28: uma dupla de donzelas que se queimam no sol
Aviso de possíveis gatilhos: assédio sexual.
Aquele era o dia. Margareth finalmente veria Enrico.
Isso era tudo o que estava em sua cabeça, desde que havia saído da cama. Ela mal havia se importado, quando acordou e percebeu que Sienna não estava ali. Pensou que, provavelmente, havia ido à reunião que mencionara no dia passado. O que realmente importava para ela era que pontadas de aperto atacavam seu coração, porque Enrico estava a algumas horas de distância de si.
Ela fez questão de que todas as suas ações naquele dia se relacionassem a ele, de alguma forma.
Encarou seu reflexo no espelho com incerteza, olhando para o vestido de pano amarelo liso, que se assemelhava mais a um único pedaço de fita grossa envolvendo todo o seu corpo. Era o mais simples que pôde achar e, ainda assim, demais para ir ao vilarejo. Ela não queria que sua família pensasse que, de alguma forma, a nobreza a mudou. Mesmo que houvesse mudado, ela não desejava que as outras pessoas tivessem ciência disso.
Um suspiro se estendeu em sua boca por alguns segundos, até que tomasse a coragem para carregar suas duas malas por conta própria e abrir a porta do quarto.
Antes de sair, ela olhou uma última vez para a cama em que havia dormido, abraçada com Sienna. Ela quis, por um segundo, que aquele momento ainda não houvesse acabado. Que elas ainda estivessem ali, deitadas, em paz. Com a luz da janela batendo no rosto da ruiva e refletindo em suas pequenas sardas, transformando-as em um universo de estrelas douradas nas bochechas pálidas da garota.
Depois fechou a porta, sem pensar duas vezes.
Ela conseguiu não se perder pelos corredores, dessa vez. Mesmo que se tratasse de um lugar totalmente novo para si. Depois de algum tempo em Kaena, acabou percebendo que a estrutura interna era sempre construída de uma forma estratégica. Ela apenas precisava escolher atravessar os corredores que pareciam mais atrativos e, em poucos minutos, encontraria a saída principal daquele lugar.
Não foi exatamente o que aconteceu. Ao menos, não de primeira tentativa. Margareth teve de se esforçar para não acabar caindo nas masmorras, sem querer. Talvez, ela não fosse tão boa assim em identificar caminhos.
Após descer algumas escadas lascadas e virar a primeira esquina que encontrou à sua frente, adentrou o primeiro corredor que lhe parecia familiar. Lembrava-se do caminho estreito e da abertura enorme que havia em um dos lados, o que fazia o local se assemelhar mais a uma varanda extensa do que a um corredor, de fato. Mas a visão dali era linda. Ela havia passado por ali no dia anterior, quando subiu com Sienna ao quarto.
Lembrava-se disso porque, quando se deparou com a visão lá fora, bem longe dos muros da passagem, pensou se não conseguiria ver seu vilarejo dali. Mas aquilo era impossível. Ainda assim, foi o que tentou fazer, quando passou novamente pela manhã.
Na travessia entre a esquina de entrada e de saída, havia um guerreiro parado frente a uma única porta de madeira. Ele usava o uniforme típico de Irbena, com a insígnia vermelha bordada no canto direito de seu tórax malhado. Seus ombros largos estavam ancorados sobre a parede atrás de si e ele cruzava os dois braços, como se estivesse ali apenas por estar.
Sua presença não parecia gentil. É claro que, para Margareth, não havia guerreiro algum que possuísse uma energia gentil. Por pensar nisso, que sua mente fazia tudo parecer pior do que era, ela continuou a caminhar pelo corredor.
Mas a passagem era justa demais. Era impossível que ela passasse por ele sem chamar sua atenção, sem ser notada. Aliás, os olhos verdes e pequenos caíram sobre ela, assim que ele pôde ouvir o barulho de seus passos desconcertados. Ela continuou.
Ao chegar perto o suficiente para estar de frente para o rosto torto do desconhecido, o cheiro de cerveja barata flutuou até suas narinas. Provavelmente, estava de folga e havia acabado de voltar de alguma comemoração com os colegas.
Seus olhos correram por ela, de cima abaixo, como se estivesse avaliando o último aperitivo da festa.
— Bom dia, lindeza... — disse ele. Sibilou a última palavra em um tom tão insinuativo que pareceu ter tirado sua roupa naquele mesmo momento.
Havia algo sobre ele, sobre sua voz, que fez o pescoço de Margareth arrepiar. Ela não disse nada. Apenas continuou a olhar para frente, como se aquilo não fosse com ela. Mas a verdade é que estava envergonhada. E que não queria ser olhada daquela forma.
De repente, assim que havia acabado de passar pelo homem, a porta ao lado dele se abriu. Ela não viu quem havia saído de lá.
— Por Deus, Rick! — esbravejou um outro indivíduo de voz grossa e alta. — Só sabe vagabundear por aí o dia inteiro?
— Estava apenas admirando a manhã — disse ele, com um sorriso cínico no rosto. Marga sentiu que estava sendo observada.
— Vamos, Rickus — insistiu o homem da voz grossa. Ele ficou quieto por alguns segundos, como se estivesse abrindo espaço para dar uma risada gostosa da situação. — Seu merdinha.
— Está bem, está bem — gemeu ele. —Um dia, você ainda me agradecerá por meu trabalho duro, Kur.
Os homens saíram de lá - para a felicidade de Margareth, pelo lado oposto ao seu - rindo. Mas deixaram para ela um arrepio estranho por todo o seu corpo. Como se o silêncio que deixaram para o corredor fosse, de alguma forma, perigoso.
Margareth apenas engoliu em seco e apertou o passo. Ela saiu dali com a sensação de que havia deixado algo para trás.
Chegou na carruagem com o coração pesado. Era como se, de repente, seu corpo houvesse se tornado uma grande e desengonçada rocha.
Ela se firmou no chão e procurou por Sienna pelo local, passando os olhos azuis por cada canto da saída movimentada. Ela ainda não estava lá. Mas muitas outras pessoas estavam. Havia outras carruagens, além da sua, espalhadas pelo lugar. Mas estas eram antigas, com poeiras nas dobradiças, e menos chamativas do que a da princesa.
O cavaleiro que as levou em viagem no dia anterior estava em frente à porta de sua carruagem. Parecia preferir esperar pela presença de uma ruiva alta e pálida, mas suas feições voltadas em direção a Margareth já mostravam que ele se lembrava dela.
Enquanto observava ao seu redor, parada como um poste, Marga começou a pensar sobre os locais de destino dessas outras carruagens. Sendo as encostas do Reino Gálago redondezas tão perigosas, quem é que gostaria de deixar o castelo em um dia como aquele? Aqueles residentes deveriam ter motivos quase tão importantes quanto os de Marga, para sair dali.
— Senhorita — a voz cortou seus pensamentos ao se aproximar de seus ouvidos.
Margareth elevou seu olhar para o homem. Era quem, há pouco, guardava a porta da carruagem à sua frente. Ele mantinha a cabeça baixa, mas a olhava de soslaio, mantendo uma certa distância.
— Sim?
— A carruagem está pronta - afirmou, sem tom de voz algum. Falava como se não houvesse alma, e ela não gostou tanto daquilo. Pensou se ele não teria falado de forma diferente, mais real, se Margareth não se parecesse tanto com uma nobre. - Gostaria de partir?
— Ainda não. — Ela piscou algumas vezes, formulando um sorriso de última hora. — Estou esperando pela princesa. Obrigada.
Ele apenas assentiu com a cabeça, sem dizer mais nada, e ela caminhou até a porta da carruagem. Decidiu ficar lá dentro e deixar o mundo lá fora para trás. Não sabia por que tudo parecia lembrá-la de que havia milhares de possibilidades ruins para o seu dia. Até mesmo o sol degradante, que brilhava sem nuvem alguma ao seu redor, trazia a ela a sensação de que, em algum momento, o clima se tornaria quente demais e tudo ao seu redor derreteria ardentemente, antes que ela pudesse chegar ao fim da estrada.
Lá dentro, o tempo passou feito pequenos dentes-de-leão descendo pelo ar. Margareth sentiu como se estivesse com a cabeça dentro de um sonho, porque, a menos que o mundo estivesse, de fato, distante de si, tudo ao seu redor parecia desconexo.
Ela não conseguia parar de pensar que estava indo embora para sempre. E agora, não conseguia parar de pensar nos homens do corredor e na péssima energia que eles possuíam. Ela podia sentir seu coração palpitando forte no peito e pulsando na ponta do seu dedo indicador. Este parecia gritar, feito uma criança, para que saísse agora mesmo daquela carruagem, ou ele pararia de bater.
Saia da carruagem e resolva esse último problema. Ande logo, sua covarde.
Ela quase deu ouvidos. Mas os passos apressados de Sienna, lá fora, ofuscaram os pedidos dos batimentos de seu peito e ela os esqueceu.
Margareth ouviu a princesa correr pelo chão de pedra até onde estava sua carruagem. Era estranho, como havia se acostumado tanto com sua presença que era capaz de diferenciar o som de seu andar de todos os outros. Ela respirou fundo e se inclinou para olhar pela porta.
A ruiva surgiu de repente, segurando seu vestido amarelo liso e simples nas mãos. Pelo jeito, havia pensado o mesmo que a jovem, quando decidiu se vestir para ir ao vilarejo. Elas estavam vestidas exatamente da mesma maneira.
— Também escolheu amarelo? — foi a primeira coisa que disse, incrédula, ao observar a figura da morena à sua frente.
— Por que está usando amarelo? — Margareth franziu o cenho. — Odeia essa cor.
Era verdade. Sienna havia dito isso em uma noite de setembro, durante seu banho.
— Não odeio, não. — A ruiva tomou um semblante ofendido. Continuava de pé e inclinada sob a porta, como se houvesse se esquecido de que deveria se sentar. — Apenas não penso que combina comigo.
Marga arqueou uma sobrancelha, evidenciando seus grandes olhos azuis para a princesa.
— Então, por que escolheu este vestido para usar?
Sienna a encarou e abriu a boca, como se fosse dizer algo para se explicar. Mas logo a fechou e desviou o olhar, sentando-se ao lado da garota.
— Isto não importa — resmungou, emburrada.
Margareth notou o tom envergonhado de sua voz e suas mãos que não paravam quietas sobre o seu colo. Ela impediu um sorriso de sair. Sienna parecia se importar com a imagem que teriam de si.
— De qualquer maneira... — A princesa respirou fundo, ignorando a cena de antes. — Peço desculpas por ter de esperar tanto. A reunião com a Coroa de Irbena foi... longa e intensa demais.
— Tanto quanto as de Kaena?
Margareth observou Sienna soltar uma pequena risada, no mesmo momento.
— Nada é tão intenso quanto as de Kaena - afirmou, ainda sorrindo. — Tive a oportunidade de falar, dessa vez. E o assunto não era apenas sobre meu casamento.
A morena recolocou-se sobre o banco, surpresa. Rainha Anna ainda não havia desistido de arranjar um príncipe para sua filha. Isso era inacreditável.
— E sobre o que era? — Ela inclinou seu rosto para perto da ruiva, curiosa.
— O que?
— A reunião — explicou Marga. — Sobre o que era?
Sienna a olhou no mesmo segundo. Sua face parecia incerta, como se estivesse insegura sobre revelar o que se propunha em sua mente ou não. Ficou assim, em silêncio, por alguns segundos.
De repente, ela mordeu o lábio e abriu a boca, relutante.
— Não deve contar a ninguém — murmurou.
Ela estava com o rosto tão próximo ao de Marga quanto na noite em Pat Nam. Dessa vez, não havia tensão alguma entre as duas.
A morena fez que sim para a fala da jovem. Afinal de contas, para quem ela contaria algo assim? Margareth não possuía nenhum contato importante, além da princesa de Kaena.
— Estamos discutindo um financiamento para investigar e acabar com antipacifistas — apresentou eloquentemente, com a voz em um tom ainda mais baixo do que antes. — O projeto ainda é recente. Não temos muitos planos concretos.
Margareth piscou algumas vezes, de cenho franzido. Ela recostou-se em seu banco lentamente, pensativa com o que acabava de ouvir.
— O que foi? — Sienna notou seu desconforto no mesmo momento.
Marga não sabia bem qual era o seu desconforto, mas sabia que havia algo que a deixava desconfortável.
De qualquer maneira, ela achou bom que fizessem aquilo. Que antipacifistas fossem erradicados do país. Apenas aqueles que já precisaram fugir de suas casas durante a noite, porque foram atacados e perseguidos, sabiam que era necessário que isso terminasse. Que o terrorismo se findasse no país.
Era uma boa iniciativa a que a Coroa de Irbena tinha. O problema era que não parecia genuína.
— Nada — a morena falou, engolindo suas preocupações em seco. — Por que decidiu fazer parte disso? Imagino que ganhe algo em troca.
A princesa apenas bufou, entediada.
— Minha mãe diz que fará bem para nossa reputação — explicou, encarando o chão externo pela janela. — Desde que... expulsei príncipe Charles de Kaena, as conversas sobre a família real não têm sido tão positivas. E a rainha deseja que eu me case. O que significa que precisarei recuperar a reputação que destruí e... Bom...
— Ajudar o pobre país de Irbena a sair de sua situação miserável seria a oportunidade perfeita para isso — completou Margareth. O gosto amargo de estar certa sobre sua intuição evidente em sua voz.
Não podia negar ou esconder sua decepção. Não esperava muito do rei e da rainha de Irbena, e tampouco de Anna Bolgart. Mas desejava que Sienna se preocupasse, de verdade, com o que acontecia ali.
— Exato — concordou a ruiva, com o tom de voz acanhado.
Margareth franziu o lábio, olhando para o seu lado da janela e tentando não se apropriar da ofensa que ousava surgir dentro de si.
Depois de alguns segundos, Sienna tocou em seu ombro, fazendo-a levantar o olhar para seu rosto salpicado.
— Mas eu me importo — acrescentou, de repente, como se fosse um fato importante a dizer. Marga não disse nada, então ela continuou: — Até me vesti com este amarelo terrível. Por sua causa.
Os olhos azuis de Margareth ficaram paralisados nos castanhos de Sienna por alguns segundos, como se indecisos sobre aceitar a brincadeira ou não. Era estranho que, de repente, à luz do dia, toda a tensão que existia entre as duas se dissipava e o que restava era uma sensação boa, leve, de amizade. Ela não era capaz de definir o momento em que isso começou a ocorrer, mas apenas percebeu que se sentia assim naquele segundo em que seu olhar pendia sobre o dela.
— Eu disse que você odiava amarelo.
Marga se permitiu sorrir, porque parecia o certo a se fazer. Teria dito alguma coisa a mais, continuado com a brincadeira da mais velha, mas a carruagem começou a ser puxada pelos cavalos e ela preferiu continuar em silêncio.
Era boa a sensação. Quando Sienna estava ali para compartilhar.
...
Sienna proibiu Margareth de abrir as cortinas da carruagem até que chegassem aonde deviam. Era uma forma de evitar que a ansiedade tomasse conta da mais nova. E, apesar de não saber se não ter noção de onde elas estavam foi melhor para si, a morena gostou de passar as horas que passou com Sienna ao seu lado.
Pela primeira vez, não houve brigas, nem mágoas, nem desentendimentos, por menores que fossem. Marga contou as histórias dos poucos livros que se lembrava de ter lido, uma por uma, porque Sienna insistiu para que ela contasse todas. A ruiva ouvia sua voz em silêncio, fazendo cortes na explicação da morena, apenas quando parecia ter a imensa necessidade disso.
Foi um momento bom para as duas. Era como se estarem isoladas naquele cubículo fechado e em meio ao nada fosse a solução de todos os seus problemas. Como se, na verdade, o motivo para terem tantos desentendimentos no dia a dia não fosse elas, especificamente, mas o mundo exterior às duas. Quando este não tocava em nenhuma, tudo parecia bem.
E tudo pareceu bem durante aquelas horas.
Até que a carruagem brecou, de repente, parando em uma inclinação nem um pouco sutil para as que se sentavam ali.
— O que foi isto? — Sienna zombou, ainda com o tom brincalhão de quem estava rindo de alguma piada contada há alguns segundos. — Caímos em algum buraco?
Margareth riu do comentário, mas voltou à sua feição séria rapidamente.
— Acho que chegamos — disse.
A fala havia saído rápido de sua boca, mas havia um pouco de tudo em sua voz: medo, ternura, tristeza e ansiedade. O tremular no som que saiu de si evidenciou isso.
Sienna percebeu e respirou fundo, também adotando um olhar sério, conforme o ar se esvaía de si. Ela encarou o rosto incerto de Margareth por alguns segundos. Parecia não saber o que dizer ou fazer.
Em uma ação rápida, retirou uma mecha ruiva de sua testa com os dedos finos, desviando o olhar para o chão.
Era possível ouvir sons ao fundo. O cavaleiro descia da carruagem e se aproximava da porta, lembrando às duas que possuíam, talvez, menos do que 20 segundos para dizer o que queriam dizer. Se é que queriam.
— Está pronta? — disse a princesa, de repente. Ela voltou seu olhar para a mais nova. Parecia ainda mais nervosa.
Marga demorou um pouco para responder, balançando a cabeça de forma incessante.
— Não sei — disse. E, como se houvesse pensado em algo, de repente, ela urgentemente colocou sua mão sobre a de Sienna. — Virá comigo. Não virá?
— É claro. — A ruiva ergueu as sobrancelhas. — Não se livrará de mim tão cedo.
Allboire sorriu, mas seus olhos estavam sérios. Depois de alguns segundos, ela respirou fundo e desfez o sorriso.
— Então, estou pronta — disse, porque notou que os passos do homem estavam chegando perto.
Antes de ver a porta sendo aberta pelo lado de fora, Margareth sentiu Sienna apertar sua mão uma última vez, garantindo que ela ainda estava ali, ao seu lado. Aquele gesto bobo foi o que lhe deu coragem para segui-la para fora da carruagem, quando a passagem se abriu, e enfrentar a luz cegante do dia.
Margareth se incomodou com o ar fresco do lado de dentro se esvaindo do seu corpo e dando espaço para uma atmosfera quente e parada que jazia do lado de fora.
Elas desceram de frente para um extenso e inacabável campo de grama amassada e murcha. Ao longe, montanhas se erguiam como barrigas cheias de homens ricos. O céu estava tão azul quanto o possível e o sol matava ainda mais as criaturas vivas abaixo de si. Aqueles cinco segundos de avaliação já fizeram seu estômago revirar e sua pressão quase cair. Era exatamente como ela se lembrava.
Ao seu lado, Sienna observava a paisagem vazia e sem civilização alguma com uma expressão confusa no rosto. Ainda que estivesse claro que não havia nada à sua frente, ela continuava a procurar pelo vilarejo.
Quando desistiu de sua busca e voltou a fitar o rosto de Margareth, com os olhos pedindo por uma explicação plausível para aquilo, a morena apenas sorriu em silêncio e levou-se até o outro lado da carruagem. A princesa foi logo atrás de si.
Ela deveria ter esperado por isso, assim que percebeu o silêncio fúnebre que jazia ali, mas o vilarejo do Oeste estava muito mais vazio do que antes. Ela conseguia ver algumas poucas pessoas sentadas no pé da porta de suas casas ou secando suas vestimentas, ao longe, e algumas cabeças de gado que pareciam estar mais famintos do que seus donos. Mas, de onde estavam, em meio às árvores cheias que as observavam em silêncio por meio de seus poros e pelos campos em que a grama parecia brigar por espaço com a terra seca, ainda que com um verde ao redor que lutava para parecer esperançoso, não conseguiam ver uma única alma viva por perto.
Margareth apenas continuou olhando para frente, porque não queria saber o que Sienna havia achado daquilo.
Ela respirou fundo e saiu em caminhada, adentrando a única rua à sua disposição com calma, como se precisasse analisar cada centímetro do que havia sido deixado por ela.
Ao seu redor, não havia nada mais do que casas de madeira velha vazias. Pelo menos metade delas haviam sido abandonadas. As que pareciam guardar pessoas do lado de dentro estavam trancadas. Margareth via rostos pelas janelas, escondidos na escuridão de seus próprios cômodos, mas curiosos o suficiente para olhar para fora e encarar a dupla estranha de moças que arrastavam seus vestidos amarelos pelo chão. Ela tentou ignorar todos. A sensação de estar ali não era boa, era como se houvesse voltado ao momento de sua vida em que não podia confiar em mais ninguém além de si mesma. Aquilo parecia tentar oprimi-la.
Foi quando preferiu olhar para o chão. As marcas de pés pela terra em que passava deduravam um passado em que pessoas de verdade andaram por ali. Agora, só havia ela. Se ela ainda se considerasse uma pessoa de verdade.
O silêncio do local era perturbador. Era como se ali morresse todos os sons que ousassem chegar perto. Se não fosse pelos passos da princesa, que se faziam logo atrás de si, ela teria saído correndo dali, em prantos por sabe-se lá o que.
Foi passado algumas voltas, quando o chão abaixo de seus pés pareceu se inclinar lentamente, que Margareth ousou levantar os olhos e observar a subida sem estrada que prostrava à sua frente.
Ficou parada por um tempo, pensativa. Ela observou o gramado verde e alto, que parecia crescer apenas no espaço daquele declive, e ouviu cantos de pássaros que ecoavam lá de cima, bem onde era possível ver o topo das árvores que há tanto tempo ela não visitava.
— Está tudo bem? — perguntou Sienna, de repente. Sua voz estava inofensiva, como se Marga fossecum pedaço de vidro que ela segurava. Mas ainda ofegava pesado, pelo calor do dia que a matava. Margareth fitou seu rosto por alguns segundos. — Para onde está indo?
— Para casa — respondeu. Sua garganta ardia de tão seca. Ela se lembrou de que não havia encostado em uma gota d'água, naquele dia.
Preferiu ficar quieta. Mas avançou no caminho à frente.
Agora, Margareth havia se lembrado do motivo pelo qual a cabana em que morava era a mais protegida do vilarejo. O esforço que custava para subir até ali faria qualquer guerreiro desistir, bem no meio do caminho.
Quando chegou à terra firme, suas pernas pareceram perder todas as forças. E Sienna, ao seu lado, se jogou no chão, fisicamente desolada em seu próprio corpo.
— Estou bem — ela ofegou, respirando fundo para recompor sua pose nobre.
Se não estivesse tão nervosa, Margareth teria rido da situação deplorável da princesa. Mas ela também se sentia como se estivesse prestes a largar a força de suas pernas. Aquilo a fez pensar se realmente ficava tão cansada assim, quando subia e descia esse caminho todos os dias, ou se morar no castelo é que havia a deixado sedentária.
— Pode ir — disse a ruiva, de repente. — Ficarei aqui por mais alguns minutos.
Marga a encarou com incerteza e virou os olhos para a estrutura de madeira que a esperava, a alguns passos de si. Estava tudo fechado. Janelas quadradas e simples cobertas por tecidos da parte de dentro e a porta trancada. Até mesmo o pedaço de feno que sempre descansava ao lado da cabana não estava mais lá. Era como se a personalidade cômoda que a casa parecia carregar houvesse sumido. Agora, estava assustadora.
Aquilo acelerou seu coração por um momento. Ela pensou se Enrico e Eleanor não foram uns dos que também abandonaram a cidade. Porque o ar era de abandono. Era vazio.
Seus pés rapidamente se moveram sem que ela pensasse sobre o que estava fazendo. Seu peito parecia doer, cada vez que dava um passo mais próximo mais da casa. Mas ela não parou até encostar seu punho na porta de madeira à sua frente.
Ela parou. Sentiu as lascas de madeira encostadas nas articulações de seus dedos dobrados e engoliu em seco o aperto no peito que aquele toque trazia.
Ela bateu algumas vezes na porta e esperou. O silêncio continuou presente. Ninguém se moveu, lá dentro, e a porta permaneceu intacta.
Ela tentou mais uma vez. Dessa vez, deixou cinco batidas fortes e pesadas na madeira, que tremeu com as pancadas quase violentas contra si. Encarou o chão e esperou, mordendo as unhas da mão que estava livre.
Mas o silêncio continuava.
— Enrico? — gritou. Foi como se estivesse falando com o vento. — Eleanor? — sua garganta doeu quando a voz saiu. Ela piscou algumas vezes, numa tentativa de controlar as lágrimas que estavam se aglomerando nos cantos de seus olhos.
Ela respirou fundo e tentou bater mais uma vez.
— Enrico, abra a porta — pediu, mantendo um sorriso teatral. — Sou eu. Abra a porta!
O cômodo do lado de dentro continuava em silêncio total. Ela bateu ainda mais forte. Dessa vez, empurrava a porta com o corpo.
— Enrico! — insistiu. — Abra a porta, por favor. Sou eu! — Ela suspirou, com os lábios trêmulos. — Por favor?
Margareth engoliu em seco, com a respiração acelerada e uma careta molhada se formando em seu rosto.
— Não... — implorou para si mesma, com a voz falhando. — Por favor, não podem ter ido embora, eu... Eu estou de volta! Eu voltei! Eu voltei! — ela falava pausadamente, entregando um soco pesado na estrutura à sua frente a cada vez que gritava. — Eu estou aqui! Aqui! Eu estou aqui!
O ambiente permaneceu em puro silêncio, com exceção dos socos desesperados entregues à madeira. Ninguém se movia do lado de dentro. Não havia luz alguma saindo dali. Não havia ninguém.
Ela engoliu em seco. Aos poucos, sua mão foi deslizando para baixo e seu corpo ficou bambo.
— Por favor... — murmurou, antes de perder a força de suas pernas e deslizar ao chão.
Ela virou-se para a paisagem à sua frente. Sua visão inteira estava turva e molhada.
Longe dali, Sienna ainda descansava sobre o chão. Uma mão abanava a si mesma e a outra segurava o cabelo ruivo para cima. Seu vestido estava todo sujo, o que deixava o tom de amarelo ainda mais feio do que antes. Mas o azul turquesa do céu atrás de si ainda conseguia combinar com o vermelho de seus cabelos e com o mostarda de suas vestimentas e, de alguma forma, ela ainda parecia saber exatamente o que estava fazendo. Mesmo que naquele estado horrendo.
Marga sentiu-se uma tola. Ela não fazia a menor ideia de o que estava fazendo. Ou de o que faria.
Estava chorando ao pé da porta de sua própria casa. Usava um vestido amarelo que deveria custar a sua própria casa. Invejava a imagem de uma mulher que, em um estalar de dedos, poderia comprar centenas de casas como a sua. E estava desolada. Porque havia perdido, de verdade, a esperança que tinha de encontrar quem amava.
— Que merda — sussurrou para si mesma, quando seu choro pareceu se acalmar um pouco.
Os olhos vermelhos desceram para seus dedos, que arranhavam o tecido do vestido, porque não tinham nada mais para fazer. Naquele momento, ela aceitou a possibilidade de desaparecer entre as nuvens.
Até que a porta atrás de si tremeu.
Ela elevou o corpo no mesmo momento, olhando para a madeira, com a respiração voltando a se desesperar em um compasso incalculável.
Ficou em silêncio por alguns segundos, consternada. E de repente, mais uma vez, a porta tremeu.
Margareth se pôs de pé em um pulo só, observando a porta como se fosse um animal faminto a olhar para sua próxima presa.
Ela engoliu em seco, com o coração acelerando. Elevou sua mão lentamente até a superfície áspera. Se ela estivesse certa, a fechadura havia sido aberta. Se estivesse certa, tudo o que precisava fazer era tomar a pequena iniciativa de empurrar a porta.
Foi o que ela fez. Estendeu o braço de forma lenta em um único toque, como se o objeto pudesse se quebrar a qualquer momento. E então, a porta se moveu para dentro, em um movimento lento e assustador.
O ambiente, de fato, estava escuro, escondido em um breu impossível de avaliar sem estreitar os olhos. Mas, conforme a entrada se abria, ela reconhecia pequenos pontos que traziam de volta a sua memória afetiva. O banco velho de madeira logo abaixo da janela, na esquerda. O pilar escuro e grosso que segurava o segundo andar e que o impedia de desabar por completo. A madeira velha e rangente do chão cheia de poeira cinza, como se ninguém tocasse ali há semanas. E, ao final de tudo, bem à sua frente, uma versão mais áspera, machucada e desarrumada de um homem que ela costumava chamar de irmão.
Margareth prendeu a respiração ao vê-lo. Seu cabelo estava sujo e desgrenhado, seu rosto guardava manchas escuras e mais cicatrizes do que se lembrava de ter visto antes e ele usava uma calça abarrotada e regata branca e larga sobre o corpo, revelando seus músculos gigantescos. Estava péssimo e digno de pena. Mas ainda era Enrico.
— Você... — Margareth murmurou, trêmula, mas não foi capaz de terminar a fala, porque o rapaz arregalou seus olhos e pulou sobre ela com tanta rapidez, tanta urgência, que a garota pôde sentir uma de suas costelas frágeis estralando com o impacto do abraço. Não se importou, porque ela estava ali, apoiando-se nele. E sentia que, se não estivesse sendo segurada pelos braços do irmão, teria caído no chão mais uma vez.
— Eu pensei que estivesse morta — ele exclamou, enquanto chorava. Pela primeira vez, sua voz saía desolada, rouca e desafinada. Ela o ouvia, enquanto suas pernas tremiam. — Eu procurei por todos os lugares. Eu procurei todos os dias. Todos os dias.
— Eu estou bem — foi tudo o que ela conseguiu dizer, em meio aos prantos de suas lágrimas.
— Para onde você foi? — Ele a afastou pelos ombros, olhando-a no fundo de seus olhos azuis. Era impossível não perceber que algo havia acontecido com Enrico. Ele parecia diferente. Sozinho. Um pouco em desespero.
Margareth parou de chorar por alguns segundos, enquanto sua mente raciocinava o que havia à sua frente. Ele estava sozinho. Por que estava sozinho?
— Onde está Eleanor? — ela indagou, de repente.
Enrico engoliu em seco. Secou as lágrimas com uma das mãos, enquanto continuava a segurar a irmã com a outra.
— Escondida — respondeu, respirando fundo. — Pensamos que fossem os homens do rei.
— Por isso demorou tanto... — Ela murmurou. — Eles estão... batendo às portas, agora?
— Para onde você foi? — o irmão voltou a interrogar, ignorando a pergunta feita. Foi nesse momento em que percebeu as vestimentas da mais nova. Seus olhos vermelhos e inchados se estreitaram, quase fechando. — O que está usando?
Antes que Margareth pudesse responder à pergunta, Sienna tossiu disfarçadamente atrás deles. Os dois se desencostaram, apenas para olhar a figura ruiva e majestosa que os encarava em silêncio, entortando os lábios.
Enrico a olhou de cima abaixo, com a boca aberta. Foi estranho. Era como ver mundo antigo de Marga encarando o novo. E eles não pareciam ter se misturado bem.
— Quem é você? — ele perguntou minuciosamente.
— É uma longa história — Margareth interveio, engolindo as lágrimas que ainda pendiam em sua garganta.
— Quem é esta garota? — O rapaz voltou a perguntar, dessa vez, para a irmã.
Ela franziu o cenho. Se Enrico soubesse sobre quem estava falando, talvez, não usasse um termo tão simplório quanto "esta garota" para descrevê-la.
— Ninguém importante — disse Sienna, forçando um sorriso sem jeito. — Acredito que esteja na hora de eu ir embora, na verdade. — Ela se dirigiu a Enrico, mas seus olhos pendiam nos de Margareth, como se estivesse aproveitando os últimos minutos que tinha para olhar para uma obra-prima, antes de sumir do museu.
Ela cumprimentou os dois com a cabeça e começou a se dirigir para longe dali.
— Espere — disse Allboire, segurando o braço da ruiva. Ela voltou a olhá-la de costas. — Fique mais um pouco.
Bolgart a fitou por alguns segundos, com as sobrancelhas franzidas. Parecia tentar adivinhar o que diabos ela estava fazendo e o motivo para estar fazendo aquilo. Abriu a boca para dizer alguma coisa. Talvez, para explicar para Margareth que ela não podia ficar ali, porque seria perigoso para as duas. Porque sabia que seu título, por si só, traria a mais complicada das conversas em família.
Mas mal conseguiu finalizar a ação, porque, no mesmo segundo, Marga voltou a olhar para o irmão, carregando uma postura mais confiante, apesar dos olhos e narizes ainda vermelhos.
— Esta é Gabrielle. — Ela apontou para Sienna. — É uma colega de trabalho.
Se você gostou do capítulo, deixe seu voto!
Eeee gente, é sobre isso!
Whatsapp, Facebook e Instagram caíram e eu resolvi publicar capítulo novo, pra facilitar a vida de algumas pessoas que se encontram sem nada para fazer. Vocês importam!
Queria deixar aqui um desenho bem aleatório que eu fiz, quando estava super entediada nesse "fim" de pandemia. Ele é inspirado no capítulo em que Sienna e Margareth conversam no jardim, depois do baile de primavera.
Não sou pintora e nem desenhista, só desenho pra me distrair e quis compartilhar aqui com vocês! Abraços <3
"[...] e ainda mais divina estava Sienna, sob a luz da lua." (a̶ ̶d̶i̶f̶e̶r̶e̶n̶ç̶a̶ ̶d̶e̶ ̶a̶l̶t̶u̶r̶a̶ ̶h̶i̶h̶i̶)
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