma nova explosão tomou forma:
— Já chega, Margareth! — a voz irritadiça planou pelos ares do pequeno cubículo e chegou aos ouvidos das duas mulheres, que largaram suas tarefas para olhar para trás. — Isso não vai acontecer.
Enrico estava de pé, encarando a irmã com o rosto enrugado. Sua cadeira estava arrastada para trás, o que significava que ele havia levantado em um só impulso de fúria. Margareth deveria ter dito algo sério — mais do que os sussurros que eles trocaram por tanto tempo.
Sienna desceu sua visão assustada dele para a morena. Marga encarava o irmão com os olhos azuis arregalados. Ela estava com a boca aberta e travada, como se estivesse no meio de sua fala quando o mais velho veio a explodir. Mas também havia estranhamento ali, o que, talvez, significasse que nunca havia visto o irmão tão irado quanto naquele momento. Eleanor também olhava para ele dessa forma, mas garantia uma inclinação de pena em sua sobrancelha.
Com todos os rostos da casa voltados para si, Enrico se apoderou de uma certa vergonha e forçou a dissipar sua raiva, de pouco em pouco. Ele voltou para sua discussão com a irmã, sentando-se sobre a cadeira que havia empurrado para trás há poucos segundos, e respirou fundo, massageando a testa.
Sienna voltou a checar Eleanor, para saber se ela tomaria ação em meio ao que havia acontecido. Mas a mulher fitava o chão, concentrada em algo que ocorria apenas dentro de seus próprios pensamentos.
Quando todos pareceram reencontrar a constância que estava sobre a casa, a ruiva deixou de encarar as pessoas e passou a encarar a paisagem vista da única janela que estava aberta no local. Elas não haviam percebido esse detalhe ao chegar, mas a vista era voltada justamente para o resto do vilarejo, que se estendia morro abaixo.
Fora aquilo que já havia visto em sua chegada, havia muitas pessoas concentradas pelas ruas, correndo de lá para cá. Isso fez Sienna pensar sobre quantas vezes os moradores daquele vilarejo olhavam pela janela de suas casas e encontravam nada mais do que o mesmo de sempre. O tempo seco, as ruas bagunçadas, as poucas plantações sendo arrancadas de forma desesperada, o sol queimando os pés de quem pisava no chão descalço. Parecia violento crescer assim.
Mas isso não parecia ser escolha deles. Se fosse, não achava que haveria alguém vivendo em uma situação como a que via.
De repente, se sentiu culpada por nunca ter pensando sobre o que acontecia do lado de fora das paredes do castelo de Kaena. Sobre as pessoas que não tinham tempo para ficar de luto por suas dores, pois tinham que garantir que sobreviveriam até o fim do dia. Ela era privilegiada por, ao menos, ter a chance de sentir isso.
— Está bem, querida? — Eleanor indagou, sua voz doce ressoando atrás de si, indicando que ela havia acordado de seus pensamentos.
— Estou, sim — Sienna assentiu, aérea. — Estava apenas observando as...
De repente, ela parou, e pensou sobre o que ia dizer. E seus olhos se arregalaram e, depois, se fecharam de novo, conscientes de sua própria lentidão para realizar o que estava fazendo. Estava observando as pessoas.
Ela se lembrou do que a mulher havia dito algumas horas mais cedo.
— Eleanor — chamou lentamente, sem desviar a atenção da janela. — Por que é que o vilarejo está cheio?
A morena franziu o cenho, consternada.
— O que... — Antes de terminar, aproximou-se da mesma visão que Sienna tinha, observando a bagunça que ocorria, no final do morro.
Muitas pessoas corriam, agitadas, mas o centro da situação acontecia ao virar de uma esquina, atrás das casas, de forma que elas não podiam ver o que havia ali. Mas foi o suficiente para saber que a rua não estava apenas movimentava. Alguma confusão acontecia.
— Enrico — chamou a mulher, em imediato estado de alerta.
O rapaz levantou os olhos escuros para a esposa, que apontava para a janela com o rosto fúnebre.
Ele não precisou fazer perguntas para saber o que ela estava indicando. Levantou-se de sua cadeira no mesmo instante, dando passos pesados até o local da casa apontado.
Sienna apenas o viu de costas, de forma que não pôde ver sua reação ao observar a confusão lá fora. Mas, quando ele se virou de volta para dentro de casa, toda a expressão de seu corpo havia mudado. Seus lábios estavam franzidos em uma única linha fina, suas narinas estavam petrificadas e totalmente abertas, as veias de sua testa pareciam prestes a saltar para fora a qualquer momento, e todos os músculos de seu corpo estavam tencionados. Ele parecia pronto para explodir.
Mas tudo o que fez foi respirar fundo e olhar para Eleanor com um semblante inquieto. Eles encararam um ao outro, como se houvesse uma conversa profunda ocorrendo entre os dois. Depois de alguns segundos, ele fez que sim com a cabeça. E Sienna não gostou nada do tom que aquilo teve.
— Preciso ver o que está acontecendo — a voz do homem saiu fantasmagórica, pois sua boca mal havia se mexido. Era como se o próprio espírito de Enrico estivesse falando por ele.
— O que está acontecendo? — Margareth se levantou, encarando os três com um ponto de interrogação entre suas sobrancelhas.
— Confusão. — Enrico não olhou para ela. Estava petrificado, encarando o chão de sua casa e mordendo a própria unha.
Ficou assim por cerca de dez segundos. E, quando esse estado de paralisia se acabou, uma onda de eletricidade tomou conta de seu corpo. Ele respirou fundo, olhando para todos os lados e para todas as mulheres da casa.
— Preciso ir — falou, caminhando com pressa e certeza até a porta.
Antes de tudo, parou, como se sua própria mente houvesse gritado "espere!" para si mesmo.
Ele encarou Eleanor por um tempo. Um tempo tão longo que tornou a atmosfera daquele lugar vergonhosa. A mulher forçou um sorriso para ele, apesar de todo o resto de seu rosto estar tencionado, e ele se aproximou dela. Tocou em suas bochechas e a olhou um pouco mais, antes de beijar sua testa.
— Não precisa ir... — a mulher tentou murmurar.
— Se cuide — sussurrou, no tom mais doce que poderia ter saído da boca de alguém como Enrico.
Ele a soltou no mesmo instante, como se tocá-la um pouco mais fosse queimar seus dedos, e puxou Margareth para um abraço. A garota não contava com o puxão, pois ela continuava olhando para ele de braços cruzados, assustada com a intensa emotividade do irmão, mesmo que encaixada nele.
— Enrico... — murmurou ela. — O que está acontecendo?
Enquanto falava, um sorriso tentou sair de seus lábios, mas a face do rapaz à sua frente era irredutível. Nem Margareth seria capaz de mudar isso.
— Me desculpe por ter gritado com você. — Ele a olhou com ternura. — Merece a chance de ser feliz. Mas eu não posso fazer o que quer. Não onde pertenço.
Sienna franziu o cenho — talvez mais do que Marga havia feito — para a explicação do rapaz. Aquele assunto era algo que ela tentaria arrancar da morena, mais tarde. Mas, agora, tudo o que conseguia pensar era sobre o que estava acontecendo.
Enrico não esperou mais tempo, principalmente para evitar que mais perguntas fossem feitas.
— Tenho que ir — definiu. E abriu a porta com força o suficiente para quase derrubá-la e saiu dali com furor nos olhos.
Margareth encarou a porta vazia em completo silêncio, boquiaberta. Eleanor abraçava a própria barriga, com os olhos preocupados. Sienna olhou para o horizonte do campo à frente da casa, encoberta de curiosidade.
— O que foi isso? — Marga indagou para a cunhada. Ela não pareceu ter a intenção de emitir um tom acusatório na pergunta, mas foi exatamente assim que soou. Como se estivessem armando algo contra ela.
— Eu... — Eleanor umedeceu os lábios. Ela também parecia em choque com a situação. — Eu não sei. Devemos esperar.
A mais nova juntou as sobrancelhas no meio da testa, desacreditada.
— Não — exclamou ela, como se fosse óbvio. — Eleanor, não. Não viu aquilo? Devemos ir atrás dele.
— É perigoso, Marga — insistiu a mais velha. Seu tom ainda era calmo, apesar da preocupação que tomava conta de si.
— E não é perigoso para Enrico? — A morena apontou para a porta, como se o irmão ainda estivesse bem ali. — Já perdi minha família uma vez, Eleanor. Não vou perdê-la mais uma. Seja lá para o que isso for.
Assim que terminou de falar, ela marchou para fora da casa, de passos decididos.
— Margareth! — A mulher gritou, mas seu mal-estar a impedia de correr atrás da garota. Ela apoiou-se contra a parede, com a respiração pesada. — Isso é terrível — grunhiu para a ruiva. — Ela não pode ir para lá!
Sienna encarou a figura da amiga desaparecer pelos campos verdes, de pouco em pouco. Ela pensou que realmente. Era terrível. Mas ela sabia de onde aquela atitude terrível vinha. Era o medo de perder alguém que amava.
— Não — disse a ruiva, de repente. — Ela está certa. Parece perigoso.
Eleanor a olhou com tristeza e incompreensão por alguns segundos. Estava prestes a dizer algo, algo muito importante, mas Sienna a interrompeu:
— Vou atrás dela.
Ela não deveria ter interrompido. Deveria ter esperado que Eleanor contasse o que tinha para contar.
...
— Margareth! — Sienna gritou.
Estava a alguns metros de sua dama e corria o máximo que podia em meio à descida instável do morro. Mas a garota ainda parecia inalcançável.
— Margareth! Espere!
A garota não esperou. Continuou andando em seu caminho, decidida como nunca.
— O que foi? — perguntou Allboire, com a voz amarga, pisando forte na grama.
A multidão ainda estava longe demais para ser escutada, mas era possível ver parte dela de onde estavam.
— Espere um pouco — insistiu a ruiva, já sem ar. — O que está acontecendo?
— Eu não sei. — Margareth respirou fundo. Pela primeira vez, deu-se permissão para olhar para trás e desacelerar o passo. Isso foi o suficiente para que Sienna a alcançasse. Mas continuava andando em direção à confusão. — Um ataque rebelde, uma levada dos homens do rei, uma confusão... Pode ser qualquer coisa!
— Tem certeza de que quer ir até lá? — A ruiva tentava acompanhar seus passos, com dificuldade para se equilibrar em um terreno tão íngreme quanto o que estava.
Margareth fez que sim.
— Não tente me impedir.
— Eu não quero te impedir. — Sienna balançou a cabeça. — Mas... por que Enrico foi até lá? Se é tão perigoso?
— Porque ele acredita ser o salvador de todas as pessoas do mundo — a morena respondeu, com um toque de irritação em sua voz. — Age como se houvesse prometido a Deus que arriscaria sua vida todos os dias por um bando de seres humanos que roubariam sua carne, se pudessem.
Ela ficou quieta, respirando fundo. Parecia amassar o gramado verde escuro com sua raiva internalizada. Sienna nunca havia visto a garota tão irritada com algo, ou alguém, antes.
— Eu não via problemas nisso — continuou a falar. —Mas, às vezes, apenas quero que seja meu irmão. E só! Mas, agora, abriu mão disso, também.
A princesa franziu o cenho, confusa.
— Como assim?
Allboire demorou mais do que o normal para responder, dessa vez. Ela parecia apenas focada em seu caminho, mas tinha noção daquilo que estava saindo de sua boca. Era pura mágoa.
— Ele não aceitou ir para Kaena comigo — murmurou, rápido feito uma águia a cortar o céu. — Foi por isso que explodiu, mais cedo. Porque eu insisti demais. Fiz de tudo para parecer uma boa ideia. Mas ele está preso a esse lugar tenebroso.
A expressão preocupada de Sienna amoleceu um pouco, ao ouvir a garota dizer aquilo.
— Deseja voltar para Kaena? — ela indagou, como se não houvesse escutado a confirmação da pergunta há poucos segundos.
Margareth fez que sim, novamente.
— E ele não aceitou — repetiu, incrédula.
Sienna não foi capaz de controlar o brilho de esperança que se encarregou de seus olhos. Ela pareceu correr mais rápido dessa vez, apenas para acompanhar Margareth da forma certa.
— Por quê?
— Foi como disse. — Allboire deu de ombros. — Enrico acredita que deve salvar a todos.
A ruiva fez uma careta.
— Não! Digo, por que deseja ficar em Kaena?
Margareth enrubesceu mais ainda a face, encarando o chão à sua frente.
— Está preocupada com isso? — Ela balançou a cabeça, parando de andar aos poucos. — Precisamos encontrar Enrico nessa bagunça.
Sienna mordeu os lábios e olhou para onde a mais jovem apontava. Ela não havia percebido que já estavam a algumas casas de distância da confusão que se fazia na cidade. As vozes dos habitantes começava a ecoar por aqueles cantos vazios e tanto Marga quanto Sienna tiveram a certeza de que nenhuma das vozes parecia tranquila ou feliz.
— Estamos perto. —A morena não esperou nem mais um segundo para começar a correr, esquecendo-se de vez do assunto conversado.
— Margareth, espere! — Sienna foi logo atrás, segurando a barra de seu vestido com as mãos suadas.
Em poucos segundos, elas já estavam no começo da multidão que se aglomerava ao redor de um círculo inatingível. Era como se estivessem em uma peça de teatro.
Margareth se pôs nas pontas dos pés.
— Consegue ver alguma coisa? — indagou, como se já soubesse que a ruiva estava logo atrás de si.
Era verdade que Bolgart era maior do que Allboire. Mas nem levantando-se com os pés, como a menor fez, ela foi capaz de enxergar o motivo daquele espetáculo no vilarejo. Mesmo que grande parte das pessoas houvesse fugido dali, ainda havia restado um bom número para amontoar pelas ruas e dificultar a passagem.
— É melhor esperarmos isso esvaziar. — Sienna tocou no braço de Marga, como se isso pudesse impedi-la de se enfiar no meio das pessoas. Não impediu.
— Quero ver o que está acontecendo — ela disse. E, então, partiu para dentro da bola gigantesca de seres vivos à sua frente.
Sienna franziu o cenho, desconfortável com a ideia de se grudar em tantas pessoas ao mesmo tempo. Mas Margareth já estava a um metro e meio de si, quando parou de pensar, e ela decidiu que seria melhor apenas não perdê-la de vista. Então, foi logo atrás dos passos da morena.
As pessoas não pareciam se incomodar com os empurrões que as garotas davam para poder passar. Na verdade, estavam preocupadas demais com a visão que estava lá na frente para dar o mínimo de atenção a quem estava ao seu lado.
— Conhece algum deles? — Sienna ouviu uma mulher indagar ao seu marido, conforme traçava seu caminho.
— Isso é uma tragédia! — uma outra moradora explodiu em lágrimas, sozinha na multidão.
A princesa respirou fundo, ficando tonta com a concentração de tantas pessoas. Elas já estavam quase na frente e ainda não haviam encontrado Enrico. Ele não poderia estar longe dali. Havia saído com um pouco de antecedência, apenas.
Então, quando chegaram ao meio da multidão, onde ocorria o então espetáculo, elas puderam descansar um pouco. Havia guardas ao redor do círculo, o que impedia que os moradores ultrapassassem a área.
Homens do rei, pensou Sienna. Havia achado a colocação justa.
Ela olhou para o seu lado. Observou Margareth procurar pelo irmão na multidão com o olhar. Mas estava tão perdida quanto todos os outros, ali. E Enrico não estava lá. Ou, ao menos, camuflava-se bem demais para ser encontrado.
Foi aí que Sienna percebeu que, talvez, devesse deixar a tarefa de procura apenas para a amiga e focar seus olhos no espetáculo que ocorria à frente de todos.
Lá no meio, havia uma fila formada por cinco camponeses adultos, três homens e duas mulheres. Ao lado deles, dois guardas cuidavam para mantê-los na linha. Havia sacos amarrados em suas cabeças, o que os impedia de observar a humilhação pela qual passavam, mas também impedia os de fora de olhar para seus rostos. Uma bela desumanização.
De repente, em alguns segundos de luta falha, os guardas os forçaram a se abaixar sobre a estrutura de madeira lisa que esperava à frente de cada um, apoiando suas cabeças à força. Cada um, com sacos velhos envolvendo seu crânio e guardas mantendo-os ali. Foi quando Sienna percebeu o que estava acontecendo. Mas, então, já era tarde demais para alguém fazer qualquer coisa.
Era o dia dos marcados para morrer.
— Margareth... — Sienna tentou chamar, mas sua voz saiu muito mais baixa do que desejava. — Margareth. — Ela empurrou o ombro da outra com mais força e desespero do que intencionava fazer.
— O que foi? — A menina se virou, com raiva por sua busca falha.
Sienna abriu a boca para falar, mas não conseguiu verbalizar nada. Ela levantou o dedo trêmulo para o cenário que estava à frente das duas, o único lugar em que a morena ainda não havia procurado.
Quando ela visualizou o que a ruiva queria que visualizasse, sua garganta pareceu se fechar por completo.
— Não... — um som que poderia ser a voz da mais nova arranhou suas cordas vocais. Ela engoliu em seco, prestes a pular por cima dos guardas que impediam a passagem. — Não, não, não, não!
Sienna observava tudo com a boca aberta e o rosto em choque. Não conseguia se mover. O cenário e os acontecimentos ao seu redor pareciam correr de forma lenta e atrasada. Os sons da voz de Margareth gritando, bem ao seu lado, diminuíram ao ponto de se tonarem apenas pequenos ecos redundantes em sua cabeça. Não havia nada ao redor além do espetáculo à sua frente e a existência pura do eco da voz de Marga.
Ela observou mais guerreiros surgirem de algum canto em branco. Cada um segurando suas próprias foices pontiagudas com ambas as mãos. Eles se colocaram em seus devidos lugares. Cinco foices foram apontadas para cima, refletindo a luz do sol quente em suas lâminas afiadas.
Sienna piscou algumas vezes, em choque com o que aquilo precedia. Era como se pudesse ler o futuro e já sentisse, em seus ossos, as vibrações destruidoras do que estava por vir. Dos dias que estavam por vir.
Quando cogitou agir de alguma forma, tudo pareceu ocorrer mais rápido do que deveria.
Ela balançou a cabeça, antes de encarar pela última vez o quinto membro da fila. Um homem de pele escura, regata branca, pescoço suado e a misteriosa marca de uma queimadura cicatrizada no braço esquerdo.
A pulsação da ruiva pareceu contar seus últimos segundos de aparição.
3...
2...
1...
E pronto. Os sons voltaram ao normal. A vida voltou a correr com a velocidade adequada. As pessoas ao redor gritavam. Margareth, especialmente. Margareth gritava como nunca.
Lágrimas involuntárias saíram dos olhos traumatizados de Sienna. Aquilo havia mudado tudo.
O corpo decapitado de Enrico pendia sobre a madeira sangrenta à sua frente.
Deixe seu voto em homenagem à memória de Enrico. <3
Olá, seres humanos! Tudo bom com vocês? Espero que sim...
Hoje tem papinho mais sério.
Gostaria de pedir desculpas pela demora gigantesca para postar esse capítulo. A verdade é que as coisas não estiveram nada bem por um tempo. Tive que trabalhar mais do que o normal, fazer um montão de trabalhos pra facul e, ainda por cima, terminei um namoro de longa data no começo do mês. Acho que, com tudo isso, já dá pra perceber que eu não estava muito disposta para escrever sobre romances. Então, demorou um pouco para eu voltar a ter força de vontade para essas coisas.
O que importa é que, agora, está tudo voltando aos trilhos (eu acho)! Gostaria de agradecer pela história estar chegando aos 9k de leituras e 2k de votos! E, claro, por vocês comentarem com tanto carinho e tanta atenção nos meus capítulos. Isso me dá muita força de vontade.
Muito obrigada, mesmo!
Beijinhos e até a próxima. <3
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top