16: a cidade e as maçãs compradas
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O assunto das papeladas do distribuidor de vinhos voltou a atormentar as cabeças de Gabrielle, Margareth e Sienna. Dessa vez, de uma maneira um pouco diferente.
Naquela manhã, enquanto caminhava com suas damas até a carruagem que a levaria para longe do castelo por algumas horas, a princesa parecia estar ainda mais ansiosa do que durante a noite passada, no baile de boas-vindas aos Lurks. O motivo era que, poucos dias antes, Rainha Anna ordenou que a filha viajasse até os estabelecimentos do fornecedor de vinhos para rever seus negócios com a Coroa.
A fornecedora ficava no centro da cidade de Dom Síntio, a mais próxima dali. Por menor que fosse a distância, no entanto, já era o suficiente para que senhorita Bolgart pudesse desfrutar o prazer de ficar longe das paredes deprimentes daquele lugar por um bom tempo. E para que sua mãe pudesse ter paz, é claro.
O dia parecia mais quente do que o normal para a Primavera de Kaena e todos os nobres, inclusive Bolgart, Vincent e Allboire, carregavam pequenos leques junto de roupas leves e lenços em suas mangas para sobreviver ao calor escaldante que aumentava conforme a tarde se emoldurava pelo cenário.
Margareth foi a última das três a adentrar a carruagem. Não era capaz de esquecer a visão que teve no dia anterior e, por isso, ouvia menos ainda do que as amigas tanto conversavam entre si. Ela apenas notava que Sienna continuava a falar pelos cotovelos, como fez no baile, e isso significava que estava nervosa. Gabrielle, entretanto, parecia leve e tranquila. Estava mais arrumada do que o normal, com um vestido ornamentado verde-claro e o cabelo arranjado num penteado voluptuoso que assemelhava-se a uma estátua posta bem no topo de sua cabeça.
— Está um dia adorável, hoje, não está? — Gaby comentou, assim que a porta da carruagem foi fechada pelo lado de fora. — Passei a noite com medo de que uma chuva estragasse nossa viagem, mas felizmente pegamos uma manhã muito ensolarada para partir!
Marga ficou quieta, olhando para fora da janela, com os olhos focados num arbusto por cortar, mas com a mente longe dali. Sienna, sentada do outro lado do banco, observou seu rosto com cuidado, esperando por uma resposta dela. Uma curiosidade desagradável surgiu em seus olhos.
— Sim, o dia está lindo — a ruiva murmurou, com o olhar mantido sobre os olhos perdidos de Margareth.
— Se Anastácia estivesse conosco, ela não pararia nem por um segundo de falar sobre como o sol está amarelo feito seus fios de cabelo. Ela gosta tanto da cor de seus cabelos... — A dama riu. — Mas, de fato, está muito amarelo.
— O que?
— O sol, Sienna. Não está amarelo?
— Oh, sim — a princesa suspirou. — O sol está sempre amarelo, Gabrielle. Esta é a cor do sol.
— Às vezes, está cinza.
— Isso são quando as nuvens o cercam. Mas é sempre amarelo.
— Sendo sempre amarelo ou não, não se parece nem um pouco com os cabelos de Anastácia quando está coberto por nuvens. A menos que ela envelheça e seus fios embranqueçam com o tempo.
— Este é o tipo de conversa que tem com Anastácia e aquelas meninas? Parece que voltamos a ter treze anos de idade, de repente!
— E qual o problema? — Gabrielle a olhou de cima a baixo. — Anastácia é uma menina inteligente, apesar de sua idade. Ela apenas tem uma grande visão do mundo.
— Essa grande visão do mundo vai colocá-la em problemas, algum dia — pontuou Sienna, com um tom amargurado raro de si. — Para mim, parece que senhorita Sinclair é apenas uma pequena curiosa de quinze anos, sem pretensões na vida além de ficar olhando para uma bola no céu.
— Dezesseis anos — corrigiu Vincent. — E por que ficou tão aborrecida, de repente? Você não é muito diferente dela, sabia? E Margareth gosta de Ana, também! Elas, inclusive, vão juntas a um jantar.
Sienna calou-se no mesmo momento, anestesiada pela informação recém-jogada no ambiente. Do lado de fora, elas puderam ouvir os guardas gritarem e a carruagem começou a andar em direção à estrada.
— Não é, Margareth? — Gaby cotovelou a amiga, com um sorriso triunfante, como se estivesse a testar a paciência de senhorita Bolgart como vingança por sua amargura.
Marga voltou à realidade no mesmo instante. Olhou, primeiro, para o cotovelo que lhe cutucou, depois, para a face sorridente de Gabrielle e, depois, para a face endurecida de Sienna.
— Bem... — gaguejou. — O que disse?
— Diga a Sienna sobre seu jantar com Ana — explicou a colega, com o tom de voz maduro mascarando a birra que fazia, e esperou em silêncio.
— Ah, sim. — Margareth respirou fundo. Os olhos estavam alertas, tentavam deduzir o motivo para o qual a princesa encarava o chão com tanta aspereza. — Bem, sim. Anastácia convidou-me para um jantar... — respondeu, e Sienna levantou a ela um olhar duro no mesmo momento. A dama vacilou. — Bem... Para falar a verdade, não faço ideia do que seja.
Depois que terminou de falar, Marga recostou-se sobre o banco, encolhida, como se gaguejar tanto houvesse cansado seu espírito.
Gabrielle lançava a Sienna um olhar triunfante, mas a ruiva ficou calada, com um sorriso amarelo no rosto.
— Senhorita Bolgart não gosta de Anastácia, Marga — explicou a dama mais velha. — Não há motivo algum para isso, não acha?
— Isso, com certeza, não foi o que eu disse — a princesa protestou.
— Disse que a considerava uma pequena curiosa de quinze anos — rebateu Gabrielle — e sem perspectivas na vida.
— E isso está longe de significar que eu não goste dela. — Sienna balançou a cabeça, inquieta. — Talvez, devesse voltar às aulas de interpretação com senhor Mendraud.
Margareth acreditou, por alguns segundos, que o que ocorria ali tratava-se de uma briga de verdade. Eu também teria acreditado nisso, se não soubesse de tudo. Mas Gaby carregava um sorriso discreto e dissimulado no rosto, como se gostasse de provocar a outra. Anos de amizade, pensou Allboire. Elas agiam exatamente como Enrico e Eleanor.
O que posso revelar é que Gabrielle não estava nem um pouco chateada com Sienna e Sienna não estava nem um pouco chateada com Gabrielle. Sienna estava, da maneira mais simples de se resumir, chateada consigo mesma. Porque não conseguia descobrir o motivo pelo qual estava tão chateada.
A viagem durou cerca de duas horas e tudo o que pôde ser escutado naquela carruagem limitou-se a breve comentários contidos e o trotar dos cavalos, lá fora. Gabrielle, de vez em quando, soltava algum comentário que mencionava a beleza das árvores, ou o amontoado de nuvens que formava-se de pouco em pouco, ou as construções clássicas que passavam ao longe. Margareth não respondia a nada, continuava presa em seus pensamentos. Mas Sienna, ao menos, assentia com a cabeça e era assim que Vincent sabia que ela ainda estava chateada com alguma coisa. Era assim que elas costumavam funcionar.
A verdade era que ela não mais sabia se Sienna ainda estava machucada pelos ocorridos do passado ou se a princesa passou tanto tempo a esconder-se dentro de si mesma que aquela, de agora, era sua nova forma de lidar com tudo. Gabrielle era incapaz de saber se algum dia voltaria a ver sua antiga amiga novamente e, por vezes, isso a assustava. Mas não havia nada que ela pudesse tentar. Não havia mais nada para se fazer além de deixar a ruiva viver daquele jeito. Por isso, a dama também aprendeu a sobreviver à sua própria maneira, de forma que, não só Sienna, como também Gabrielle, guardavam todas as coisas para si mesmas.
Mas havia Margareth, agora. Gaby sabia disso. E posso afirmar que ela sentia o mesmo que eu, naquele momento. A certeza de que faltavam apenas alguns passos para tudo começar a mudar. Ou alguns olhares.
A carruagem, então, parou. E as três acordaram de seus pensamentos de viagem.
Gabrielle puxou a cortina ao seu lado e espiou lá fora, depois voltou o olhar para dentro e suspirou, aliviada.
— Graças a Deus — desabafou sem notar, mas logo conteve-se em um sorriso discreto para ambas. — Parece que chegamos.
Dentro de alguns segundos, a porta da carruagem abriu-se, revelando a elas o cavaleiro que as conduziu pela estrada. Ele ajudou cada uma a descer, estendo a mão para as pontas dos dedos enluvados das donzelas. Depois, fechou a porta e pôs-se de pé em frente ao móvel.
Margareth olhou em volta, de queixo caído e olhos hipnotizados.
— É aqui? — indagou, admirada.
— É lindo, não é? — Gabrielle abriu ainda mais o sorriso em suas bochechas.
Frente a elas, a visão de um extenso campo repleto de lírios brancos e duas árvores cheias revigorava seus olhares. Muros cobertos por galhos e folhas contornava o local e, num caminho desgastado, havia uma longa trilha de concreto que corria até a outra ponta do gramado e cortava-o bem ao meio. No fim da trilha, estava um casarão.
Marga engoliu em seco, enquanto observava, ao longe, um cavalheiro que as fitava do lado de dentro de uma das janelas do segundo andar. Aquela residência era, com toda a certeza, propriedade de alguém muito rico, de forma que até mesmo o homem alto, de silhueta magra, bigode liso e olhar frio parecia fazer parte da natureza daquela vista. Como se fosse sua obrigação estar ali, o dia inteiro, a observar através do vidro da janela.
As damas acompanharam Sienna pelo caminho de concreto e os detalhes do casarão tornavam-se cada vez mais visíveis e deslumbrantes conforme avançavam para perto. Margareth pôde notar uma escultura de mármore bem no centro do salão de visitas. As portas de entrada da residência estavam abertas, como se estivessem cientes de que alguém estava chegando e que esse alguém não precisava pedir permissão para entrar.
Marga levantou a cabeça e olhou de relance uma última vez para a janela antes de passar pela porta. Observou o homem desconhecido sair de sua visão e afastar-se do vidro.
Apesar da propriedade extensa, o casarão não aparentava ser o exemplo de lugar onde alguém poderia perder-se facilmente pelos corredores. Talvez, isso fosse um ponto errôneo, pois o homem em questão demorou um bom tempo para aparecer.
As meninas sentaram-se em silêncio sobre os bancos ornamentados do salão e esperaram ali por cerca de um quarto de hora. Um funcionário bem-vestido apareceu duas vezes para avisar que senhor Ludwarg, o dono daquele local, logo apareceria. Ele as avisou assim que chegaram no local, mas, depois de dez minutos de espera, reapareceu e falou a mesma coisa, com as mesmas palavras, como se houvesse sido mandado ali de propósito.
O ambiente era quieto, caído, de um completo silêncio. Constrangedor, até.
Margareth e Gabrielle não perceberam o que ocorria. Mas Sienna, com toda a certeza, sabia. Até porque ela era única que deveria notar. Não restava dúvidas de que sua mãe havia pedido para que as tratassem com completo descaso. Para saber se a filha aguentaria sem fazer alguma cena. Para que Sienna soubesse que estava sendo observada, sob custódia da rainha, mesmo que longe do castelo, e que isso não acabaria até o dia em que Anna Bolgart fosse para o caixão.
Allboire observava, pela janela, a via de mão dupla que dava saída aos jardins do lado de fora quando sir Ludwarg apareceu na entrada daquele salão. O homem mal notou a presença das damas ali, dirigiu-se apenas a senhorita Bolgart, e nenhuma das duas sentiu-se ofendida. Afinal, esses eram os seus papéis: agirem feito uma sombra duplicada da princesa.
Quando Sienna aproximou-se do cavalheiro e acompanhou-o em seus passos para dentro do resto do casarão, Margareth preparava-se para levantar-se junto, porém Gabrielle a conteve.
— São assuntos que não nos pertencem — foi tudo o que disse, despreocupada.
. . .
Senhorita Vincent avisou a Marga para que esperasse sentada pela volta da princesa. Ela havia dito isso em um tom leve e cômico, porém Sienna, de fato, não voltou cedo.
Depois de um bom tempo, as damas de companhia resolveram deixar o ambiente frio do salão de entrada do casarão para caminharem pelo jardim de onde vieram. Gabrielle falava a todo o momento e Margareth, por vezes, respondia no mesmo tom de animosidade. Senhorita Vincent possuía esse efeito em suas conversas. Como se estivesse profundamente interessada no que o outro indivíduo tinha para dizer a respeito de algo bobo. Isso alegrava as pessoas.
Em algum momento, o mesmo funcionário que as recebeu durante a espera por Sir Ludwarg apareceu, segurando um cordão bem grosso que segurava um cachorro preto, de pernas longas e pelo liso. Gabrielle rapidamente se desvencilhou dos braços da amiga e, por um quarto de hora, focou todas as suas energias apenas em dar atenção ao animal.
Margareth permaneceu afastada, recostada sobre a carruagem. Estava insegura, pois nunca havia tido experiências com cachorros, mas é claro que não diria isso a Gaby. Ela deu a desculpa de que gostaria de descansar e a dama não contestou, porém sabia que era mentira.
A alguns passos dali, enquanto Vincent corria para lá e para cá com o cão, a barulheira do lado de fora daquela propriedade voltou a chamar a atenção de Marga. Vinha da saída, do caminho de via dupla o qual a morena já encarava há um certo tempo. Um dos lados dava para a estrada pela qual vieram, mas o outro era de onde parecia surgir os sons.
Margareth checou se Gabrielle ainda ocupava-se com o amigo e avançou delicadamente até o portão de saída do jardim. Não estava trancado. Ela o puxou devagar e o metal rangeu bem baixinho, como um alarme. Mas nem Vincent e nem o funcionário de Sir Ludwarg, que parecia completamente enfeitiçado pela dama ao lado, notaram.
O caminho à sua frente era uma rua estreita, com folhas e arbustos não apenas no muro do casarão, mas também no da propriedade à frente e nas próximas, como se fosse tudo uma só. A estrada parecia interminável, mas uma rua como aquela havia de levar a algum lugar. Ao menos, foi o que ela pensou antes de seguir para dentro daquele labirinto.
. . .
Depois de virar tantas esquinas, a última coisa que Margareth esperava encontrar era uma vila.
Definitivamente, não tratava-se do mesmo tipo de vila que existia em Irbena. Não só a estrutura das construções distinguia-se, como também os habilitantes dali pareciam diferentes.
("Dotados financeiramente" seria o que eu teria dito a Margareth, se pudesse.)
Pelas ruas, carruagens corriam de lá para cá e diferentes tipos de residências abrangiam diferentes tipos de negócios. Conforme a menina avançava, insegura e deslumbrada, como uma simples criança, encontrava comerciantes ambulantes que vendiam frutas, jornais ou qualquer outra mercadoria barata. Havia papéis colados pelas vitrines e nobres que trafegavam pelas calçadas e pessoas que gritavam, expondo novidades vindas direto do castelo. Aparentemente, já havia chegado a todos a notícia de que a família Lurk estivera em território de Kaena.
Ela prosseguiu mais em seu caminho, querendo ver além do que apenas fábricas e alojamentos. Desejava destrinchar tudo de novo que ali houvesse. Desejava ver árvores e crianças e ainda mais cor.
No entanto, conforme avançava pela rua vizinha, tal realidade parecia cada vez mais distante. A paisagem tomava uma aparência escura, frívola e assustadora. As casas de onde estava eram diferentes. Pequenas, reclusas e frágeis, com mofo e rachaduras acenando por todas as paredes. As crianças com roupas velhas, sentadas sobre o chão, usando de pedrinhas de cascalho como diversão. As mães os deixavam por ali, lavavam roupa suja num único poço público. E havia o cheiro que saía dele. O cheiro de carne podre.
Margareth obrigou-se a parar de avançar ao momento em que chegou na esquina de uma nova rua. Estava espantada com o que via. Nunca imaginou que Kaena pudesse possuir um lado obscuro como aquele. E então, percebeu que era exatamente isso o que a família real queria que pensassem.
Ela observou a placa da rua onde estava. O nome Caliver Romstock destacava-se em tinta branca sobre o fundo marrom, mas não brilhava feito as outras placas. Essa parecia velha e opaca. Morta pelo tempo.
Caliver Romstock. Lembrava-se desse nome.
A alguns passos dali, encarava-lhe uma furtiva construção de sobrado de pedras. A plaquinha de madeira apagada sobre a porta da frente rachada. "Casarão Azul" escrito em letras tortas e um peixe sangrento desenhado bem ao seu lado.
Esse era o Casarão Azul que pegou das anotações de Gabrielle. Um bar.
A única coisa que ela queria descobrir era o que aquilo havia em comum com Irbena. Mas, agora, também estava interessada em saber o que Gaby havia em comum com aquilo.
Sem ao menos fazer o que sempre fazia – avaliar se aquilo era uma boa ideia –, Margareth foi de encontro às portas e as empurrou com a maior confiança que tinha. E sua confiança evaiu-se de si um segundo depois de fazer isso.
O lugar tratava-se de um grande salão velho, com mesas e cadeiras por todos os lados, grupos de pessoas exageradamente famintas sentadas à mesa e, no centro de tudo, um balcão envolto por homens enormes, sedentos e bêbados. O Casarão Azul tratava-se de uma taverna – ou, pelo menos, parecia-se muitíssimo com uma.
Margareth quis dar meia-volta e sair dali o quanto antes, mas muitos estranhos já a encaravam com um certo rancor no olhos, como se soubessem que ela não pertencia ali e estudassem seus próximos passos. É claro que suas vestimentas de condessa não ajudariam a passar despercebida num lugar como aquele. Mas, apesar disso e de sua face assustada, ela forçou-se a transparecer paz enquanto avaliava a multidão e caminhava pelo local. Talvez, encontrasse uma porta dos fundos por onde pudesse escapar ou um espaço livre para se esconder de todos.
Parou em um canto vazio, à direita do salão, bem atrás de um pilar de madeira e de uma mesa cheia de homens que pareciam prestar mais atenção às mulheres que os serviam bebidas do que em Marga. O que tornava aquele o lugar perfeito para observar tudo à sua volta.
Não havia mesas livres e a única coisa, além de toda a gritaria ecoante, que chamava sua atenção era o retrato na parede ao seu lado.
Era enorme, brilhante, bonito e limpo, diferente de tudo dentro do Casarão Azul. Parecia ser a única parte digna de limpeza naquele lugar. Quem estava retratado, ela não sabia, mas era um casal de jovens esbeltos e elegantes. O homem usava uma coroa e suas vestimentas eram cobertas em ouro. O olhar verde instigava a qualquer um que passasse por ali e transmitia uma dose leve de benevolência a Margareth, especialmente.
Já a mulher ao seu lado não carregava coroa alguma e suas vestimentas eram muito mais leves do que as do marido, com seu vestido branco de tecelagem simples. Mas seu olhar era feliz, o canto de seus lábios carregava uma leve distorção para cima, como se ela fosse incapaz de ficar séria, nem por um só segundo. Uma das mãos descansava sobre as do homem e a outra cobria a barriga. Pareciam categoricamente posicionadas daquela forma. Mas nada disso era o motivo para aquela pintura chamar tanto a atenção da dama.
Seja lá quem fossem, eles pareciam verdadeiramente alegres com o que possuíam ali.
— Senhorita Vincent? — exclamou uma voz surpresa, logo atrás da garota.
Margareth virou-se no mesmo momento, assustada. Ela observou a mulher pequena que parecia ter lhe chamado de "Senhorita Vincent" desfazer, aos poucos, a expressão feliz em seu rosto enrugado.
— Oh, céus. Me perdoe! Achei que fosse outra pessoa — tornou a explicar, com o cenho franzido e os olhos transtornados para o corpo da garota. — Suas vestimentas parecem tão caras! O que uma dama como a senhorita faz por aqui?
Marga gaguejou a resposta. Acreditava que o motivo de estar ali não era uma boa história a ser contada, nem mesmo para alguém que não faria diferença alguma em sua vida. E só depois de raciocinar sobre isso foi que notou um ponto importante daquela conversa.
— Espere um minuto — murmurou, atordoada. — A senhora chamou-me de Vincent? Conhece Gabrielle?
A mulher recuou no momento em que ouviu a pergunta. Sua expressão leve e gentil desapareceu no mesmo momento e seus olhos tomaram rumo a um frieza que assustou a dama.
— O que quer neste lugar? — disse ela, num tom de voz que assimilou-se mais a um rosnado contido. — Quem é você, hein? Por que quer saber de Gabrielle?
— Eu...eu não... — Marga fitou o rosto da senhora, tentando adivinhar se aquilo soou como uma ameaça apenas para ela ou se de fato estava sob perigo ali.
Em qualquer possibilidade, estava num labirinto de via única. Não podia e nem queria revelar nada àquela mulher. Mal a conhecia, mal sabia seu nome e, com aquele comportamento, também não estava muito disposta a saber.
Pensou em fugir dali. Afinal, uma senhora pequena, de cabelos grisalhos, beirando aos sessenta e com uma saúde duvidável não possuiria a capacidade de alcançá-la. Mas os homens ao seu redor certamente possuiriam.
— Desculpe — gaguejou. — Eu já estava de saída...
— Marga! — foi interrompida por uma voz que fez o coração de Margareth sair do próprio peito. Era a voz de Gabrielle. — Ainda bem que lhe encontrei! Estava lhe procurando desde que saiu daquele jardim.
— Senhorita Vincent! — A senhora assustadora recompôs-se, envergonhada. — O que faz aqui? E quem é esta jovenzinha?
— Olá, senhora Ramony. É bom vê-la — alegou a dama, com um sorriso calmo no rosto. Depois, voltou os olhos alertas para Margareth, como se dissessem tudo e nada ao mesmo tempo. — Esta é senhorita Allboire, ela não é daqui. Viemos à cidade junto de senhorita Bolgart, para resolver algumas coisas, e parece que acabou se perdendo. Não é mesmo, Marga? — dirigiu a pergunta à amiga, que, com a garganta fechada, foi apenas capaz de sorrir e assentir com a cabeça.
— Oh, céus — a mulher suspirou. — Tome mais cuidado, da próxima vez! Fique sabendo que não é seguro caminhar por esses lados da cidade. Especialmente aqui, no Casarão. Pode se meter em problemas sérios, menina!
Com o sermão dado, senhora Ramony voltou ao seu estado de paz e apertou Gaby com um abraço.
. . .
Com a insistência da mulher para manter Margareth e Gabrielle seguras, as damas voltaram para a cidade em questão de minutos.
Agora, elas caminhavam pela cidade e Marga acompanhava a amiga com dificuldade. Seus pés estavam pesados, assim como sua consciência. Estava claro que ela não havia entrado naquele local por acaso do destino. E, para piorar sua culpa, Gaby não disse nada o caminho todo. Ela agiu como Sienna, naquele dia. Séria e quieta, sem expressar o que realmente sentia. Aquilo deixava a menina assustada.
Margareth apenas quebrou o silêncio quando estavam na calçada principal novamente, próximas de adentrar o caminho de flores e arbustos que daria ao jardim da propriedade de Sir Ludwarg. E só fez isso porque sua cabeça parecia prestes a explodir naquele momento.
— Gaby, gostaria de dizer que...
— Espere — a dama cortou a conversa logo de início.
Ela parou de andar para cumprimentar um comerciante ambulante de maçãs logo ao lado. Retirou algumas moedas de sua bolsinha pequena e as trocou por duas das maiores frutas do cesto do homem. Depois, voltou para o lado da amiga e estendeu uma das maçãs para ela, sem esboçar gentileza e tampouco raiva.
— Pode falar — acrescentou.
As duas voltaram a caminhar lentamente pela rua.
— Bom — Margareth murmurou. — Gostaria de pedir desculpas.
— Por qual de suas ações, exatamente, gostaria de se desculpar? — indagou Gaby. — Por invadir meus aposentos, por roubar meu livro, ou por ter fugido do jardim e ter ido ao Casarão Azul sem avisar?
As palavras não podiam ter sido mais certeiras e duras do que foram para a jovem, que as recebeu feito um soco no estômago. É claro que Gabrielle saberia do livro. Ela provavelmente havia o deixado aos fundos da prateleira para que não caísse em mãos curiosas. Mãos como as de Margareth.
— Por tudo — disse a mais nova, examinando a própria maçã, sem levá-la à boca. — Sei que não possui motivos para acreditar em mim, mas não fiz isso com a intenção de espioná-la.
Vincent fitou seus olhos como se pudesse ler os pensamentos da amiga. Dando-lhe o benefício da dúvida, ela perguntou:
— Então, com quais intenções o fez?
— Com nenhuma ruim, posso afirmar — Marga explicou. — Não minto quando digo que não me importo nem um pouco com seus segredos, pois são seus para guardar. Mas tenho a necessidade de saber mais sobre onde vim e sobre o que ocorreu lá. Assim como a senhorita deve ter, para guardar um livro como aquele. — Enquanto a amiga falava, Gabrielle fitava o cenho, com a compreensão atingindo sua consciência. — Mesmo que não pareça, os anos que vivi em Irbena, para mim, são como um véu escuro e sem forma alguma. Apenas não sou capaz de manter a calma enquanto penso que há tanta coisa que deveria saber e que não sei.
A dama mais velha respirou fundo, em silêncio, e encarou o chão conforme passeava.
— Também sou de Irbena — confessou baixinho, como se fosse um fato a ser escondido. — Eu não nasci em Kaena.
Os olhos de Margareth arregalaram no mesmo momento.
— Mesmo?
— Sim. Mas não explicarei minha história para você. Não há nada de extraordinário nela para ser contado.
— Tudo bem — concordou Marga, calma. Mas, por dentro, incendiava de felicidade por encontrar alguém como ela em Kaena. Alguém que poderia compartilhar de suas dúvidas e de seus medos. E por imaginar que esse alguém esteve tão perto, esse tempo todo...
— De qualquer maneira, não duvido de sua honestidade — explicou Gabrielle, por fim. — Mas peço que, se puder, esqueça sobre esse assunto. Entendo sua curiosidade, mas o Casarão Azul não tem nada a ver com o que procura. Posso ajudar-lhe a descobrir mais sobre Irbena, se é o que deseja. Mas aquelas anotações não foram feitas por mim e não podem te ajudar em coisa alguma. Está bem?
— Está bem — confirmou Margareth, novamente. Ela estava muito feliz.
— Aliás, não diga nada sobre o dia de hoje a ninguém. Certo?
— Certo — voltou a afirmar. Estava muito, muito feliz.
— Especialmente para Sienna — disse Gaby, e de repente a alegria de Marga abaixou um pouco. — Ela não pode saber que isso aconteceu. Deixe-a fora disso. Está certo?
Margareth apenas concordou com a cabeça, dessa vez. Estava intrigada com os motivos daquele pedido, mas decidiu que seria melhor não perguntar. Ela já havia procurado por respostas demais, naquele dia.
. . .
Quando adentravam os portões do jardim da fábrica de vinhos, Sienna havia acabado de despedir-se de Sir Ludwarg e percebeu logo de cara que as damas voltavam de algum lugar.
— Uau, demorei tanto assim? — comentou a princesa, mais para si mesma do que para as duas. — Por onde estiveram andando?
Margareth encarou o rosto curioso da ruiva curvar-se para o seu e esperar por uma resposta sincera, e aquilo travou sua garganta. A primeira regra de uma dama de companhia era nunca mentir à princesa. Mas, quando olhou para o lado, observou a expressão de Gabrielle permanecer intacta, com um sorriso tão sereno que chegou a assustá-la.
— Fomos comprar maçãs — respondeu a mais velha, estendendo a fruta com uma das mãos, como se não fosse nada. — Estávamos morrendo de fome, não é, Marga?
Allboire assentiu com a cabeça, tentado forçar o mesmo sorriso que saía de Gaby, mas nem chegando perto. Naquele momento, ela indagou-se sobre quantas vezes a amiga não teria omitido algo de senhorita Bolgart.
A princesa franziu o cenho, com uma expressão estranhamente inocente.
— Não trouxeram uma para mim? — indagou, esperançosa.
— Só havia duas — explicou Margareth, sem perceber que estava cooperando com a mentira até abrir a boca. — Mas pode ficar com a minha, se estiver com fome.
Sienna fitou o rosto de Allboire com uma surpresa boa. Ela deu um meio-sorriso, que durou dois ou três segundos, e depois suspirou, corada.
— A senhorita é um doce. Mas não precisa, muito obrigada — disse, sem fazer ideia de que Margareth não estava sendo verdadeiramente genuína e que, pela primeira vez, não era ela quem estava no controle de tudo.
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Oi, gente!
Queria pedir desculpas pela demora para atualizar isso aqui. Eu postei no meu perfil que estava difícil de revisar esse capítulo, porque já escrevi ele umas 300 vezes, estou até cansada de reler! hehehe
Mas enfim, nessa semana, Vossa Alteza conquistou 2.6K de leituras e 600 votos e isso me deixou extremamenteee feliz!! Além disso, adivinha quem é universitária agora? Isso mesmo, consegui passar no processo seletivo e agora sou caloura de Letras - Português/Francês na Unifesp!
Esse também foi um dos motivos (do meu colapso) pelos quais eu demorei tanto pra atualizar aqui. Estava muito estressada com o SiSU e vestibulares e trabalhos, então não consegui me concentrar como deveria.
Enfim, espero que tenham gostado do capítulo! Prometo que os próximos serão mais legais (e mais boiolinhas do que esse). Se quiserem conversar, estou sempre aqui. <3
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