25: um enigma em seu rosto - PARTE II
A viagem perdurou por horas, de forma que Margareth, pela janelinha da carruagem, pôde presenciar toda a transição entre o azul-turquesa da manhã de Kaena e o alaranjado forte do fim de tarde.
O que a levou a prestar tanta atenção à paisagem do dia foi Sienna, pois a princesa, de repente, não parecia mais apta para conversas. Era como se houvesse transformado-se em outra pessoa, novamente. Marga teve certeza disso quando observou, lá fora, os cavaleiros seguirem o mesmo caminho que fizeram, quando foram à cidade mais próxima.
— A carruagem seguiu o caminho reto. — Margareth voltou a olhar para dentro com o cenho franzido. Ela havia se esquecido do humor de Bolgart e frase havia saído de si espontaneamente. — Por que não viramos a estrada para o porto?
— Por acaso acha que sou uma bússola? — Sienna a fitou com os olhos mortos de tão frios.
A dama ergueu as sobrancelhas e coçou o pescoço, envergonhada.
— Desculpe — murmurou, bem baixinho. Estava com os ombros cabisbaixos em sua própria órbita. Não podia acreditar que seriam dias convivendo com instabilidades como essa.
Sienna observou o rosto machucado de Allboire. Após um tempo, seu olhar foi ficando morno e amolecido, como se houvesse visto estrelas a céu limpo. Ela mordeu os lábios e respirou fundo.
— Não faremos a viagem por navio — disse, com a voz bem menos agressiva. — Vamos por terra. Será mais seguro, devido às circunstâncias.
Marga quis saber quais eram as circunstâncias citadas, mas não perguntou. Apenas fez que sim com a cabeça e voltou a olhar lá para fora. O que quer que estivesse ocorrendo na mente da princesa, naquele momento, era uma fera perigosa demais para ser cutucada mais uma vez.
...
A viagem perdurou por horas, mas elas conseguiram chegar ao destino. Ao menos, ao primeiro deles.
Não havia caminhos por terra que levassem a comitiva da princesa de forma direta até Irbena em um período de tempo que não fosse exaustivo – e talvez mortal – para os cavalos. Eles precisavam parar em algum momento, e o pequeno reino de Pat Nam, na cidade da Maltônia, era o lugar perfeito para fazer isso.
Pat Nam era um país tranquilo, que costumava se abster em tempos de guerra. Ficava entre as fronteiras de Irbena e Kaena. Era muito conhecido, mas pouco temido, o que o tornava o melhor ponto para paradas durante viagens. Sienna já havia passado noites ali. Ao menos, foi o que disse a Margareth para tranquilizá-la, assim que a carruagem parou em frente aos campos verdes do palácio.
— As festas daqui são adoráveis — comentou em tom sarcástico, percebendo a feição claramente desgostosa da jovem à frente. Já havia se esquecido de sua mágoa do início da viagem.
Marga franziu o cenho e largou os ombros, encarando a amiga com total descrença.
— Não estou brincando. — Sienna respirou fundo, animada. — Podemos comparecer a uma, esta noite.
— Não sei se estou confortável para festas — Margareth gemeu. — Aliás, — Mais uma vez, puxou a cortina para checar a situação lá fora. Depois, voltou o olhar confuso para dentro da carruagem. — Já está de noite.
— Anoitecendo — a princesa corrigiu. — Mas está tudo bem. — Ela deu de ombros, como se não se importasse. — Se não deseja ir a uma festa comigo, não é obrigada. Está praticamente suspensa de suas atividades como dama real, de qualquer forma.
Diante da fala, Allboire franziu tanto as sobrancelhas que ambas quase se transformaram em uma. Como era possível que o humor desta mulher pudesse mudar de forma tão brusca, de uma hora para outra? Ao amanhecer, estava em paz e macia, feito uma nuvem. Depois, de repente, não parecia tão calma assim. Agora, agia feito uma criança alegre e, em questão de segundos, transformou-se em uma versão teimosa e mal criada da criança anterior.
No momento em que Margareth pensou em contestar alguma coisa sobre a situação, a porta da carruagem foi aberta e Sienna desceu, sem olhar para trás.
Ela saiu logo depois, mas, com a paisagem divina da construção que estava à frente das duas, a princesa não parecia tão interessada assim em notar a existência da morena.
O palácio de Pat Nam era ainda mais bonito do que as paisagens que Kaena reservava para seus residentes. O pavimento de tijolos rosados sob elas se estendia num longo caminho, indo dos portões de entrada dos campos em que estavam até as enormes portas da construção. Aos arredores, arbustos verdes e recém-cortados delimitavam o local com sutileza, mas qualquer um poderia ultrapassá-los, se quisesse. As paredes frontais do palácio eram altas, amarelas e enfeitadas de ponta a ponta com ornamentos arredondados e pilares magníficos demais para serem descritos em voz alta. E havia as luzes. Em contraste com o azul belo da noite, o palácio de Pat Nam reluzia para todos os lados feito ouro.
Marga respirou fundo, já cansada. Mais uma belíssima arquitetura para lidar, antes de ir embora.
O cavaleiro que as levou até ali começou a sacar as malas das jovens para levá-las para dentro. Elas foram logo atrás, com passos lentos e olhos hipnotizados que reluziam no amarelo do lugar. Estavam enfeitiçadas pela visão.
...
Algo aconteceu naquela noite e mudou tudo. Por algumas horas.
Por algumas horas, Margareth desvendou boa parte de seus segredos internos e, em dado momento, até pareceu saber o que fazer com isso em mãos. O único problema era que, naquela noite, ela estava fora de si.
Quando as duas botaram os pés no piso do palácio de Pat Nam e observaram mais em volta, a arquitetura sacra do local parecia ter sugado toda a beleza e brilho do lado de fora para dentro.
Não havia festa à vista. A entrada estava coberta por pessoas vivas e animadas, que conversavam alto e caminhavam rápido. Sienna conseguiu identificar ao menos sete príncipes e princesas de outros países, ali. Todos interagiam com o público nobre de Pat Nam ou descansavam ao redor da fonte d'água, um pouco mais à frente de onde ela estava.
Margareth mordia tanto o seu lábio inferior que, se não parasse, em pouco tempo começaria a sentir o gosto forte do próprio sangue em sua boca.
Um segundo homem além do serviçal que carregava as malas apareceu. Este trabalhava em Pat Nam, pois usava as mesmas vestimentas brancas e finas que os outros do local possuíam. Suas mãos estavam unidas uma à outra, como se estivesse à mercê de qualquer um à sua frente.
— Senhoritas — exprimiu ele, assim que chegou mais perto da princesa e da dama. Ela percebeu, pela informalidade, que o homem não sabia quem a ruiva era. —, gostaria que levemos suas malas para um aposento?
Margareth observou Sienna pigarrear por um segundo, como se confusa.
— Gostaria de ver o rei e a rainha — anunciou. Seu tom foi educado, porém havia algo em sua postura ereta que indicava uma superioridade orgulhosa. — Entrei em contato com os mesmos, há alguns dias. Eles fizeram questão de abrir um espaço para mim e minha dama.
— Desculpe, senhorita — murmurou o rapaz, e Sienna contorceu o pescoço para o murmúrio, incomodada. — Sua majestade e sua esposa não estão em Pat Nam, hoje. Fizeram uma viagem urgente. — A princesa franziu o cenho, transtornada. — Mas podemos encontrar um espaço para as senhoritas em algum quarto reserva.
— Isso é péssimo! — A princesa respirou fundo, numa clara encenação. — Quando falei com minha mãe, Anna Bolgart de Kaena, ela deu a certeza de que nosso quarto estava reservado há dias. Não é, senhorita Allboire? Diga a ele sobre o que a rainha nos disse.
Margareth apenas fez um sim incerto com a cabeça, sem entender o que ocorria.
O serviçal, por alguns segundos, ficou quieto. Depois, encarou a princesa com a boca aberta, como se houvesse acabado de descobrir um segredo mortal. No mesmo momento, ele afastou-se das duas por alguns pés e fez uma reverência que quase alcançou o chão. Margareth fez uma careta para a cena.
— Alteza, peço desculpas — disse o homem, alto e claro. Sienna pareceu abrir um pequeno sorriso ao ser reconhecida. — É claro, senhor Haman nos avisou sobre sua estadia. Peço desculpas — ele repetia, com a voz trêmula e um gosto amargo na garganta. — Acompanhem-me, por favor.
Tranquila, a princesa seguiu os passos estabanados do homem até a escadaria do palácio e Margareth foi logo atrás. Enquanto andavam, a dama, por um segundo de esquecimento, a puxou pelo braço e aproximou o rosto da ruiva do seu.
— O que foi isto? — sussurrou ela, com a face ainda em total confusão.
Sienna liberou o sorriso que estava lutando para sair durante a conversa.
— Privilégios.
— Foi arrogante — disse Marga. Arrependeu-se logo em seguida, mas a princesa não pareceu se importar.
— Se não houvesse feito isto, não teríamos um lugar decente para passar a noite — apontou ela, voltando com a voz de quando era incorporada pela criança mimada dentro de si. — Não entramos em contato com rei Haman, coisa nenhuma.
— Espere... — A dama respirou pela boca. — Então, estava mentindo?
— Sim. — Sienna voltou os olhos para o atendente e apontou com seus dedos finos às costas do homem. — E ele também.
Margareth abriu mais ainda a boca, transtornada.
— Como...
A princesa deu de ombros e sussurrou:
— Enganar a realeza é uma tarefa muito fácil.
Depois disso, soltou-se dos braços da dama e continuou a subir os degraus esbranquecidos sozinha, como se estivesse tudo sobre controle.
Margareth havia ficado ansiosa pela mentira de Sienna, mas, de fato, o quarto em que estavam era muito mais espaçoso do que qualquer outro lugar que conseguiriam sem a ajuda de uma mentira. Com três camas gigantescas postas em cada canto do local, um grande lustre bem ao centro do teto, algumas poltronas entrecostadas e uma pequena varanda hexagonal do lado de fora, a dupla poderia passar a noite inteira ali, sem arranjar encrencas com ninguém.
O problema era que Sienna parecia desejar, mais do que tudo, sair daquele quarto.
— Acabamos de chegar de uma viagem de horas — pontuou Marga, enquanto colocava suas malas sobre a cama que havia escolhido. — Não prefere descansar?
— Margareth! — Sienna chamou, como se estivesse indignada. A dama parou sua ação para olhá-la. — Essa é a primeira e última vez que visita Pat Nam. Não deseja aproveitar o melhor dessa cultura?
— Não quero ficar em meio a tantas pessoas, já estou farta de bailes — Marga bufou, voltando sua atenção para as malas. — Além disso, você não quer "aproveitar a cultura" de Pat Nam. Apenas quer dançar a noite inteira sem pensar em sua reputação, já que nenhum nobre daqui a conhece.
— Isso não é verdade. — A princesa cruzou os braços, chateada. — Muitos nobres daqui sabem quem sou.
Margareth suspirou, tocando a própria testa.
— Está tudo bem? — perguntou, de repente. — Parece que está fora de si.
Sienna franziu o cenho.
— Não estou fora de mim — respondeu ela, revirando os olhos. — Apenas desejo me divertir, uma vez. Longe de minha mãe e do castelo e da Coroa. E você poderia vir comigo. Afinal, ainda é minha dama. Daqui a algum tempo, não será mais. Mas ainda é. — Ela ficou quieta por um segundo. — Não é?
Allboire a encarou com incerteza, franzindo os lábios. Sentou-se sobre sua cama, enquanto brincava com a saia de seu vestido. Pensou se aquela seria uma boa oportunidade para dizer que, na verdade, estava pensando em abandonar todo o seu ódio pela realeza, voltar para o castelo de Kaena com seu irmão e sua cunhada e esperar que a rainha aceitasse a proposta de mais dois pobres infiltrados em seu reino.
Sentia como se estivesse torturando os sentimentos da princesa, ao não dizer nada sobre. Ao fazê-la pensar que aquela era a última vez em que ambas se veriam. Não era. Com certeza não era. Ela não queria ir embora. E estava disposta a convencer Enrico a mudar-se para outro país, apenas porque queria muito ficar.
— Está bem — disse, subitamente. — Iremos a uma festa.
A princesa ergueu as sobrancelhas, surpresa. Um sorriso lentamente se abria em seu rosto.
— Está falando sério? — indagou. — Não, espere! Não perguntarei nada. Pode ser que mude de ideia.
Margareth não evitou soltar uma risada.
— Venha, venha logo! — A princesa se aproximou dela sem esperar um segundo e puxou sua mão para a porta de saída do quarto. Marga nunca a vira agir de maneira tão feliz, antes. — Não precisa vestir-se de outra maneira, já estamos divinas.
...
A primeira metade de hora que as jovens passaram numa festa perdida encontrada por Sienna pareceu durar uma tarde inteira para Margareth.
A princesa possuía uma facilidade indescritível para socializar com outros convidados, passando de mão em mão na dança a todo momento. Enquanto isso, a dama usou todo aquele tempo sentada em um sofá, negando a companhia de estranhos que colocavam-se ao seu lado e observando a ruiva dançar com homens descompromissados.
O que ela admirava, entretanto, era a energia daquela festa. A música não era elegante e contida, como ocorria em Kaena. Não havia violino algum tocando aos arredores. Em vez disso, era vulgar, divertida e honesta. Um clavicórdio e alguns batuques tomavam o ambiente do salão escuro. Pessoas pulavam de lá para cá, assim como nas festas do vilarejo. Inclusive Sienna, o que deixou Marga surpresa ao ver que a princesa era capaz de se mexer tanto.
Em dado momento, Bolgart desistiu de sua dança e veio de encontro à dama. Sentou-se ao seu lado, ofegante.
— Nunca mais dançarei em toda a minha vida — suspirou, num tom de voz meio sério meio dramático.
— Parece cansada. — A dama ergueu uma das sobrancelhas, entediada.
— Estou exausta — Sienna enfatizou. — Às vezes, exagero demais. Preciso relaxar, um pouco.
Em uma ação incontrolável, Margareth bufou para si mesma. A princesa percebeu o ato.
— E a senhorita também, ao que parece — acrescentou, revirando os olhos.
De repente, seu cenho franzido e sua ofegância transformaram-se em um rosto sorridente e alegre. Ela encostou a mão esquerda no braço peludo de Marga. Sua mão estava quente, pela primeira vez.
— Não vim aqui para deixá-la largada — disse a princesa. — Conheci um homem.
— Um pretendente? — brincou a dama, em tom amargo.
Sienna franziu o cenho.
— Está malvada, hoje. — Uma careta surgiu por alguns segundos. — Não é um pretendente. Ele não... — Ela parou para pensar na melhor forma de dizer. — ...deseja se casar.
Margareth fitou a ruiva, confusa. Como havia descoberto algo assim sobre uma pessoa em tão pouco tempo?
— De qualquer forma — continuou a princesa —, ele levou-me a esta sala cheia de bebidas interessantes. É como vinho, porém melhor.
A dama desencostou-se do sofá, interessada. Sienna ficou quieta por alguns segundos, esperando um julgamento por parte de Margareth. Mas, quando percebeu que não receberia nada assim, ergueu uma das mãos, segurando uma garrafa de vidro.
— O que acha?
...
Marga achava que Sienna Bolgart, quando longe de Kaena, era difícil de lidar. Até que conheceu Sienna Bolgart longe de Kaena e com uma certa quantidade de vinho desconhecido em seu estômago. Esta era muito pior.
Não muita coisa havia mudado do cenário anterior. Exceto pelo fato de que, agora, Margareth estava sentada no mesmo lugar, segurando uma garrafa de vinho, e Sienna continuava dançando em meio à música animada, apenas um pouco mais sem limites do que antes.
Margareth olhava para a janela atrás de si, encarando a lua brilhante que se formava no topo do céu noturno. Aquilo a fez se lembrar do clima fúnebre de Kaena. Por algum motivo, ela sentia saudades daquele clima. Ao menos, havia aprendido a apreciá-lo mais do que apreciava aquela festa.
Quando voltou seu olhar para dentro do salão, Sienna havia parado de dançar. Agora, a ruiva descansava sobre a parede rubro atrás de si, encarando a multidão alegre com um semblante estranhamente afetuoso no rosto. Ela estava totalmente fora de si.
Marga achava engraçado o modo como falava sozinha e ria de si mesma. Era como se houvesse perdido a custódia de sua coroa por apenas uma noite, e parecia feliz com isso. Encará-la naquele momento até parecia fácil. Como se não houvesse mais a incerteza sobre como seria sua reação, se o fizesse.
A morena acordou desses pensamentos quando um outro indivíduo fez-se presente ao lado da ruiva. Era um homem alto, com ombros largos e fortes, cachos cor de amêndoas que escorriam ao redor de seu rosto e uma pele bronzeada e cheia de cicatrizes atrativas, como se houvesse acabado de voltar de uma luta contra um tigre. Era alguém estranhamente atraente.
Ele apoiou-se sobre a parede com um dos braços, guardando a mão livre em um dos bolsos. Sua cabeça estava inclinada sobre os olhos da princesa, quando abriu a boca para falar alguma coisa. Sienna não moveu-se. Apenas soltou uma risada e respondeu ao que quer que o desconhecido houvesse falado, sem um pingo de incômodo.
Observando a cena com os olhos azuis estreitos, Margareth endireitou sua postura no sofá, atenta. A festa estava alta demais para se ouvir o assunto que enevoava entre os dois, mas ambos pareciam interessados demais no que haviam a dizer para ser algo indiferente.
Allboire encarou a garrafa de vinho em suas mãos. Estava aberta e pela metade. Mas, com a mente cheia de pensamentos barulhentos, ela não era capaz de dizer se aquele tanto de bebida foi ingerido pelas duas ou apenas por Sienna.
Depois, quando voltou seu olhar para a dupla ao longe e observou o gigantesco homem tirar a mão que estava em seu bolso e colocá-la sobre a da princesa, sem vergonha alguma, e assistiu à ruiva não ter uma única reação negativa ao toque, foi que percebeu que ela estava fora de si.
O problema era que Margareth também estava. E, por isso, levou a garrafa à sua boca, deu três grandes goles e, enquanto sentia o gosto amargo arrastar pela sua garganta, levantou-se do sofá e caminhou sem hesitar até o casal.
Os olhos já sorridentes de Sienna brilharam ainda mais ao vê-la por perto.
— Margareth! — exclamou ela, exatamente no mesmo tom em que uma versão ruiva de Anastácia Sinclair teria. — O que está fazendo aqui?
— Princesa — disse Marga, sutilmente desencostando as mãos de Sienna do desconhecido e tomando-as de volta para si. Ele olhava a dama fazer isso com uma expressão curiosa e incomodada. — Estava procurando pela senhorita por toda a parte.
A princesa franziu o cenho, confusa.
— Ora, mas você não estava...
— Sim — apressou-se a falar, antes que a ruiva pudesse terminar a frase. — É claro que estava. Vim até aqui apenas porque preciso te levar de volta aos seus aposentos.
— Com licença. — O homem das cicatrizes desencostou-se da parede, com um sorriso amarelo no rosto. — Posso saber quem é a senhorita?
— Oh! — Sienna ergueu as sobrancelhas. — Margareth, este é Jalouse Nivard. Um homem de negócios. — Ela apontou para ele com ambas as mãos, como se fosse uma pequena criança. Esse gesto apenas serviu para enfurecer os sentidos de Marga contra o homem. Estava mais do que claro que ela não estava sóbria.
Allboire levantou seu olhar para o rosto de Jalouse e forçou um sorriso por um único segundo. Ele fez o mesmo.
— Muito prazer, senhor Nivard. — Ela ergueu as sobrancelhas. — Peço desculpas, mas... preciso levar minha senhorita daqui.
— Espere, o que? — A princesa fez uma careta, porém Margareth já segurava uma de suas mãos, pronta para puxá-la para longe. — Por quê?
— Porque precisamos, Sienna.
A morena conduziu a ruiva em direção à saída. Porém conseguiu movê-la por apenas alguns passos, porque Jalouse a segurou pela cintura.
— Ei, espere — ele reclamou, olhando para Allboire com o rosto irritado. — Deixe-a ficar. A senhorita não quer ir embora. Não é, Sienna?
A princesa fez que sim.
— Não quero, mesmo — concordou, emburrada. — Por que está tentando me tirar daqui, hein?
Margareth fitou a ruiva com os olhos arregalados. A mão gigantesca de Jalouse ainda estava sobre sua cintura, como se estivesse segurando um objeto qualquer, e sua face ainda encarava a morena como se a mesma fosse um empecilho entre ele e seus planos com a princesa. Naquele momento, sua beleza estonteante havia se tornado meramente mediana.
A dama respirou fundo, irritada.
— Porque... — Mais uma vez, ela puxou o corpo de Sienna para longe da mão horrorosa de Nivard. Dessa vez, com mais raiva do que antes. — Seu pretendente está te esperando para o casamento.
O rosto antes tranquilamente chateado da princesa transformou-se em uma bola gigante e explosiva de confusão.
— O que?
...
Empurrar uma versão bêbada de Sienna pelos corredores de um palácio desconhecido era uma tarefa extremamente difícil. Ainda mais quando a pessoa a empurrá-la era, também, uma versão bêbada e confusa de si mesma.
Margareth agradeceu pelo efeito do vinho ter sido tardio o suficiente para atrapalhá-la apenas depois de ter tirado a princesa de perto daquele homem esquisito e possivelmente perigoso. Mas subir escadas enquanto observava o mundo ao seu redor girar era algo muito complicado. E, além disso, Sienna não parava de reclamar. O tempo todo.
Quando, por intervenção divina, talvez, a menina conseguiu chegar à porta de seus aposentos e empurrou a princesa para dentro, o quarto ficou silencioso. Sienna jogou-se com violência sobre a parede à sua frente e cruzou os braços.
De cara feia, observou Margareth fechar a porta e caminhar até a mala que ainda a esperava sobre sua cama, como se não houvesse acontecido nada.
— Não vai dizer nada? — disse a ruiva, forçando para que sua voz arrastada saísse com autoridade.
Marga parou de mexer em suas roupas e virou a cabeça em direção a Sienna. O mundo estava girando ao seu redor.
— O que eu deveria dizer? — rebateu, ignorando a lentidão que se assolava sobre si.
A princesa franziu o cenho para ela.
— Pretendente? — exclamou, irritada. — Casamento? O que foi aquilo?
— Está muito tarde, Sienna. — Margareth deu de ombros. — Amanhã. Podemos continuar com esta conversa amanhã.
— Não, não podemos. — Bolgart desencostou-se de sua parede de apoio, surpresa. — Não pode mandar em mim. Não tem essa liberdade.
A dama fez que não, de queixo caído.
— Não estou mandando em ninguém — murmurou. — E foi você quem me deu esta liberdade. Age como se eu não trabalhasse para a senhorita. Como se eu estivesse aqui por livre vontade.
— Não está por livre vontade? — a princesa perguntou. Porém Marga apenas a encarou em silêncio. Sienna, então, balançou a cabeça. — Mesmo que eu tenha dado liberdade para agir como minha amiga... O que fez no salão foi errado e constrangedor! Está fora de controle!
— Fora de controle? — Margareth repetiu, soltando uma risada. — Sienna, não estou fora de controle. É você quem está. Está fora de controle desde que chegamos a este lugar. Nem está se parecendo consigo mesma! Desde quando gosta de estar no meio de multidões e de ser abordada por homens estranhos e duvidosos?
— Jalouse? — Ela ergueu as sobrancelhas. — Então é por isso que me tirou de lá? Está com ciúmes porque a deixei sozinha?
— Não. — Marga revirou os olhos, voltando a encarar sua mala. — E sua autoestima é gigantesca.
Sienna encarou as costas da garota, ficando quieta em seu lugar. Uma pequena risada tentou sair de si, após o comentário da dama, mas ela conseguiu conter-se em sua face dura. Era o efeito do vinho.
— Se queria que eu ficasse ao seu lado, era só ter me avisado — disse, num tom de voz que exalava um certo descontrole sobre o que dizia, e depois franziu os lábios numa expressão engraçada, que Margareth não pôde ver. — Infelizmente, não consigo ler seus pensamentos.
A dama bufou, observando as tochas alaranjadas lá fora brilharem em contraste com o véu escuro do céu pela vidraça da janela.
— Não quero que leia meus pensamentos — falou, empurrando sua mala para o chão, pois não tinha forças o suficiente para levantá-la com as mãos. — Apenas quero que... minha cabeça pare de rodar e que eu consiga dormir antes que amanheça.
Quando sentou-se sobre seu colchão, observou a figura da princesa mais próxima, a alguns passos de si. Ela fingia estar sobre o controle de si mesma, mas apoiava um dos braços com força no estofado da cadeira ao seu lado, como se não conseguisse ficar de pé por muito tempo.
— Escute... — A ruiva engoliu em seco, disfarçando sua quase-total desatenção. — Se lembra de seus primeiros dias em Kaena, quando teve de trabalhar para a rainha?
Marga apenas fez que sim com a cabeça, a contragosto.
— Como foi? — a princesa voltou a perguntar.
— Eu não... — A dama fez uma careta, como se fosse capaz de falar mal da rainha de um país à sua própria filha.
— Pode me falar. — O semblante de Sienna era sério. De uma forma irreal, para alguém que havia acabado de dividir uma grandíssima garrafa de vinho com sua amiga. Ela esperava por uma resposta sincera.
Margareth e encarou por alguns segundos, imersa em sua própria incerteza. Mas, como estava prestes a ir embora daquele lugar, não hesitou em dizer:
— Um inferno. — Porque Anna Bolgart é um ser frio, arrogante e impetuoso, que não parece carregar um pingo de empatia com quem quer que trabalhe para ela e que aparenta ser capaz de passar por cima de qualquer um, apenas para conseguir fama e poder. Era isso o que ela pensou em dizer. — Um grande inferno.
A dama esperava grandes reações, porém tudo o que recebeu foram as sobrancelhas orgulhosas de Sienna erguendo-se de uma vez só.
— Está aí — ela disse, num tom amargo que evidenciou seu estado não-sóbrio. — Trabalhou para ela por alguns dias. Eu sou filha dela. Sou filha do inferno que você passou.
Margareth a encarava com os olhos bem abertos e a boca fechada.
— Os únicos momentos em que posso agir dessa forma são nos momentos em que ela não está por perto — continuou a princesa. — É bom sentir que posso fazer o que quero. Sem que ela esteja por aqui, para me dar ordens. É libertador.
Sienna desencostou-se de sua cadeira de suporte e rastejou até se jogar numa poltrona, no centro do quarto. Marga a seguiu com os olhos, esperando que ela continuasse a falar. Mas a princesa parecia ter desistido de continuar com seus pensamentos. Agora, ela fitava o chão, desanimada.
— Veja pelo lado bom — Margareth disse, de repente.
A ruiva ergueu seu olhar para a dama, curiosa.
— Qual é o lado bom?
— Você não é ela. Não vê necessidade de fazer isso tudo — explicou, com a voz leve. — Talvez sinta, às vezes, porque é o que ela te ensinou. Mas não acredita que precisa enterrar os outros para demonstrar que tem poder. Ela faz isso porque sabe bem que, sem sua própria maldade, ela não tem mais nada. Mas você, não. Você tem poder em tudo o que é seu. Você tem cabelos ruivos que brilham feito fogo no escuro e... seus olhos... — Ela respirou fundo. — ...espantam qualquer um.
Sienna a encarava com uma feição assustada, mas Margareth não retirou o que disse.
De repente, um sorriso se fez no rosto pálido da ruiva. Ela meneou a cabeça conforme seu rosto lentamente desfazia o espanto de si, pensativa. Se ainda houvesse vinho em suas mãos, com certeza teria tomado mais um pouco, naquele exato momento.
Havia algo de estranho na forma como as feições de Sienna transformaram-se em algo totalmente distinto, de um segundo para o outro. Era quase como se estivesse totalmente sóbria, mesmo que houvesse ingerido mais álcool do que podia se lembrar.
Seu sorriso perdurou por um longo tempo. E então, seus olhos castanhos, apontados para a morena, semicerraram de forma bem lenta. Ela apoiou-se com um dos braços sobre o veludo vermelho e fofo do sofá e ficou daquele jeito, parada, por cinco ou mais segundos. Como se estivesse desvendando todos os segredos do mundo, ao olhar para Margareth.
— Por que está me olhando desse jeito? — a morena falou de modo arrastado, franzindo exageradamente o cenho.
Sienna umedeceu os lábios. Havia calma em sua compostura, ao mesmo tempo em que a princesa parecia prestes a ter uma crise de choro ali mesmo.
— Tem vezes em que gostaria de fugir com você — murmurou, sem filtro algum, como se fosse algo normal a se dizer.
Margareth engoliu em seco. Seus olhos piscaram bem rápido, como se estivessem lutando para permanecerem abertos.
— Como assim? — indagou lentamente. — Quais vezes?
A ruiva respirou fundo e enrolou uma mecha de seu cabelo com a mão que estava livre.
— Quando me olha dessa maneira — afirmou, apontando com o queixo para o olhar caído da dama. — Quando engole em seco, porque ouviu algo que não esperava. Quando encosta em meu ombro com receio, como se pudesse me quebrar com um simples toque. Quando... — Ela parou, franzindo os lábios. — Quando está bem próxima de mim.
Marga ergueu as sobrancelhas para a princesa. Mas não respondeu coisa alguma. O que haveria de responder, afinal? Apenas permaneceu calada, encarando Bolgart da forma como a mesma dizia que gostava que ela fizesse.
De repente, Sienna levantou-se de sua poltrona e caminhou lentamente até a ponta da cama em que Marga estava sentada. Fez isso, talvez, para que desse tempo de a dama dizer para parar tudo a qualquer momento, se quisesse. Mas ela não disse nada.
A princesa pôs-se de joelhos à sua frente e aproximou seu rosto do dela. Fitava cada detalhe do que havia em Allboire, bem à sua frente. A centímetros de si.
A respiração de Margareth tremulou. O aroma cítrico invadia sua órbita.
— Não sei o que fazer — ela sussurrou para a princesa, a voz mal saía de sua boca.
— Não sabe? — Sienna franziu o cenho, mas manteve o tom igualmente baixo.
— O que eu deveria fazer? — indagou a dama. — Quando estamos...
A ruiva impediu um sorriso de se abrir em sua boca. Seus olhos se arregalaram um pouco mais.
— Você nunca...
Margareth balançou a cabeça. Não, ela nunca. Nunca havia feito nada parecido com ninguém.
Sienna permitiu que o sorriso aparecesse.
— Feche os olhos — disse.
— Eu...
A dama hesitou por um momento. Mas, ao sentir o toque da princesa esquentar seu braço, presenciou todos os seus pensamentos desaparecerem de sua mente em um só segundo. Ela engoliu em seco e fechou os olhos.
A sala entrou em silêncio. E Marga esperou, durante um tempo, por uma resposta no escuro em que estava, mas não recebeu nada. Não fosse pelo perfume, ela diria que Sienna havia simplesmente evaporado.
Foi quando franziu o cenho, estranhando a quietude, que, de repente, sentiu as mãos da ruiva moverem-se em seu braço. Os dedos finos silhuetaram com leveza por sua pele morna e subiram lentamente, até alcançarem seu pescoço e tocarem em seu rosto.
De repente, Sienna inclinou-se para frente e beijou sua bochecha, bem próximo aos seus lábios, de forma que a dama ainda pôde sentir o canto da boca da ruiva encostar levemente na sua. Os resquícios de o que poderia ser o gosto palpável de um aroma cítrico invadiram as veias da dama e fizeram seu coração acelerar. Fizeram sua respiração retesar e seus ombros elevarem e suas mãos tremerem.
Tudo isso em tão poucos segundos.
Quando a princesa se afastou, Margareth abriu os olhos. Estava paralisada, sem se mover ou dizer coisa alguma.
Mas a ruiva também estava parada. A encarava com o mesmo olhar de surpresa e preocupação, como se não houvesse sido ela quem fez aquilo. Como se alguém houvesse tomado conta de seu corpo e forçado seus próprios movimentos.
O quarto continuava em silêncio. Os olhos arregalados das duas sendo o canto mais barulhento que havia por ali. Até que Sienna mordeu os lábios e voltou à sua postura alterada e sem sentido de antes.
— Preciso de mais vinho.
Ela levantou-se rapidamente e saiu correndo para fora dali.
Margareth a observou sem fazer nada. Naquele momento, ela não pensou que, talvez, fosse melhor acompanhar a princesa em seu caminho, para evitar que fizesse qualquer besteira que a afetasse.
Em vez disso, ficou ali, parada. Colocou sua mão em seu peito e tentou acalmar sua respiração. Seu coração havia acabado de entrar em combustão.
Se você gostou do capítulo, deixe seu voto! <3
Oi gente! Primeiramente, quero pedir desculpas. Sei que demorei bastante dessa vez, então acabei não revisando por completo esse capítulo, para poder postar ele pra vocês o quanto antes. Se houver erros, peço que me avisem e eu irei corrigir. <3
Agora estou de férias na faculdade e vou tentar escrever mais para trazer mais capítulos pra cá.
( é 1 mês, pouca coisa, mas já dá pra adiantar bastante hehehe)
De qualquer forma, espero que tenham gostado do capítulo! Beijinhos pra todes <3
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