17: jantar, ou chá, ou o que quer que fosse


— Ah, Marga! — exclamou Anastácia, correndo para abraçar a amiga.

Margareth a encarou com os olhos arregalados. A pequena apresentava-se como quem estava pronta para um baile: os cabelos loiros estavam presos ao topo de sua cabeça, usava um vestido de seda e tafetá esverdeada e um pequeno leque da mesma cor fazia presença em uma das mãos. Além disso, havia usado pó em seu rosto, pois estava muito mais pálido do que o normal.

Anastácia havia se esforçado para ficar estonteante aos olhos da dama. Afinal, aquele era o chá – ou jantar – que ela organizou. Precisava mostrar que preocupou-se com cada detalhe, até mesmo com sua própria aparência.

É claro que Allboire não precisou de muito para se surpreender com o que via.

— Que bom que chegou logo! — ela continuou, logo após soltar-se dos braços da morena. — Já estava imaginando que estava trancada nos aposentos de sua alteza, novamente.

O rosto de Margareth ruborizou no mesmo momento.

Depois de todos aqueles segredos guardados, sua situação com senhorita Bolgart não esteve tão ótima, ultimamente. Para falar a verdade, ela estava começando a se perguntar se algum dia já havia sido boa. Lembrar-se dessa situação a fazia embrulhar o estômago.

— Está tudo bem? — Anastácia arqueou uma sobrancelha, mantendo o sorriso curioso. — Não parece tão feliz assim em me ver.

— Desculpe — murmurou a dama, recompondo o seu semblante alegre. — Estou feliz em te ver, é claro. Está tão... bem-vestida! E olhe só para esta mesa... está magnífica!

Margareth apontou para a decoração à frente delas, onde uma mesa de dois metros descansava no meio da sala. Uma toalha estava forrada sobre a tábua de madeira e, sobre ela, diversos pratos com frutas e pães e doces que Margareth nunca antes vira. As taças de vidro estavam estrategicamente colocadas na ponta de cada lado, em frente aos pratos, com água e vinho sendo as únicas bebidas.

Ana riu para a dama, orgulhosa e com um olhar nada surpreso, como se já soubesse da beleza de sua decoração.

— Fico profundamente feliz que tenha gostado! — Ela rapidamente caminhou para puxar as cadeiras e fechar a porta do local. — Passei a semana a pensar em maneiras de transformar essa salinha sem graça em um lugar único, vivo e estonteante. Vivian e Julie têm reclamado muito do quão absorta eu estive. Mas, Margareth, não pude evitar! — exclamou, deixando seu tom de voz alto sair, agora que estavam sozinhas. — Meus sonhos estavam sendo docemente atormentados pelo momento em que entraria nesta sala.

— Seus... sonhos? — Marga repetiu, confusa.

Anastácia hesitou, percebendo a estranheza em sua fala. Elas se acomodaram em suas cadeiras.

— Bem, não exatamente — corrigiu-se, envergonhada. — Era um grande desejo meu que a primeira visão que você obtivesse ao entrar nesta sala fosse tão deslumbrante a ponto de... nunca ser capaz de sair das melhores memórias de toda a sua vida. Faz sentido?

A dama não pôde conter uma risada, envolvida pela força de vontade da jovem.


O jantar seguiu em seus primeiros minutos com conversas leves e perguntas sobre o dia de cada uma. Anastácia não parava de ressaltar o quão feliz estava por Margareth ter comparecido em seu jantar. Aquilo deixava a dama feliz e descontraída.

Naqueles momentos, ela lembrou-se de quando era mais jovem e de como sua personalidade era o exato oposto de Anastácia, naquela idade. Aquilo era, de certa forma, engraçado. Não podia entender o que alguém como Ana via de interessante numa pessoa tão fechada como Margareth. Essa amizade inesperada era algo que ela adoraria contar para Enrico e Eleanor, durante um jantar quente e caloroso, assim que os visse novamente.

Caso os visse novamente.

— Está tudo bem? — indagou senhorita Sinclair, de repente. — Parece incomodada com algo. Foi minha intromissão? Julie vive dizendo para que eu me controle... Me perdoe, não é como se estivesse, de fato, tão interessada em organizar este salão apenas para a senhorita. Você não precisa se sentir invadida ou...

— Está tudo bem, Anastácia — interrompeu a dama, com um sorriso honesto no rosto. — Não se preocupe, me sinto querida pela sua atenção. Apenas estou com alguns pensamentos desagradáveis.

— Oh... — Os ombros de Anastácia rapidamente caíram em sua cadeira e sua voz diminuiu o tom. — Sinto muito por isso. Não deve ser fácil ter de trabalhar tão próxima à princesa. Apesar de isso ser um dos meus maiores sonhos da vida.

Margareth soltou uma risada leve.

— Não diria que é difícil — disse. — Apenas sinto que... focar tanto na vida de outras pessoas faz eu me esquecer da minha. Não sei se gosto disso. Compreende?

Ana fez que sim com a cabeça, de olhos tristes.

— Talvez eu compreenda um pouco demais — confessou, pensativa. — Já se perguntou por que eu, Vivian e Julie somos tão próximas umas da outras? — Ela encarou o rosto de Marga, esperando por uma resposta. A dama fez que não. — Todas nós estamos sozinhas no mundo.

— Isso não pode ser verdade — Allboire contestou. — As três possuem tantos amigos e conhecem tantas pessoas!

— Quis dizer que nós não temos pais — corrigiu a donzela.

— Oh — exprimiu Marga, surpresa, achando-se completamente estúpida naquele momento. — Desculpe.

— Está tudo bem! — Anastácia riu. — Já passou tanto tempo que mal consigo ficar triste. Mas é verdade! Os pais de Vivian já se foram, os de Julie vivem em suas viagens a negócio e, bem... meu papai não costuma aparecer por aqui. Então, só temos umas à outras. E estar com elas me faz esquecer da minha vida.

— E gosta de esquecer?

— Um pouquinho, sim — admitiu ela, com uma risadinha aguda. — Mas nem tudo dura para sempre, não é? Talvez, devesse aproveitar esses momentos com sua Alteza, antes que volte à normalidade dos seus dias.

— Acredita que eu deveria fazer isso? — indagou Margareth. — Esquecer de todo o resto da minha vida?

— Está brincando!? — Ana a encarou como se ela fosse a peça mais inacreditável de um museu. — Se eu estivesse em seu lugar, esta é a única coisa que eu pensaria em fazer! É tão sortuda!

— Por ser dama de companhia de senhorita Bolgart? — Marga fez uma careta.

— Ah, sabe que não é só por isso!

Margareth franziu o rosto, pensativa:

— Pelo que mais seria, então?

O sorriso de Anastácia fechou-se no mesmo momento. De repente, ela simplesmente levantou-se de sua cadeira e começou a servir o vinho para a colega, em completo silêncio.

Quando encheu ambas as taças e se sentou de volta em seu lugar, voltou a falar, baixinho, como se fosse um segredo horrendo o que dizia:

— Não sei se seria certo trazer esse assunto à tona.

— Qual assunto? — a dama indagou, cessando seu sorriso de pouco em pouco.

Ana respirou fundo e segurou a risada entre seus lábios rosados.

— Lorde Lurk — exprimiu, num só gritinho animado.

— Oh, não.

Marga imediatamente arregalou os olhos e engoliu em seco, atravessada pelas memórias que guardava daquele sujeito em específico. O homem que a cortejou durante o baile de boas-vindas e que, horas depois, estava sobre o corpo de Anna Bolgart, beijando-a incessantemente nas penumbras do castelo.

E a forma como aquele beijo a atormentava desde então era indescritível. Ela repetia aquela cena em sua cabeça, mais e mais, porque havia algo naquele beijo que a prendia. Era como uma chama. Lurk encarava Anna como se ela possuísse tudo o que ele precisava para sobreviver. Era algo que ela nunca havia visto antes. E ainda assim, aquilo a atraía de uma forma visceral.

— Desculpe! — Anastácia riu, cortando a linha de seus pensamentos. — Julie e eu estávamos observando suas conversas durante a chegada dos Lurks e precisávamos saber da verdade.

— Qual verdade? — gaguejou a dama. — Não há verdade alguma para ser contada a ninguém.

— Ah, Margareth! — gemeu Ana. — O modo como olhavam-se durante o baile era... incontestável! Não podemos negar que, pelo menos, um dos dois estava com interesse estampado na face.

Marga não pôde evitar o desprezo a tomar conta de sua face. Talvez, Ana fosse nova demais para compreender a linguagem corporal de casais, pois tudo o que saíra do rosto de Margareth, durante aquele baile, foi horror.

— Isso não passa de especulações, Ana — afirmou a dama, respirando fundo. — Lorde Lurk estava apenas sendo gentil... ou, ao menos, tentando.

Ela pôs-se em silêncio por um momento, observando a face contraída da amiga. Sinclair não acreditava nem um pouco em suas palavras.

Então, pensando que talvez fosse uma boa ação, Margareth decidiu alimentar um pouco mais a fome de Anastácia por informações:

— Pode ter certeza de que não carrego o menor interesse por Stephan Lurk. E, mesmo que tivesse, não teria a permissão para incentivá-lo. Senhorita Bolgart me fez prometer que mantivesse distância do lorde.

— Oh, que terrível! — lamentou Anastácia, com um semblante devastado. — Por que sua Alteza faria algo assim?

Margareth deu de ombros.

— Bom, acredito que eu estaria mais interessada em saber os motivos se realmente possuísse qualquer ambição em relação a Stephan. Mas não tenho. E, se Lorde Lurk realmente se interessou por mim, tenho como, ao menos, usar as ordens de senhorita Bolgart como desculpa para mantê-lo longe. — Ela sorriu para a menor, satisfeita. Imaginou que Ana logo fosse desistir do assunto, para voltar a conversar sobre as demais fofocas que faltavam à mesa.

Mas a menina estava afundada demais para voltar atrás.

— É isso! Só pode ser! — exclamou, de repente, como se estivesse pensando sozinha enquanto Margareth dava seu discurso. — Faz todo o sentido!

— O que faz sentido? — A dama levou a taça de vinho à boca, encarando o rosto animado de Ana.

— Os boatos do casamento da princesa! — enfatizou ela, quase que histérica. — Senhorita Bolgart já está velha demais para não ter se casado com algum nobre, ainda. Ela tem evitado esta conversa há anos! Mas, agora, tudo faz sentido. É claro que sua Alteza não quererá se casar com nenhum de seus pretendentes, porque quem ela, de fato, deseja... é Lorde Lurk!

Naquele momento, Margareth quase cuspiu todo vinho que bebia. Uma risada incontrolável explodiu de si.

— Do que está rindo? — indagou Sinclair, quase ofendida pela reação da amiga.

— Fiquei extremamente surpresa pela sua capacidade de pensar numa explicação plausível para tudo isso — explicou a dama, ainda em risos. — Mas Sienna...digo, senhorita Bolgart, definitivamente, não está interessada em Lorde Lurk. De forma alguma!

Anastácia torceu sua boca em um bico, chateada.

— Bom, como pode ter tanta certeza disso?

— Ela mesma quem me contou — respondeu Marga, simplória. — Para ser sincera, tenho motivos para acreditar que a princesa não suporta a presença de Lurk. Você e Julie não são as únicas capazes de identificar olhares, sabia? Pois eu estava bem ao lado de ambos quando conversavam um com o outro e nada vi, além de desprezo.

— Ah... — O corpo de Anastácia voltou a murchar. — Mas a única explicação plausível para que sua Alteza desejasse manter distância entre os dois é porque estava com ciúmes! E... se não de Lurk, então, da senhorita!

— O que!? — Marga exclamou, assustada. — Isso é impossível.

— É claro que não — rebateu Ana. — Faz muito mais sentido que ela esteja com ciúmes da senhorita! E, dessa vez, tenho certeza de que não possui nada para provar o contrário, não é?

— É claro que... — a dama começou, mas desistiu de falar no mesmo momento. Seu coração estava começando a acelerar.

— Faz todo o sentido — continuou a pequena, ignorando o desespero eminente da amiga. — Ela lhe contratou tão rapidamente!

— Ana, do que está falando? — Margareth forçou-se a rir. Estava certa de que aquilo não passava de ilusões sem pé nem cabeça. E estava em choque por ver que alguém como Anastácia seria capaz de criar uma narrativa daquelas em sua cabeça. — Isso é impossível!

É impossível que Sienna, uma mulher, sinta algo assim por uma dama de companhia, também mulher, foi o que pensou. E, de repente, não gostou tanto das suposições de Anastácia. Não gostou de imaginar que era isso o que ela estaria espalhando por aí, para suas amigas. Que Sienna sentia ciúmes de uma mulher. E que essa mulher era ela.

— Oh, Margareth... — Ana abriu um sorriso. — Pare de ser tão modesta! Não há vergonha nenhuma em admitir que é querida pela princesa. Quem me dera ter esta oportunidade!

Margareth continuou em silêncio, chocada, sem nada a acrescentar. 

— Pense comigo... É claro que ela teria ciúmes da senhorita. Gabrielle está prestes a se tornar noiva e, logo, sua Alteza não será mais a prioridade de Vincent. Imagino que ela não gostaria de perder sua outra dama de companhia, também.

Allboire respirou fundo ao perceber que Sinclair não estava falando do que ela achava que estivesse. Seus batimentos estavam voltando ao normal, de pouco em pouco.

— É — ela concordou. — Pode ser que tenha razão nisso.

— Não resta dúvidas! — comemorou Ana, com um sorriso triunfante. — Além disso, desde que chegou ao castelo, a princesa tem estado diferente. Ainda continua com aquela seriedade no rosto, mas parece que algo mudou. Como se, de repente, estivesse mais alerta ao seu redor. E não sou a única a perceber isso! Todos notaram que ela tem saído mais de seus aposentos.

Um sorriso foi crescendo no canto da bochecha da dama, conforme ela escutava a amiga falar, mas ela o cortou antes que tomasse conta de sua face.

— Bom — gaguejou. — Talvez seja fruto da movimentação do castelo. O castelo tem estado muito movimentado ultimamente e...

Do lado de fora da sala, um barulho estrondoso reverberou pelos corredores e as fez pular em suas cadeiras. Como se um relógio houvesse despertado em meio à conversa, um trovão rugiu alto pelo céu da noite. A sala clareou pela janela e ambas se assustaram com o início de uma tempestade (algo incomum em Kaena, para aqueles, como vocês, que não estão acostumados).

Margareth engoliu em seco e olhou para os pães em cima da mesa, incapaz de olhar para Ana.

Naquele momento – e ela não sabia o porquê – quis sair daquela sala e correr para os aposentos de Sienna, onde não havia nenhuma janela por onde pudesse enxergar os trovões ou a chuva. Ali, estaria segura da tempestade.

— O castelo sempre foi movimentado, Margareth — rebateu Anastácia, com a mão no peito, respirando fundo após o susto. — No que está pensando?

A dama levantou o olhar para o rosto de senhorita Sinclair. Sua respiração também estava pesada, mas ela não parecia perceber.

— Em nada — respondeu, num só suspiro. Mas havia mentido.

Ela estava pensando em Sienna.

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PERGUNTINHA ESPECIAL: Na opinião de vocês, Anastácia é apaixonada por Margareth ou apenas a admira platonicamente? Deixe nos comentários!

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