03: em um terreno desconhecido

Um cheiro incomum invadiu as narinas de Margareth. Um aroma adocicado e cítrico.

O misterioso sabor arrancou dela um sorriso. Acordar e deparar-se com o tão atraente eflúvio ajudou a acalmá-la, de certa forma. Por um longo e pacífico instante, imaginou-se descansando sobre uma nuvem de flores afáveis, exalando aquela mesma essência. Quanta paz.

Paz esta que ligeiramente foi embora, assim que a garota tentou abrir os olhos e percebeu que não enxergava nada ao redor. Tudo resumia-se a um completo vazio.

Sobre seu rosto havia uma venda que, apesar de macia, estava amarrada em sua cabeça com força o suficiente para machucá-la. Margareth tentou se mover, fez força com as mãos para retirar o pano dos olhos, mas algo impedia seus braços.

Ela lançou o olhar para baixo e tentou enxergar por entre os buracos do tecido. Via os borrões de seus braços, de suas pernas, de seu corpo inteiro. Não havia nada faltando, mas tudo estava atado a uma corda. Ela descansava sobre aquele assento, aparentemente segura, aparentemente viva. Mas, se quisesse, não seria capaz de levantar-se, pois estava presa. Alguém a prendeu.

Sua respiração acelerou, e ela logo começou a murmurar coisas sem sentido. Coisas sobre Enrico. Estava muito confusa para saber, mas tinha certeza de que passou todo o seu sono em murmúrios, pois, quando acordava durante a viagem e ficava consciente por pouquíssimos segundos, ouvia o eco da própria voz, chamando-o.

Mas ele não estava ali. Ela procurou em volta.

Paredes rosadas foram tudo o que enxergou através do tecido, em primeira instância. Depois, percebeu móveis brancos espalhados pela sala e uma estátua em vermelho bordô, bem no meio do local.

Ela respirou fundo. Aquele lugar, definitivamente, não era uma das cabanas do vilarejo.

Sobre o seu braço direito, curativos sujos de sangue cobriam-lhe a pele. E suas roupas, que antes já não eram apresentáveis, agora, penduravam-se aos pedaços sobre o corpo, cheias de manchas e rasgos. Aquilo significava que havia se ferido e que alguém, de alguma forma, a salvou. Mas, por algum motivo, imaginou que quem lhe ajudou e quem lhe prendeu ali não foram as mesmas pessoas.

Os pensamentos de que havia sido sequestrada por algum antipacifista rapidamente invadiram sua mente. Ela sabia que adentrar a floresta durante um ataque era uma ideia terrível. Estava pronta para dar um sermão em Enrico, assim que o visse novamente, mas mal sabia, na verdade, se sairia dali viva para concretizar tais desejos. A ideia de nunca mais ver seu irmão, nem que fosse para brigar com ele uma última vez, foi desesperadora.

Seus olhos começaram a engomar em lágrimas, mas os panos em seu rosto as secavam no mesmo momento. Será que essa era uma forma digna de passar seus últimos tempos de vida? Mal havia vivido, ainda. Não sabia o que era viver de verdade. A cada segundo que passava acordada naquele local, mais queria ir embora e sentir o verdadeiro sabor de ser uma pessoa viva. Parecia estar ali há horas.

Mas tudo não passou de um longo monólogo de cinco segundos. Monólogo que perdurou até o momento em que algo fez o favor de interrompê-la.

— Vejo que está acordada — manifestou-se, a partir do nada, uma estranha e doce voz.

Margareth não conteve o pulo que deu ao ouvir aquilo e procurou desesperadamente a origem de tal voz. Ela viu algo, em algum momento. Aquilo, que antes parecia uma estátua, era, na verdade, um ser humano. Uma mulher. Uma mulher alta de cabelos alaranjados e vestido vermelho bordô.

Uma mulher alta de cabelos alaranjados e que carregava consigo uma essência nem um pouco agradável.

A desconhecida revelou um sorriso discreto, parecendo animada pelo que estava por vir, e levantou-se de seu assento. A visão de Marga ainda era incerta e turva, mas acreditava que a moça estava a observá-la desde o início. E, com seu olhar congelado na prisioneira, ela respirou fundo e franziu o cenho com rispidez.

— Continuará calada? — indagou a mulher de cabelos alaranjados. — Não chegará nem a gritar por ajuda? Pedir socorro? Nada? — Esperou por alguns momentos, para que seu discurso surtisse algum efeito, porém nada acontecia. — Bem, até que é inteligente. Deve saber que de nada adiantaria se gritasse. Para sua infelicidade, não aplicou essa inteligência toda no momento em que foi pega, não é mesmo? — A mulher mudou de pose e imitou uma feição triste. Depois, prosseguiu: — De qualquer forma, agora que está aqui, precisa passar-me informações.

Mais uma pausa foi feita. Talvez a desconhecida esperasse por uma resposta. Mas, quando não recebeu nada, pôs-se novamente a falar:

— Pode começar dizendo-me o seu nome.

Ela esperou. E o silêncio da sala era mortal. Nem mesmo a respiração de Margareth, que antes parecia fora de seu controle, era capaz de exprimir qualquer som. A desconhecida, observando a cena com uma certa frustração, suspirou profundamente e afastou-se de seu lugar inicial para aproximar-se de Marga.

— Deve entender que não tenho todo o tempo do mundo. E acredito que não sinta-se tão à vontade, agora. — Ela arqueou uma sobrancelha, em posição irreverente. — Não pense que é especial. Ainda há outros prisioneiros e preciso interrogá-los. — O corpo de Margareth enrijeceu ao ouvir a frase. Pensou na possibilidade de Enrico estar ali, aprisionado naquele mesmo local. Ambos separados apenas por algumas paredes e, talvez, alguns corredores de distância. — Então, se não quer perder sua vida mais cedo do que o planejado, é bom que me responda quando lhe pergunto.

Marga sabia que arriscava-se imensamente ao continuar calada, mas algo na presença da misteriosa mulher fazia com que a simples ideia de ouvir qualquer coisa sair de sua boca a atemorizasse por completo.

— Bom — disse a mulher, após algum tempo — acredito que seu silêncio já tenha respondido tudo. — A jovem a observou dar de costas para si e caminhar até uma porta ornamentada que a tiraria daquela sala. Antes de abri-la, virou-se novamente para a mesma, com uma feição cruel. — Boa sorte em seus próximos dias. Será difícil sobreviver com os ratos em sua cela.

Margareth voltou a respirar pesado. Apesar de amedrontada, percebia a intimidação que recebia da desconhecida. Caso não revelasse nada antes que a porta se fechasse, não tinha ideia do que poderia acontecer consigo mesma, nem se veria a luz do sol alguma outra vez, em sua vida.

Ela intentou a se mexer sobre a cadeira, puxou os braços e as pernas e jogou-se para frente com força, mas tudo era inútil. Não conseguiria se libertar sem ajuda. O que significava que, se quisesse ver seu irmão novamente, precisa fazer algo. Precisava falar.

— Espere! — ela gritou em um único suspiro de desespero. Era a primeira vez em que falava algo para alguém estranho. Há anos. E aquilo soou tão estranho quanto imaginou que seria.

Recebeu, como resposta por seu pedido de ajuda, a presença da mulher, que tentava não demonstrar a felicidade por ter conseguido o que queria após a mediana chantagem. Em alguns passos, fechou a porta e voltou-se calmamente ao centro da sala.

— Enfim, uma resposta — afirmou. — Agora que já tenho noção de que não é muda, diga-me qual é o seu nome.

A adrenalina que rodeava a garota manifestou-se repentinamente, acelerando o compasso de seu coração.

— Por que quer saber? — disse ela, aterrorizada ao ouvir a própria voz. — Por que estou aqui?

— Não se faça de tola — rebateu a mulher, com a voz angulosa e grave. — Não é uma criança mimada para não entender o que falo. Não há muitas maneiras de se lidar com uma rebeldezinha nojenta — ela sibilou. — Além disso, nós não costumamos confraternizar com ladras. Ainda mais aquelas sem nome.

Margareth balançou a cabeça em negação. Não fazia a menor ideia do que a ruiva falava.

Nós? — exclamou. — Eu nem sei quem você é!

Após a afirmação, a mulher deu um passo atrás e franziu o cenho, permanecendo em seus pensamentos em silêncio por alguns segundos.

— Não sabe? — indagou ela, com um tom de voz esquisito.

A prisioneira negou com a cabeça, sentindo que tal informação fosse importante a ponto de ajudá-la a manter a desconhecida ali e, consequentemente, descobrir mais sobre onde estava.

Depois de misteriosos segundos, a ruiva recompôs-se e voltou a falar:

— Está na presença da chefe da cavalaria, senhorita Bolgart. — Margareth notou a respiração pesada da garota enquanto falava. — E não pense em enganar-se com minha aparência inofensiva. Tenho a força e a agilidade de cortar-lhe a garganta da mesma forma que um sádico guerreiro teria. Compreende o que eu digo? — Mais um intervalo de tempo até que Marga assentisse com a cabeça, já que não havia outra opção para escolher. — Certo. Agora, por Deus, diga-me quem és. Não quero ter de piorar seu estado físico deplorável.

A garota respirou fundo. Não imaginou que falar seu nome pudesse trazer a si qualquer dano. Afinal, a própria mulher havia se apresentado inicialmente.

Então, diante de tais pensamentos, ela chegou à atitude de revelar-se.

— Meu nome é Margareth — balbuciou. — ...Margareth Allboire.

Com tal frase dita, a chefe da cavalaria agiu de modo inteiramente distinto de sua personalidade e, em questão de segundos, pareceu perder toda a força e confiança que aparentava carregar sem qualquer esforço. Foi como se houvesse sofrido um choque de realidade.

— Como? — sussurrou a mulher, num verdadeiro tom de perplexidade.

— Margareth Allboire — repetiu a jovem, inocente, insegura e sem entender coisa alguma.

A confusão da chefe de cavalaria, no entanto, não durou muito. No mesmo momento, sua expressão saltitou de perdida para furiosa. Ela franziu suas feições e cerrou os punhos. Num só instante, levou sua mão direita à bainha que carregava consigo – a qual, infelizmente, Margareth não havia notado até aquele momento – e puxou a espada, entendendo-a até que a mesma estivesse a um centímetro de distância do pescoço da garota. Marga gritou de susto. Teve de esgueirar-se contra o banco para não ser atingida pela ponta da lâmina.

— Como tem a coragem de blefar diante de mim!? — gritou a mulher, com ferocidade em sua voz.

Diante da cena, Margareth tremia inconsolavelmente.

— Diga-me a verdade, agora!

— Já lhe disse a verdade! — ela exclamou de volta, em meio a soluços assustados. — Eu não estou blefando! Juro!

— Não... — Bolgart murmurou para si mesma, logo voltando seu olhar à garota. — Qual é sua idade? Quem são seus pais? Diga, agora!

— Me desculpe!

Diga! — berrou.

— Dezenove! — respondeu imediatamente à jovem, com o coração acelerado. — Tenho dezenove anos e não tenho pais, senhora! Estou dizendo a verdade! Eles morreram, já faz anos!

Marga tremia todas as partes de seu corpo. Arrepiada e suando frio, esperava pelo momento em que a mulher realmente fosse cortar-lhe a garganta, como havia prometido.

Porém, em vez disso, a mesma abaixou a espada num segundo que durou um longo tempo, desfalecendo de si toda a fúria que antes carregava. Estava cabisbaixa e perplexa, sensível e confusa, triste e inquieta, tudo ao mesmo tempo. E manteve essas feições ao guardar a espada de volta em sua bainha e correr para fora daquela sala, sem nada mais dizer.

A menina quis gritar por seu nome, para que ficasse, porém não o fez. Tentou, na verdade, tornar sua existência naquele quarto o menos notável possível. Quanto menos pessoas percebem-na ali, talvez, mais segura estivesse. E no silêncio de sua inexistência, viu-se perder a mente em algum lugar muito, muito longe de onde estava. Não fazia ideia de o que fez para causar aquela reação, mas imaginou que fosse algo grande, de alguma forma. Talvez, tenha sido por isso que ela correu para longe.

Quando todas as idas e vindas de seus pensamentos tornaram-se cansativas e monótonas, ela voltou ao mundo real e esperou, por muitas horas, senhorita Bolgart entrar pela porta a qual saiu e explicar o que aconteceu para que fugisse de forma tão inquieta dali.

Infelizmente, não foi isso o que ocorreu. A chefe da cavalaria não adentrou a sala e os motivos para a reação tida por ela permaneceram-se um enigma.

Quem dera Margareth, ao menos, soubesse que aquele seria o primeiro de muitos mistérios que cercavam a existência de senhorita Bolgart.

...

Pelo sossegado ambiente que estendeu-se pelo resto da tarde, Margareth tentava ocupar sua ansiedade com distrações inúteis.

Enquanto sua audição prestava atenção nos tiques e taques do relógio camuflado do canto da sala, ela entrava em uma discussão com seus próprios olhos vendados para decidir se havia ou não flores bordadas nas paredes. Decidiu que havia, pois, se a ideia viera em sua cabeça, para início de conversa, deveria haver algum motivo para isso.

Tentou, também, acalmar-se com as canções de ninar que a senhora que tomava conta da menina, quando criança, cantava. Eram muitas para fixá-las por completo em sua mente, mas lembrava-se da maioria, e foi cantando-as conforme surgiam em seus pensamentos. Primeiro, cantarolou uma que falava sobre rouxinóis que voavam pelo céu durante a tarde, depois, prosseguiu com uma satírica cantiga sobre os tempos de ouro de Irbena e, por último, sussurrou uma doce melodia que narrava a história de uma menininha que perdia-se por um reino mágico. Essa era a sua favorita.

Apesar de seus esforços para esquecer sua atual situação, continuava sem entender o que aquilo tudo significava. Se era uma prisioneira, deveria estar em uma prisão. E, se o lugar onde estava era a prisão daquele forte, ela não veria problema nenhum em continuar ali. De fato, parecia um canto bom para se morar. Era bonito, confortável e silencioso. Pelo menos, até onde os seus olhos conseguiam ver.

Foi depois de muitos minutos cantarolados e inquietantes que a porta do local, enfim, abriu-se.

Marga pulou sobre seu assento no mesmo momento e calou-se perante a figura que se aproximava. Não era senhorita Bolgart, de fato. Era apenas um homem. Um esbelto homem de cabelos ruivos e pele pálida. O primeiro lugar para onde Margareth olhou foi ao borrão de sua espada, pendurada na bainha. Depois da sessão com a então chefe da cavalaria, não confiava em pessoas que carregavam espadas para onde iam. Apesar de que, se pudesse, faria o mesmo.

O homem parecia notar, por através do tecido, o receio da garota ao vê-lo entrar. Ele decidiu retirar o pano incomodante de seu rosto. Ela respirou fundo e piscou algumas vezes, após recuperar sua visão por completo. No mesmo momento, assustou-se ao ver um homem tão bem-vestido como aquele, com uma armadura de couro que brilhava sob a luz. Mas tratou-se de esconder tal reação para si mesma, pois, por mais que o mesmo demonstrasse bondade, em primeira instância, podia esperar qualquer ato imprudente de um desconhecido. Ainda mais alguém que morava ali.

Mas, inesperadamente, ele sorriu. Não era como o sorriso malicioso da mulher assustadora, mas apenas um amigável e reconfortante sorriso.

— Devo pedir desculpas pelo tempo no qual teve de esperar, senhorita — disse ele, com a voz suave. — Sei que não está na melhor das condições.

O desconhecido calou-se por alguns segundos, na esperança de que fosse receber qualquer resposta para o que falara. Porém tudo o que ganhou foi o olhar estático da garota.

— Sei também que falar não lhe é muito prazeroso. Então, acredito que terei de falar sozinho, por enquanto. — Ele engoliu em seco. — Bem, eu sou o Klaus. E você é a senhorita... Margareth Allboire, estou certo? — Esperou novamente por algo, em vão. — Ah, sim... Me perdoe. Interpretarei o seu silêncio como uma não-objeção.

A garota o fitou por algum tempo, com indecisão nos olhos.

Apesar de ainda mantê-la ali, amarrada a uma cadeira de assentos estranhamente confortáveis, ele tinha um olhar inocente, como se não fosse capaz de fazer mal a uma mosca sequer. Aquilo, por hora, acalmava-a o suficiente para confiar um pouco na presença do rapaz.

Após o súbito silêncio no qual ambos pensavam para consigo mesmos, ele reabriu o seu sorriso e aproximou-se das cordas que mantinham Margareth imóvel.

— Gostaria de levá-la à biblioteca. Lá será um lugar melhor para explicá-la sobre o que me traz aqui — murmurou ele, com o sorriso novamente entreaberto. — Mas, antes, precisarei libertá-la dessas cordas, se me permite.

Esse foi o capítulo de hoje, pessoinhas! Se você gostou, não se esqueça de deixar seu voto para me ajudar. <3

O que vocês esperam para o futuro de Margareth? Por que vocês acham que a mulher misteriosa saiu correndo?

Beijinhos!

[capítulo revisado em 01/06/2021]

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