15: segredos pesados demais para se esquecer


AVISO: é possível que você esteja lendo o capítulo 15 antes do 14. O Wattpad acabou bugando a ordem desses dois capítulos, então peço que, antes de começar esse capítulo, tenha certeza de que já leu o "14: uma pausa para as idas e vindas de um domingo".

Quando o dia de segunda-feira aproximou-se, Margareth levantou de sua cama ansiosa e decidida.

Seria o momento perfeito para, enfim, contar à princesa sobre o que ela escutara a seu respeito, pois Gabrielle ainda não havia voltado de sua viagem misteriosa e Sienna parecia ter muito menos tarefas do que houvera no sábado. Como tais tarefas pareciam ser a única coisa que impedia as duas de ter uma conversa a sós, a dama imaginou que suas dificuldades houvessem, enfim, cessado.

Mas é claro que ela não podia estar mais errada.

Marga encontrou senhorita Bolgart logo pela manhã, quando a mesma estava a caminho de suas aulas diárias com o sr. Mendraud. Ali, ocorreu sua primeira tentativa de conversa, mas a princesa não parecia estar afim para ouvir qualquer coisa dita pela dama, pois, de acordo com ela, "estava muitíssimo atrasada e precisava correr para chegar a tempo".

Após o fim da aula, ambas caminharam lentamente de volta aos aposentos da princesa, enquanto a mesma fazia um monólogo nervoso no qual as flores e o "belíssimo dia" eram o principal assunto. Margareth ainda tentou interrompê-la, uma vez ou duas, mas a princesa, por algum motivo, parecia inquieta demais para calar-se por um só segundo.

Sua última tentativa ocorreu quando as duas já estavam acomodadas nos sofás do quarto de Bolgart. Sienna lia um livro, quieta como uma pedra, movendo apenas os seus pequenos olhos castanhos conforme avançava as páginas, de lá para cá, de cá para lá. Marga, por sua vez, não prestava muita atenção no livro, pois carregava o peso dos segredos que desejava libertar.

— Há algo de errado comigo, senhorita Allboire? — indagou a princesa, impaciente, sem ao menos retirar seus olhos do livro.

— Como? — gaguejou Margareth, surpresa com a fala.

— Está a encarar-me há dez minutos. — Ela não movia um músculo, como se afastasse seu contato com a dama a todo o custo. Fazia isso muitíssimo bem, pois sua voz não mostrava-se nem um pouco simpática. — Isso está atrapalhando minha leitura.

— Desculpe. — A morena engoliu em seco. — Não há nada de errado com a senhorita, alteza.

Sienna respirou fundo, levantou seus olhos e focou-os no rosto inquieto da dama. Margareth estremeceu com o fogo direcionado em si. Ela era capaz de dizer que algo afligia a princesa. Apesar de sua face salpicada lançar à garota um olhar irritado e profundo, Marga, ainda assim, sabia que o que a irritava ia além de umas simples encaradas recebidas. Era algo mais.

E, de fato, era. Algo que senhorita Bolgart também andava escondendo.

— Pois bem — a ruiva bufou, fechando o livro e endireitando-se em seu assento. — Já que não parece estar interessada em sua leitura, preciso que faça algo para mim.

. . .

A tarefa que Sienna deu a Margareth pareceu ser apenas uma desculpa para expulsá-la de seu quarto. E realmente foi.

De acordo com a princesa, Gabrielle voltaria de sua viagem a qualquer momento daquela manhã. E tornou-se responsabilidade de Allboire recebê-la nos estábulos e ter a certeza de que ela chegara bem e sem nenhum arranhão.

Para sua sorte, Vincent chegou no mesmo momento em que Margareth alcançou a entrada dos campos e não foi preciso ficar por ali por muito tempo. Um sorriso ambíguo tomou conta de sua face, pois a presença de sua querida amiga ali também significava que suas chances de conversar a sós com a princesa acabaram-se de vez. Ela tentou ignorar a parte de seus pensamentos que pedia-lhe para franzir o cenho e continuou a caminhada até a jovem.

Mas parou no mesmo segundo, pois já havia outra pessoa que esperava por Gabrielle. Klaus Bolgart estava prostrado frente à dama, com algo sério a sair de sua boca, algo que Marga era incapaz de escutar. Ela estava longe demais dos dois para que compreendesse um terço do que ocorria, mas tinha a certeza de que seus olhos não mentiam ao vê-los tão próximos um do outro. Muito mais do que próximos, se permitem-me dizer a verdade.

Klaus erguia delicadamente as mãos da dama frente a si. O que quer que estivesse a falar, parecia deixá-la cada vez mais nervosa do que já estava ao olhá-lo fundo nos olhos. Gabrielle não parecia inteiramente agradada e tampouco inteiramente incomodada com a situação. Seu rosto fechado apenas lutava numa guerra entre um sorriso e uma lágrima. Era como se sua mente acabasse de ser atacada por um bando de pensamentos e ela não fosse capaz de decidir se queria que fossem embora ou que dominassem-na por completo.

De repente, seu olhos piscaram e ela pareceu voltar a realidade. Vincent afastou-se rapidamente do príncipe e balançou a cabeça em negação de algo. Algo que também não pudera ser escutado.

Quando a mesma despediu-se dele, Margareth já estava perto o suficiente para ser avistada por ambos. A face dos três congelaram, e Klaus, após engolir em seco, foi embora dos campos abertos sem nem cumprimentar a jovem. Gabrielle, no entanto, imaginou que a mesma estava ali para buscá-la e não ignorou sua presença. Caminhou até a mesma com a respiração pesada e fez uma reverência silenciosa.

— Sienna a enviou aqui? — indagou, com um sorriso tranquilo, como se nada houvesse acontecido nos últimos segundos.

— Sim — Marga afirmou, de face paralisada. — Ela pediu para acompanhá-la.

— Ótimo — exclamou.

Ambas começaram a andar.

— Como esteve a princesa, nos últimos dias? — Gabrielle dançou com as palavras, consciente do que fazia. — Deram-se bem, sozinhas?

Margareth engoliu em seco. Ela não havia escutado errado. A dama, de fato, colocou ênfase na última palavra.

— Sim, claro — afirmou, tossindo a resposta para fora. — Mal conversamos, para falar a verdade. A princesa esteve muito ocupada nos últimos dias. — Marga pensou por um momento. — E hoje. Ela também não parece muito bem, hoje.

— Oh, sim —  respondeu Gabrielle, sem deixar para trás o tom empático. — Isso a aflige?

— Não, de jeito algum — disse a menina. — Um pouco, talvez.

— Não se preocupe, Margareth. — A dama sorriu amigavelmente. — Imagino que ela esteja assim pela ansiedade com a chegada dos Lurks. Provavelmente, nada com a senhorita.

Allboire franziu o cenho.

— Lurks? — repetiu lentamente a palavra.

— Sienna não falou-lhe deles? — Gaby indagou, com surpresa na voz. Marga fez que não. — Bem, é a família real de Liqua. Há poucos dias, saíram da capital para cá, para reuniões com a Coroa de Kaena.

A dama mais nova não disse nada. Apenas assentiu com a cabeça e continuou a caminhar em silêncio. Seria esse, então, o motivo para tantas tarefas serem jogadas sobre a rainha e sua filha, de repente?

— Sua chegava estava prevista para hoje à noite — continuou Gabrielle. — E, bem, se Sienna não comentou nada sobre, então confio que estes ainda sejam os planos.

— A princesa realmente estava... inquieta. — Margareth mordeu os lábios, desgostosa. — Mas não falou nada sobre os... Lurks.

Gaby gargalhou diante da fala da amiga. Talvez porque a garota remetia à família real de Liqua como se fosse uma espécie nova de seres vivos.

— Sendo assim — falou ela —, presumo que não tenha decidido que vestimentas usar no baile de hoje.

— Não — exclamou Margareth, atormentada. — Não, mesmo!

A risada da dama tornou-se ainda mais alegre.

— Sienna não contou-lhe nada, não é!? — comentou ela. — Não se preocupe. Vamos aos meus aposentos e lhe emprestarei um vestido.

. . .

Margareth não imaginou que as boas-vindas à família real de Liqua fosse algo tão importante a ponto de a rainha organizar mais um de seus enormes eventos. Ao adentrar o salão principal, ela assustou-se com o cenário encontrado.

Não havia apenas rainha Anna e princesa Sienna, como também todos os nobres constituintes das reuniões da Coroa, assim como grande parte dos residentes do castelo – isto é, se todos já houvessem chegado. Assim como no último baile, o grupo de músicos encontrava-se amontoado no canto direito do salão, a tocar os cravos e violinos, e os funcionários da cozinha – os antigos colegas de uma semana de trabalho de Margareth – também estavam por ali. Alguns a servir e outros de folga.

Anna Bolgart descansava sobre o único trono do final do corredor, com o olhar brilhante transbordado em orgulho. Já a princesa postava-se bem ao seu lado, em pé, com um semblante preocupado e os olhos de joias raras exaustos e famintos por algo novo. Marga estranhou o súbito interesse da ruiva em estar próxima à rainha naquela noite. Não assemelhava-se nem um pouco à Sienna que fugira do salão de um baile apenas porque não aguentara algumas horas do mesmo.

Margareth desistiu de encarar a ruiva de longe. Sabia que ela não olharia de volta, pois estava focada em qualquer outra coisa que não fosse a dama. Decidiu dirigir-se ao canto mais próximo do salão e lá permaneceu. Não queria repetir os mesmos erros – que tanto lhe atormentavam – do último baile e, além disso, o vestido de Gabrielle apertava-lhe as costelas e os braços.

Ali, como uma dama solitária em tamanha multidão, não demorou muito para que alguém interrompesse sua programação de observar quieta.

— Com licença, senhorita — disse uma voz desconhecida, num alto tom. Margareth não disse nada, pois achou que não era consigo, e o homem teve de repetir a frase, dessa vez ainda mais alto: — Com licença, senhorita.

A dama rapidamente virou-se para ele e encarou-o de cima abaixo, atordoada. Era um nobre atraente, pálido e de olhos da cor esmeralda, não parecia ter mais do que vinte e cinco anos e seu maxilar profundamente marcado parecia encarar a garota mais do que os olhos.

Margareth permaneceu calada e estática, sem conseguir dizer coisa alguma que fizesse sentido. Depois de gaguejar algumas vezes, endireitou sua respiração e entregou ao homem o melhor e mais amarelo sorriso que poderia ter dado.

— Olá, senhor...

— Stephan — completou ele. — É um prazer conhecê-la, senhorita Allboire.

Marga umedeceu os lábios, nervosa. Não havia se acostumado com a fama que seu nome carregava por ali. Stephan pareceu perceber sua reação e sorriu, satisfeito.

— Ainda não familiarizou-se com as comodidades do castelo, presumo? — brincou ele.

Sem ser capaz de esconder o incômodo, a dama respirou fundo diante da intimidade forçada do nobre.

— Cada dia é uma nova descoberta — afirmou, simplória. — E quanto ao senhor, o que faz aqui?

— Oh, a senhorita é uma donzela curiosa — ele exprimiu, alegre. Margareth não foi capaz de discernir se estava sendo sincero ou sarcástico. — Na verdade, não sou daqui. Talvez, seja este o motivo para o qual parece tão confusa com minha abordagem, estou certo?

— Totalmente certo — ela concordou friamente.

— Sou apenas um Lorde. — Apenas. Esta palavra repetiu-se na cabeça de Marga. — E, quanto à abordagem, creio que não devo explicações. Apenas um tolo perderia a oportunidade de vê-la .

O olhos cor de esmeralda, Margareth percebia, fitavam os seus sem qualquer pudor. Ela desviou-os para o chão, desconfortável, e respirou fundo. Infelizmente, estava na hora de conhecer mais nobres desagradáveis pelo castelo.

Quando estava prestes a inventar uma desculpa para sair dali, seus pensamentos foram interrompidos:

— Margareth! — exclamou uma voz logo atrás de si. Era Sienna. Bem ao tempo. — Vejo que já conheceu Lorde Lurk.

O homem, no mesmo momento, respirou fundo pelas narinas. A presença da princesa ali parecia ter recolhido toda a confiança que o nobre possuía para conversar com Marga. Ele foi tomado por uma expressão chateante.

Lurk? — a dama repetiu, surpresa.

— Exato. — A ruiva abriu um sorriso cínico. — Não imaginei vê-lo por aqui, Stephan — o nome foi cuspido com tamanho desdém, que Margareth não precisou de mais nenhuma fala para notar que algo de errado havia entre os dois.

— Senhorita Bolgart — pronunciou ele, igualmente insatisfeito ao fazer uma reverência forçada. — Vejo que ainda está por aqui, afinal.

Sienna suspirou fogo.

— É claro que estou — murmurou. — Onde mais estaria?

Diante da fala, os dois jogaram-se num sorriso que demandou esforço de ambas as partes para soar realista.

— E por falar em estar aqui — disse senhorita Bolgart —, posso saber por onde anda o resto de sua família?

— Ah! — exclamou o lorde. — Isto é um detalhe engraçado. Como pode ver, não vim na mesma carruagem que meus familiares. Aparentemente, eles esqueceram-se de convidar-me para esta festa. Sabe como é, problemas de família. Mas é claro que, quando ouvi meus tios conversarem sobre Kaena, precisei arranjar uma carruagem e vir do meu próprio jeito. Para fazer uma surpresa a eles. E a vocês, é claro.

Naquele instante, seu olhar desviou-se de Sienna e concentrou-se calmamente em Margareth, que sentiu-se como um banquete a ser avaliado.

— Enfim, vejo que fiz uma ótima escolha — concluiu ele.

Não sendo a única a estar desconfortável com a situação, a princesa bufou com o olhar.

— Talvez devesse cumprimentar a rainha, já que está aqui — disse ela. — Tenho certeza de que sente saudades de sua presença no castelo. E, além do mais, preciso de minha dama, se não se incomoda.

Stephan não gostou da ideia dada por Sienna. Sua expressão esnobe desmanchou-se num olhar contido e sutil. Mas, sem contestar, ele aceitou o convite e despediu-se das jovens.

Margareth engoliu em seco, atordoada pela imensa quantidade de perguntas que surgiram em si após aquela conversa. É claro que os motivos de senhorita Bolgart para o seu claro ódio ao desconhecido sujeito não eram tão difíceis de se descobrir. Afinal, a dama o conhecia há apenas um minuto e já teve motivos o suficiente para desgostar de grande parte daquele homem.

A princesa respirou fundo, voltando com a expressão cansada em seu rosto.

— Tome cuidado com Lorde Lurk — foi tudo o que disse sobre o assunto, de primeira. Apesar da curiosidade estampada no rosto da dama, a ruiva manteve a frase curta e direta.

Margareth não torceu os lábios, aborrecida. Se Sienna gostaria que ela permanecesse longe de alguém, era sua obrigação contar-lhe mais sobre os motivos de tal ordem.

— O que quer dizer com isso?

— Quero dizer que... — Ela respirou fundo novamente. — Sei que não costuma simpatizar tão facilmente com desconhecidos. E Lurk, temo dizer, pode ser um tanto quanto invasivo.

— Isso é tudo? — indagou Marga, desconfiada. Era claro que havia algo mais.

A princesa fitou o chão, desconfortável.

— É possível, talvez — dizia ela, em constantes pausas —, que ele tente cortejá-la.

— Cortejar...me? — repetiu a menina, focada em pronunciar a palavra de forma correta.

— Exato. Senhor Lurk é um homem sem merecedora confiança. Ele tem a capacidade de machucá-la e não deixarei que isto ocorra. Não quero que envolva-se com ele — explicou ela, sem pestanejar. Depois, pareceu envergonhar-se do tom de preocupação em sua própria fala e acrescentou: — É minha dama e preciso que esteja focada em seus deveres.

— Não entendo — confessou Margareth. — Gabrielle está noiva, não está?

— É claro que não! — exclamou Sienna. — Condé Gustavh é um ótimo pretendente que tive a honra de escolher para Gaby. Mas eles não estão, de jeito algum, noivos! Apesar de, no futuro, quando estiverem, terem meu total apoio. Como já disse, Gustavh é um bom homem para uma dama e sua conduta não é duvidável, como a de Lorde Lurk. Compreende?

Margareth a encarou com o cenho franzido, pensativa. Aquela não parecia a mesma senhorita Bolgart que conhecia. Estava nervosa, preocupada e falante. Quase como se fosse uma estranha mistura de Anastácia e Klaus num mesmo corpo.

— Entendo — disse. Apesar de que, honestamente, não entendia. — Você está bem?

A pergunta soou como um grito próximo ao ouvido de Sienna. Ela retirou o olhar das portas centrais do salão e virou-se para a jovem com um alarde horrendo no rosto. Marga não teve dúvidas de que algo estava errado.

— É claro que estou — mentiu. Encarou o rosto de Margareth com gastura, como se o mesmo fosse um enigma que tentava decifrar há anos. E depois, distanciou-se da conversa: — Bem, parece que Lorde Lurk já despediu-se da rainha. Creio que devo voltar ao meu posto.

E saiu, sem dizer mais nada.

Marga chegou a acreditar que parte de sua distância dava-se pelo desentendimento entre as duas, mais cedo. Mas aquilo não parecia assimilar-se à personalidade da princesa. Além disso, a maneira como agia naquela noite, com tamanho nervosismo e impaciência, não parecia vir da mesma fonte do estranhamento que carregavam. Margareth cogitou a probabilidade de Sienna saber que a dama escondia algo, mas duvidava que a ruiva não fosse falar alguma coisa. Era uma princesa, afinal.

Isso só deixou a Allboire a opção de acreditar que o nervosismo vinha por conta da família de Liqua. Talvez, algo muito grande dependesse de como aquela noite ocorreria. Talvez, fosse exatamente isso.


Quando a família de convidados chegou, o salão inteiro parou e deu espaço ao corredor central.

Toda a cerimônia composta pela breve apresentação musical e pelo discurso de um dos empregados de Kaena pareceu durar uma eternidade para Margareth. Mas quando, enfim, tudo acabou e a família real de Liqua adentrou as áreas do salão, com o rei, a rainha e seus três filhos, Marga observou a preocupação subir no corpo das Bolgarts ao levantarem-se de seus postos e irem em direção à família.

O rei, alto e robusto, e a rainha, cheia de traços delicados e joias caras, foram os principais a receber atenção das duas donzelas de Kaena. O homem demonstrava poder aquisitivo, enquanto a mulher, a sensatez que lhe faltava. Dois dos filhos, que eram gêmeos idênticos, possuíam os cachos loiros e os olhos pretos, parecendo-se muito mais com o pai. Já a filha, que aparentava ter 18 e era alguns anos mais velha do que os irmãos, assemelhava-se unicamente à mãe, com seus olhos verdes, sua pele escura e seus cabelos ondulados.

Muito tempo se passou. E, até mesmo quando todos os convidados pararam de prestar atenção ao rei e às rainhas, Margareth continuou ali, paralisada, de cenho franzido e ouvidos curiosos. Ela encarava a face de todos, mas focava nos lábios de senhorita Allboire. Em quais palavras eles estariam formando. Ela apenas queria saber o que Sienna dizia para a família. E se ela os tratava da forma como tratou Marga naquela noite.

— Sei o que pensa — disse uma garota ao seu lado. — Quer saber o que eles estão conversando, não quer?

Margareth não respondeu. Passou a observar os olhos castanhos e o rosto escuro da moça, confusa. E demorou para perceber que tratava-se de Vivian de LaCruise, uma das amigas de Gaby, do outro baile.

— Eu também queria, há um tempo — continuou a menina. — O que será que se passa entre as quatro paredes da família real? A senhorita deve saber de muita coisa, agora que está tão próxima da princesa. — Vivian deu uma pausa. Observou o rosto da dama com expectativas, à espera de uma resposta, mas não recebeu coisa alguma. — Gabrielle sabe, mas nunca nos contou. Não nos conta nada, até hoje. Até houve um momento em que desisti e resolvi procurar por mim mesma as respostas de minhas curiosidades. Mas devo confessar que não gostei nem um pouco do que achei.

— E o que achou? — indagou Margareth. Estava perdida naquelas palavras e no motivo para a jovem contá-las, mas a forma como Vivian falava, como se estivesse a contar uma fábula, prendeu-lhe a atenção.

— Acredito que a senhorita saiba muito mais do que eu. Seria injusto que lhe contasse algo que nada lhe acrescentará, comparado às coisas que deve descobrir diariamente. — Ela arqueou as sobrancelhas e fitou a dama, em silêncio.

— Não descubro nada — afirmou Allboire, autoritária. — Nada além do que devo descobrir, como dama de companhia. Gabrielle conhece a princesa há anos, eu estou aqui há semanas. Se deseja descobrir algo por mim, acredito que se decepcionará.

— Oh, não! — exclamou Vivian. — Não pense que estou tentando retirar algo de ti. Não me atrevo a aproximar-me daquela família. É o que todos no castelo dizem. Tudo o que vem com a coroa, vem com segredos pesados demais para se esquecer.

Margareth engoliu em seco. Ela podia ver a seriedade nas feições da jovem, enquanto falava.

— Confessou — disse — que estou curiosa com este discurso.

A pequena soltou uma risada inesperada e perturbadora. Aquela não podia ser a mesma pessoa que escondeu-se ao ver Marga pela primeira vez.

— Isso, minha querida, é a maior ameaça para eles — murmurou, apontando de leve ao grupo em que Sienna estava. — Odeiam a curiosidade. Quanto mais nós temos, mais vulneráveis eles ficam. Mas também possuem sorte. Ninguém descobre todos os seus podres e permanece o mesmo, depois. Quem é que gostaria de ser traumatizado, apenas para obter um pouco de verdade? — Ela respirou fundo. — De qualquer maneira, espero que a senhorita não queira sucumbir a esse lado curioso. É a primeira pessoa que tem a chance de aproximar-se da princesa, depois de dois anos. Não acho que queira estragar essa oportunidade.

Sem despedidas, Vivian deixou Margareth e dissipou-se na multidão.

Allboire olhou ao centro do salão e a família real já havia separado-se pelos cantos, junto de rainha Anna e princesa Sienna, que também não estavam mais em seu campo de visão.

. . .

Margareth abusou demais do vinho, naquela noite. Quando a festa acabou e todos evaporaram do salão, ela ainda cambaleava pelos corredores escuros do castelo. E, contra a vontade de sua "eu" sóbria, dirigia-se aos aposentos de Sienna.

Pelo corredor, muitas coisas repetiam-se em sua cabeça. O maxilar duro de Lorde Lurk; os olhares de Gabrielle e Klaus um para o outro nos estábulos; a risada preocupante de Vivian; os lábios de Sienna. Esses últimos ficavam e não iam embora de si. Ela repetia a cena em que observava a princesa de longe, a falar algo inaudível à família real de Liqua, e pensava em seus lábios. Eles se repetiam e se repetiam. E depois misturavam-se com seus cabelos de fogo e com seus olhos de joias antigas e com suas sardas e, quando menos esperava, Margareth sentia vontade de chorar.

Tudo parou quando ela bateu à porta do quarto da princesa. E ela atendeu.

— Margareth! — exclamou a ruiva, atacada por uma onda de nervosismo. Parecia prestes a ir para cama, pois já usava suas roupas de dormir. — O que faz aqui, a essas horas?

Bolgart deu espaço para a dama adentrar o local e, apenas depois de fechar a porta, foi que senhorita Allboire explicou sua ida ao quarto:

— Gostaria de me desculpar.

— Está cheirando a vinho — falou a ruiva, próxima o suficiente da garota para notar. — Tem certeza de que deseja conversar comigo?

Sienna segurava os ombros da dama com um olhar atencioso, como se ela fosse cair ali mesmo.

O silêncio as cercava no quarto. Aquilo e a ausência de qualquer outra pessoa no mundo deixou Margareth relaxada. Pela primeira vez, ela pôde compreender um pouco do que senhorita Bolgart sentia.

— Gostaria de me desculpar — repetiu, atropelando-se nas palavras. — Entendo que queira paz.

Uma expressão de confusão tomou conta do rosto da ruiva.

— Peço desculpas por agir como os outros — continuou Marga, com a respiração pesada. — Mas é tudo muito frustrante.

— O que é frustrante? — a princesa sussurrou delicadamente.

— Tudo isso. — Margareth franziu o cenho. — A senhorita me escolheu. Ao menos, é o que todos me falam. E é tudo tão estranho! Tenho a necessidade de contar-lhe tudo sobre mim. Como se, por ser a senhorita quem ouve, tudo valesse a pena ser contado. Mas não é assim que todos lhe tratam?

— Não entendo o que quer dizer...

— Quero dizer que não importa o que diga e o que faça — interrompeu —, mesmo que se distancie, de um minuto para o outro, mesmo que diga palavras frias para mim, eu sinto que se importa comigo. E sinto que quer que eu lhe diga coisas. Mas não sei quando e, muitas vezes, não sei como fazer isso da maneira certa.

O queixo de Sienna foi caindo-se aos poucos. Entretanto, ela não deixou de segurar os braços de sua dama com delicadeza. A preocupação em seu rosto desfez-se e um sorriso apareceu, de repente.

— Tenho algo para a senhorita — a ruiva falou, retirando suas mãos frias do corpo da dama apenas para pegar algo de dentro de sua cômoda.

Ela estendeu a mão e exibiu uma pétala amassada e antiga. Era a mesma que pertencia à antiga amiga de Margareth, há tantos anos. A respiração da dama parou.

— Encontrei em suas vestimentas, no primeiro dia em que esteve aqui — explicou a princesa. — Quase havia me esquecido de entregar, mas ainda bem que resolveu aparecer.

Marga pegou o objeto em suas mãos e sentiu sua textura áspera mais uma vez em seus dedos. A flor era o que faltava. A flor lhe fez chorar bem em frente à princesa. Ela chorou de saudades de casa, dos sorrisos de Eleanor e dos sermões do irmão. Chorou, pois daria qualquer coisa para ver Enrico, naquele momento, mesmo que fosse para brigar.

Mas ela também chorava de solidão e de amor.

— Flor do Destino — murmurou Sienna, de olhos vidrados no rosto molhado de Margareth.

— Como?

— Flor do Destino — repetiu. — É uma flor típica do norte do Ilhado de Lores. Encontra-se muito em Irbena, durante o verão. Há lendas sobre ela. Dizem que a natureza entrega-lhe como um presente e dá a ela o poder de mostrar-lhe seu verdadeiro destino. Por isso o nome.

— Acredita nisso? — indagou Marga. Um súbito interesse tomou forma em seus pensamentos.

— Acredito na natureza — respondeu a princesa. — Mas nunca havia visto uma de perto. Ao menos, não até agora. E você?

— Se já havia visto uma antes?

— Se acredita que ela lhe mostrará seu destino. — Sienna umedeceu os lábios, com um sorriso lutando para ser aberto.

— Oh — exclamou Margareth. — Não, não sei. Como poderia mostrar-me meu destino?

Senhorita Bolgart abriu o sorriso de vez. Ela voltou a aproximar-se de Allboire e tomou a pétala de sua mão. Com o toque, a dama sentiu o aroma cítrico do perfume de Sienna. Um perfume capaz de adocicar o pior dos momentos e de fazer Margareth enxergar o invisível. Mesmo no quarto escuro, com a princesa desarrumada, sem joias nem vestidos caros, ela notou aquilo que demorou para enxergar. Notou o quanto Sienna era encantadora.

— Bem — o lábios rosados da ruiva sussurraram, no calar da madrugada —, não sei quanto à veracidade dessa lenda, mas... a pétala lhe seguiu até aqui. Não seguiu?

. . .

A conversa com senhorita Bolgart fez Marga acreditar na ligeira possibilidade de aquele lugar ser parte de seu futuro. Quando voltasse para Irbena e resgatasse sua família, poderia trazê-la à seguridade do castelo, como seus pais haviam tentado, e começar um novo caminho por ali. Com Enrico, Eleanor, Anastácia, Gabrielle e até mesmo com Sienna. As coisas pareciam fáceis, quando ela imaginava a vida dessa maneira.

Ocasionalmente, conforme caminhava de volta ao seu quarto pelos corredores escuros, um pequeno sobrado de luz noturna vinha da janela para cobrir seu rosto e ela parava para observar o mundo lá fora, do jeito que era. Fez isso três ou quatro vezes, e em todas elas pediu ao universo para que pudesse rever Enrico e ter a chance de contá-lo tudo o que havia passado para chegar até ali. Quando acabava suas preces, ela voltava à caminhada.

E quando voltou à caminhada pela penúltima vez naquela noite, passava pela esquina do salão principal. O lugar, agora, parecia abandonado. Ainda estava coberto com as cortinas de seda que eram postas em dias de festa e não havia luz nem música alguma vinda de dentro. Marga fitou o tecido, imaginando o quanto gostaria de ter dançado com alguém, naquela noite.

Quando aproximou-se e recolheu a cortina para a adentrar o local, assustou-se com a presença de um casal deitado ao chão. Um sobre o outro. Os lábios a travar uma guerra violenta e as mãos a dançar sobre si. Uma visão vinda direto do inferno para uma donzela.

Marga fitou-os, de queixo caído e calada. Ela poderia ter ido embora no mesmo momento em que os viu ali, mas ficou parada por alguns segundos, em choque.

De repente, a visão começou a tomar cor e sabor. Observou os cabelos louros da mulher, esparramados pelo chão, seu vestido quase pela metade e sua respiração acelerada. Observou o homem, por cima do corpo, com suas mãos fortes sobre os botões das vestimentas da dama e seu maxilar duro e chamativo, encarando sua figura paralisada na entrada.

Quando eles avistaram-na ali, já era tarde demais para pará-la. Ela fugiu e correu sem parar, até chegar em seu quarto e fechar a porta num só estrondo.

Aquela noite foi difícil para Margareth. Não conseguiu dormir direito, pois, sempre que fechava os olhos, era tomada por alguma das ocorrências pesarosas que presenciou ao dia. Ela viraria de um lado para o outro e tentaria apertar suas pálpebras com mais força, para tentar pulverizar de vez aquela lembrança de si.

Mas nada conseguia tirar de sua cabeça o fato de que, naquela noite, dentre tantas ocorrências magníficas e horrorosas, Margareth presenciou a visão de Stephan Lurk sobre o corpo de Anna Bolgart.

Se você gostou, por favor, deixe seu voto! :)


Nossa! Que capítulo grande! Tinha muitas coisas para acontecer dessa vez e tentei deixar da maneira mais legível possível, hahaha. Espero que vocês tenham gostado.

Estamos quase chegando a 500 votosss!! Isso é muito bom. Muito obrigada a todos <3

Até a próxima! ;)

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