08: Sienna tem deveres
Sienna possuía uma partida de Xadrez para ganhar.
Fitava o tabuleiro na mesa à frente com atenção, mantendo esforços para se esquecer de tudo o que poderia fazer durante aquela tarde, em vez de estar ali, naquele momento. Ela respirou fundo, impaciente.
Depois de emergir de seus pensamentos, a princesa, enfim, moveu seu cavalo para a diagonal direita, conquistando mais um peão de seu então rival, príncipe Charles Vertte.
O homem piscou algumas vezes, atingido pelo ataque. Logo, recompôs-se. A última coisa que queria era deixar sua fraqueza visível a senhorita Bolgart. Entretanto, a princesa era mais do que capaz de enxergar isso. Era capaz de enxergar todo o orgulho acumulado na face do nobre. E, se pudesse dizer qualquer coisa a respeito, diria sobre o quanto a mesma não conseguiria aguentar nem mais um segundo perto daquele príncipe.
Enfim, ele contra-atacou. Permaneceu quieto durante muito tempo, mas contra-atacou em algum momento. Sienna não era capaz de saber se o passar lento do tempo dava-se apenas por fruto de sua falta de interesse no que ali ocorria: o acordo. Um acordo específico da coroa, que se era feito quando uma jovem princesa alcançava sua maioridade. Acordo esse que senhorita Bolgart, na idade que se encontrava, havia demorado demais para iniciar.
De qualquer forma, o príncipe levantou um sorriso desdenhoso ao rosto e moveu sua torre algumas casas afrente, como se fizesse alguma ideia de sua jogada. Satisfeito, ele descansou as costas na cadeira estofada e entregou a jogada de volta à princesa.
— Não costuma conversar? — indagou, depois de fixar seu olhar corrompido ao rosto de Sienna.
A garota fitou o homem por um milésimo de segundo.
— Não costuma usar sua rainha? — ela rebateu.
Charles franziu o cenho, desconcertado. A princesa sorriu de lado e apontou com a cabeça ao jogo do adversário. Quase todas as peças haviam sido movidas e a rainha não era uma delas. Ele devolveu o sorriso e voltou à discussão:
— A rainha deve mover-se apenas quando necessário.
— Então por que ainda não a moveu? — desdenhou ela, enquanto fazia sua jogada.
O príncipe limpou a garganta, desviando o olhar para o tabuleiro. Sabia que aquele seria um acordo difícil.
— O que mais se contenta em fazer, além de jogar xadrez? — insistia o homem numa conversa.
Sienna parou para pensar na pergunta que havia sido feita, o que achava que deveria ser o mínimo para sobreviver àquele diálogo.
— Gosto de apostas — confessou ela, fazendo-o paralisar seu olhar na garota. Ela não gostou daquilo. Não se considerava digna de fazer julgamentos, mas o rosto irregular de Charles, seu cabelo louro seco e seu olhar julgador eram tão agradáveis quanto sua personalidade.
— Apostas? — repetiu o príncipe, devidamente surpreso. — É incomum para uma princesa — pontuou. Ela deu de ombros. — Sobre o que costuma apostar?
— Sobre tudo o que desejo, para ser honesta — explicou. — Mas, em um geral, creio eu que apostas combinem melhor em jogos.
Vertte meneou a cabeça. Estava começando a entender. Um sorriso malicioso crescia no canto de seu rosto.
— Está sugerindo que façamos uma aposta? — ele murmurou a última palavra com cuidado, como se pronunciá-la fosse um crime.
A princesa riu diante da surpresa do príncipe.
— Não me importaria de apostar sobre essa partida — respondeu, carregando consigo um sorriso perigoso. — Se me permite, não há dúvidas de que ganharei de vossa alteza.
— Com todo o respeito, senhorita Bolgart — disse ele, num tom convencido —, mas discordo de suas opiniões.
A mulher o estudou por breves segundos. Não reagiu à sua descrença, em vez disso, esperou que continuasse. Mordia os lábios enquanto aguardava sua jogada. Ele não parecia mais pensar nela, mas somente na possível aposta.
Enfim, príncipe Charles moveu o peão que estava à frente da rainha, capturando o cavalo de Sienna. Ela não evitou um sorriso. Havia mordido a isca.
— Sei bem o que deseja, senhorita Bolgart — começou ele. — Não sei por que deseja isso, mas sei de seu histórico. Sei, inclusive, se me permite mencioná-los, dos pretendentes passados. Espero que entenda que não planejo ser um deles. Espero que entenda que, o que faço aqui, é um favor para ambos. — Ele deu uma pausa, engoliu em seco e continuou: — Se eu ganhar esta partida, senhorita Bolgart, aceitará meu pedido de união.
A princesa fingiu surpresa.
— Não seria esse o intuito deste encontro? — indagou. O príncipe permaneceu em silêncio, obrigando-a a voltar à sua fala. — Certo. Eu aceito sua proposta. Mas tem de aceitar a minha.
Ele a fitou com atenção, a esperar a revelação de seu lado da aposta. A princesa o olhou de cima a baixo, lentamente, antes de dizer sua proposta:
— Se eu ganhar — suspirou —, não se casará comigo. Não me importo para onde irá ou com quem se casará, só peço para que seja longe daqui e que eu não faça parte disso.
Charles calou-se. Reproduziu as piscadelas de desconforto em seu rosto, novamente, como se aquilo houvesse sido um ultraje à sua integridade. Sienna até convenceu-se de que não havia sido uma boa ideia propor aquilo, mas, no final, quem deveria explicações à rainha de Kaena seria apenas ela. Tudo o que cairia sobre os ombros dele seria o peso do ego ferido de um príncipe. E, por isso, devolveu o mesmo olhar desafiador a Vertte, demonstrando que não havia se arrependido do que dissera.
Ele desviou os olhos para o gramado do jardim, à esquerda, e endireitou-se sobre a cadeira. Após duas ou três tossidas, uma bufada e o olhar vidrado de Sienna, o príncipe, enfim tomou sua decisão:
— Não sei o que se passa em sua cabeça. Mas aceito o que quer que esteja propondo.
Ao ouvir o que o jovem acabara de dizer, a ruiva sorriu e voltou ao seu jogo, em repentino silêncio.
Depois daquilo, Charles também não disse mais nada. Não parecia conseguir puxar assunto ao mesmo tempo em que raciocinava. Naquele momento, Sienna percebeu que o príncipe estava se esforçando para ganhar o jogo e, consequentemente, a aposta. Mas ela sabia que não era o casamento o que queria, era sua honra, apenas. Poderia viajar para o reino ao lado e no mesmo instante arranjar milhares de princesas enlouquecidas de amor que fariam qualquer coisa para casar-se com ele. Talvez, fosse por isso que o garoto não compreendia sua proposta maluca. Mas ela não se importava nem um pouco de ser incompreendida, desde que estivesse a salvo.
Aconteceu que não foi uma partida difícil de ser ganhada. Apesar de todo o esforço que Charles fazia com suas peças, nada o tornava um bom jogador. Entregava-lhe o jogo como entregaria todas as suas terras caso fosse desafiado por alguém minimamente decente. E, depois de algumas rodadas, Sienna decidiu acabar com aquilo.
— É a sua vez — relembrou ele. — No que está pensando?
Ao ouvir a questão, ela parou. No que estava pensando. Quantas vezes não havia escutado essa pergunta. Odiava-a. Odiava o simples som que fazia ao ser proferida. Acreditava que o pensamento era algo privado. Algo pessoal. E que, se por acaso, o revelasse, ninguém realmente gostaria do fosse sair de sua boca.
A verdade é que pensava em como seu ódio por Charles Vertte não passava de um reflexo da inveja que sentia dele.
Como era fácil, para ele, sentar-se naquela cadeira e jogar uma partida de xadrez e conversar sobre o tempo e cortejar a princesa de Kaena. Se cortejasse o bastante, em algum momento, poderia casar-se com ela. Em algum momento, teria o que desejava. Pensava que pessoas como príncipe Charles sempre tinham o que desejavam. Mas isso não funcionava para pessoas como Sienna. Princesa Sienna. Para vossa alteza, todos os dias de sua vida eram desenhados e forjados. Ela teria tudo, de fato, mas nada era o que realmente queria.
Talvez essa fosse a regra da coroa: Os homens tinham tudo o que queriam; as mulheres tinham tudo o que os homens queriam que tivessem.
E era isso o que pensava. Pensava que não queria se casar e que não desistiria de fugir de todo e qualquer homem que aparecesse como seu pretendente. E era por isso que ganharia aquele jogo.
Ela voltou à realidade e endireitou as costas. O príncipe ainda a encarava, esperando por uma resposta sobre o que se passava em sua mente. Ela o olhou e forçou o melhor sorriso que poderia ter. Um sorriso típico de Sienna. Um sorriso dissimulado.
— A rainha deve mover-se apenas quando necessário — relembrou.
A princesa segurou sua rainha, que estava no lugar inicial de seu cavalo, e a moveu na diagonal, até o canto direito do tabuleiro. O rei de Charles estava preso por sua própria rainha. Sienna gostou de imaginar que as duas houvessem agido juntas para matá-lo. Mas o que realmente importava era que ali, naquele momento, seu adversário não possuía nenhuma saída.
— É isso o que estou pensando — finalizou ela. — Xeque-mate.
O que ocorreu após o final daquele jogo não seria necessário mostrar. É claro que os olhos de príncipe Charles ferviam em sutil ódio, enquanto os de Sienna Bolgart, por sua vez, transmitiam a pura serenidade de quem orgulhava-se por ter ganhado.
...
Mais tarde, ainda naquele dia, iniciou-se o jantar da família real e o príncipe cumpriu sua parte da aposta.
Em volta da longa mesa, havia cinco cadeiras, das quais apenas quatro ocupavam-se por Klaus Bolgart, princesa Sienna, príncipe Charles e rainha Anna. A cadeira que restava, maior do que todas as outras, já estava acostumada a não receber nenhuma visita há um bom tempo, pois a mesma havia sido posta ali anos atrás, para a exclusividade de rei George. Depois de sua morte, senhorita Bolgart jamais permitira que alguém tocasse no objeto, trazendo aos jantares dos seguintes anos uma constante sombra de luto. Mas ali, naquele momento, a garota só se importava com uma única coisa.
A noite ocupara-se por um longo período de silêncio. Klaus, por vezes, lançava à prima olhares de confusão, e a rainha, apesar de inconsciente do que a esperava, também era capaz de notar a fluidez no sorriso sinuoso da filha. Mas, foi após a chegada da sobremesa, que senhor Vertte levantou-se de sua cadeira na mais desconcertada das maneiras.
Todos pararam o que estavam fazendo para fitá-lo com profundidade – a profundidade nos olhos sonhadores de Sienna, é claro, diferenciava-se da profundidade dura de Anna, que segurava-se para não explodir naquele mesmo momento. Era óbvio o que estaria por vir. A filha havia conseguido passar a perna na mãe, novamente.
— Gostaria de... — Ele hesitou ao olhar para a princesa, que devolvia o semblante com uma face dura e insistente. — Gostaria de agradecer pela belíssima recepção. Não poderia estar mais confortável em qualquer outra residência. Mas...
Naquele instante, rainha Anna levantou-se de seu lugar, com um ansioso medo estampado em seu rosto. Parecia estar prestes a ir direto ao chão, em um simples segundo.
— Não acredito que este seja o acordo ideal para mim — finalizou, com a respiração ainda mais relutante do que quando iniciou a frase.
Ninguém disse mais nada após a constatação do príncipe. Senhora Bolgart fitava o horizonte com um semblante furioso, sem ser capaz de proferir qualquer palavra. Klaus a observava com os lábios reprimidos, certo de que as consequências de tais atos sobrariam exclusivamente para a prima. E Sienna, por sua vez, esforçava-se para ocupar-se com a melhor expressão de surpresa que podia encontrar, mas também poupou-se de dizer qualquer coisa, temendo que aquilo pudesse, de alguma forma, piorar a situação perante sua mãe.
Ainda naquela noite, fora organizada uma carruagem para príncipe Charles, onde o mesmo seria levado de volta a Thenid, seu reino natal. O rapaz partiu sem qualquer outra explicação, a qual não foi exigida pela rainha, que mantinha a total certeza de quem havia sido a causadora do tal infortúnio.
Quanto a princesa Sienna, a mesma tivera de lidar com as consequências por seus atos e enfrentar os castigos que seriam impostos pela mãe. Pois, de qualquer forma, não havia ninguém, naqueles cantos isolados do castelo, que pudesse escutar os murmúrios desesperados da ruiva ao perdurar da madrugada.
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P.S. Peço desculpas pela demora para atualizar! Muitos contratempos aconteceram!
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