6 - Domingo
Ficamos cerca de dez minutos abaixados, esperando Dimitri esboçar alguma reação, mas ele só chorava em silêncio. Diferente de seu desespero inicial. Colou as pernas contra a própria barriga e se embalava, como uma criança com frio.
"Di, por favor, fala com a gente. Podemos ajudar..."
Nada.
Aquilo era minha culpa. Eu colocara um trauma nele. A batida da música havia despertado suas lembranças. Ele falou de pessoas queimadas e do pai dele. Ele lembrou do holocausto. Dos campos de concentração.
A memória mais traumática dele era a do dia anterior ao da localização do campo de Sondra. Eles e seus amigos já haviam encontrado três campos, lotados de judeus cativos. Após muita troca de tiros e mortes de parceiros eles os libertaram. Já não tiveram tanta sorte no outro campo. Como o cerco da guerra estava se fechando para Hitler - um dos poucos fatos realmente históricos do meu livro -, ele começou a executar os judeus, os queimando ou em banhos ácidos.
Quando Dimitri chegou ao quarto campo de concentração, próximo à sua antiga morada, estava tudo vazio e silencioso. E fedido. Muito fedido. No meio das buscas encontraram uma pequena construção com chaminé, e lá encontraram os judeus... em cinzas. Tantas cinzas que o vento as levava aos seus rostos. E por mais que eu não tenha citado isso em minhas palavras, pela localidade, Dimitri sabia quem era o responsável por aquele campo... seu pai.
O mais incrível (e apavorante) disso tudo é que esse Dimitri vivo é tão parecido com o meu literário, que até coisas que não tem no livro ele demonstra em suas ações. Em sua essência haviam as entrelinhas.
Percebemos que não adiantava perguntar a ele o que estava acontecendo, então, resolvemos tentar, ao menos, sair daquele lugar, antes que ele piorasse.
"Kat, precisamos tirar ele daqui.", expus meus pensamentos a ela.
"Ty? Pode nos ajudar?", ela pediu, gentilmente.
"Hey, cara... Consegue se levantar?", ele pediu a Dimitri.
Nada.
Tyrone olhava para ele como se ele fosse um doente. Um ódio crescente fez minha mão tremer.
"É pra ontem, Tyrone!", vociferei.
"Calma, Brenda! Acho melhor levar ele no médico. Ele tá piradinho.", circulou o indicador envolta da orelha e eu me irritei ainda mais.
'"Ele não tá 'piradinho', ele tem stress pós- traumático. Ele já foi militar. Vai me ajudar ou não?"
Tyrone o olhou, trocando o deboche por piedade e ergueu Dimitri. Ele conseguia andar, mas não tinha direção alguma. Ninguém mais olhava para ele de maneira estranha, já que diversos outros caras já haviam saído bêbados de lá. Tyrone nos levou para fora. Esperamos Kat - que foi como um jaguar até o estacionamento, para trazer o carro até nós. Assim que chegou, Tyrone abriu a porta e colocou Dimitri no banco de trás do carro. Quando eu estava prestes a entrar, senti alguém me puxar pelo braço.
Kevin.
"O que você quer? Não tenho tempo."
"Qual é, Brenda? O que esse retardado tem que eu não tenho?"
Que draminha era aquele? Resolvi cortar a conversa logo, de uma vez.
"Ele toma os remédios contra TPM. Você devia tomar os seus... Tá parecendo uma histérica."
Ele me olhou com fúria e replicou.
"Pelo menos eu não grito em público."
"Ele tem uma desculpa. Qual é a sua?", ironizei.
Então, fechei a porta em sua cara.
Pedi para Kat dirigir mais devagar, para não deixar Dimitri pior e ela o fez. Ver ele sem reação estava me deixando nervosa. Quando chegamos em casa, tirei a colcha da minha cama, o deitei e joguei meu cobertor de bolinhas rosas em cima dele. Depois, tirei seus sapatos.
"Talvez ele só precise de uma boa noite de sono.", falei mais para mim do que para Kat.
Apagamos a luz e começamos o processo de desconstrução: removedor de maquiagem, pijamas, meias do ursinho Pooh. Meu pijama era rosa e de Kat preto, combinando entre si, já que os compramos em uma liquidação.
"Kat... Tem um soldadinho dormindo na minha cama. Posso dormir com você?", disse, fazendo biquinho.
Kat endureceu as feições.
"Só se você prometer que não vai soltar pum!"
"Não prometo nada!", ri e dei um pulinho.
Ela ficou do lado da parede e eu quase caindo no chão, pelo tamanho limitado da cama. Quando reclamei ela disse que a cama é dela e os termos de uso, também.
"Será que ele vai melhorar amanhã?", ela questionou, fazendo gesto com a cabeça em direção a Dimitri, que já havia adormecido desde o momento que deitou.
"Não sei, amiga. Só sei que tudo isso é minha culpa. Eu fiz isso com ele.", brinquei com a manga do pijama dela.
"Nem posso acreditar que tudo isso aconteceu em apenas um dia. É uma loucura e ainda não sei se acredito em tudo."
"Acha que ele é um impostor?", perguntei, mesmo sabendo que a pergunta era inútil. Mesmo sabendo a resposta.
"Depois de hoje na Poison? Eu que não sou a autora vi que a reação dele ator nenhum seria capaz de atuar. E você, o que acha? Você o criou..."
"Acho exatamente a mesma coisa que você. Sabe, Kat, eu não acredito em magia... Magia nós criamos em nossas histórias. Mas nada tira da minha cabeça que é tudo por causa do livro sinistro. Aquele que eu achei na biblioteca. E eu vou investigar."
"Amiga, você vai se virar bem sem mim?"
"Claro, Kat. Vai em paz. Você vê eles tão pouco e olha que eles moram perto. Eu queria ter essa sorte."
"Mas..."
"Sem mais. Só me deixa o endereço do tal Stephen."
"Falando nisso amiga, como você pensou em Dylan Samberg?", o tom se tornou um pouco mais suave.
Pensei, puxando a coberta para perto do meu rosto. A noite havia esfriado.
"Bom... Samberg era o sobrenome do primeiro menino que eu gostei. Na segunda série. Não vi nunca mais. Dylan foi um nome aleatório que começa com D. Pensei em Diego, mas ele não tem cara de mexicano. ", ri e Kat me acompanhou.
"E Dimitri Strauss? De onde você tirou."
Abro um sorriso, apostando que meus olhos brilhavam naquele momento.
"Dimitri é o nome do par da princesa Anastácia. Eu amava esse desenho quando eu era criança. Ainda amo. Strauss era o sobrenome do meu professor de matemática, chato pra caramba."
"Acho que é por isso que o Di as vezes é tão rabugento! Tanto no livro, quanto pessoalmente. E olho que só tivemos um dia com ele pessoalmente.", brincou.
"Você tem razão", falei tentando rir baixo. Amei contar aquela história.
"Já são três da manhã e eu tenho que acordar às seis. Boa noite, Brendy."
"Boa noite Kat."
Dormi de uma maneira estranha. Como se eu estivesse acordada. Sonhei com as páginas do meu livro, sendo queimadas. Aquilo me deu agonia, como se fosse um pesadelo terrível. Para mim era. Quando acordei de tal noite mal dormida, vi que Kat já tinha ido. As luzes do sol recém-nascido batiam em meu rosto, vindas da janela de nosso dormitório.
Vi Dimitri, sentado na outra cama, olhando para baixo e ainda com a mesma roupa de ontem. Um horror se misturou a minha preocupação.
"Dimitri? Está melhor?"
Ele olhou para mim e deu um sorriso entristecido. Alivio me afagou.
"Parece que o vovô fez vocês passarem vergonha."
Dei uma leve risada, me levantei da cama de Kat e sentei do seu lado.
"Quer falar sobre isso?"
"Eu... Só quero esquecer."
Ficamos uns momentos em silêncio.
"Talvez Dylan Samberg ajude nisso."
"Como?", inclinou a cabeça, em seu clássico gesto de dúvida.
"Oficializando sua nova identidade. Primeiro, tome um banho e coloque roupas mais confortáveis, depois... vamos dar um passeio."
Após uma hora, estávamos nas ruas aos arredores da Universidade. Ele vestia uma calça cinza de moletom, estilo skinning e uma blusa preta, também de moletom. Mesmo com o estilo largado, ainda estava uma gracinha. Eu por outro lado, estava com uma jaquetona rosa, que parecia de uma garota de 8 anos, jeans surrado e uma touca listrada ridícula. O dia tinha esfriado muito em comparação ao dia anterior.
"Onde a Katrinne foi? Quase me esqueci dela..."
"Ela se sentira ofendida por isso!", brinquei. "Foi visitar seus pais. Eles moram em uma cidade ao lado e domingo é o dia mais tranquilo para ela os ver."
"E seus pais?"
"Eles moram em Wisconsin. Era meu lar, antes de Vancouver.", falei, amargurada pela saudade.
"Nossa, é longe Não sente falta deles?"
"Sinto sim, mas... Não me arrependo da mudança. Eles não queriam que eu viesse para cá, mas precisava viver a minha vida e alcançar meus sonhos, entende?"
"Com certeza. Mas, você tem um bom relacionamento com eles?"
"Claro! Ordenhávamos vacas juntos!"
Caímos na gargalhada. Mas logo sua expressão assume novamente ares de tristeza.
"Também me dava bem com os meus. Mas era tudo uma farsa."
Ponderei a respeito de uma boa resposta. Busquei nos fundos da minha mente coisas boas dos personagens que criei. Dos pais dele.
"Talvez não, Di. Pais erram.", optei por uma resposta comum no final.
"Os meus erraram feio."
Estávamos passando em frente a uma igreja quando pedi a ele para que parássemos. A música, agitada, era simplesmente incrível.
"Vamos entrar, Di?"
"Ah não sei não."
"Qual é... Não vão querer te jogar numa piscina e te batizar hoje mesmo."
"Será?"
Levei na brincadeira e depois encarei ele com um olhar de súplica, enfeitado por um bico infantil e mãos em sinal de oração.
"Tá bom!"
Dei um gritinho e puei ele pelo braço.
Era aquele estilo de Afro- Igrejas, que tinham corais agitados e divertidos, um reverendo com uma beca roxa, pulando junto com a galera do coral, que usava becas cor creme. Em pé, junto dos bancos de madeiras, vários rapazes de ternos e gravatas de diversas cores e tamanhos, mocinhas de vestidos claros como aquele domingo e senhoras com aqueles chapelões, como se quisessem que Deus as visse pelo seus chapeis lá do alto. Mas eram pessoas muito doces e felizes. Nos receberam bem e praticamente nos obrigaram a dançar com elas. No início, Di foi bem relutante, mas depois começou a se divertir com as incríveis músicas daquele belo coral. Durante a pregação, o pastor falou sobre traumas da vida e disse que o próprio Deus tinha historias bem traumáticas e a história do próprio mundo era uma delas, fora as do sacrifício. Aquilo caiu como uma luva para ele e, de certa forma, para mim que carregava algumas péssimas lembranças relacionadas a igrejas.
Quando saímos, ele estava bem mais alegre. Percebi que algumas garotas da igreja não tiravam o olho dele durante a celebração e cochichavam entre elas na porta da Igreja. Admito... fiquei com ciúmes. Um ciúme que me negava a aceitar naquele momento. Mas, permanecia feliz.
"Você é uma garota religiosa, Brenda?"
Perguntou, enquanto tomávamos raspadinhas de frutas em um pequeno parque perto de lá.
"Ser religioso é uma coisa ruim. Se eu vou na igreja? Bom... não mais. O tempo meio que me impediu de ir todas as vezes que eu deveria ir. O tempo e... outras coisas.", abaixei a cabeça, tentando enterrar as más lembranças. "Mas eu gosto de fazer coisas do tipo da que fizemos hoje!"
"Eu também gostei! Fazia tempo que eu não ia em uma... A última que eu fui bem... Era em meio a um bombardeio."
"Deveria ir mais vezes comigo.", sorri.
"É bem melhor do que a tal Poison."
"Com certeza, e fico feliz de saber que você concorda comigo. Dois a um, Kat.", comemorei, jogando as mãos para o alto.
Rimos mais um pouco, lembrando da coreografia engraçada de um dos rapazes da igreja e ficamos olhando as crianças brincar por um tempo no parque.
"Quer ir no balanço, Brenda?"
"Vamos lá.", topei, me levantando.
Fomos correndo até o balanço e me senti ridícula por parecer um pequeno boneco de neve correndo.
"Vamos ver quem pula mais longe!", ele parecia um menininho feliz.
"Não, Dimitri não se atreva, isso doí e muito."
"Escuto uma galinha cacarejar de medo. Mas não vejo nenhuma, só vejo a Brenda."
"Para de ser infantil, não!"
"Vou cacarejar até você ir."
"Você é ridículo, Strauss!"
Ele começou a dar os cacarejos constrangedores.
"Ok! Vamos.", gritei, tentando acabar logo com aquilo e sentei-me em um dos balanços. Dimitri foi logo ao lado.
Comecei a pegar impulso, e ele também. Eu tinha mais dificuldade, pelo fato da jaqueta enorme grudar na corrente do balanço.
"No três. Um, dois..."
Me joguei. Ele se jogou logo depois. Minhas costas e panturrilhas ardiam profundamente pelo impacto e eu me arrependi amargamente por ter feito aquilo. Dimitri era só risos.
"Sua burra, eu disse no três!"
"Eu só queria acabar logo com isso! Te odeio!"
Gargalhamos demais, ainda caídos na grama do parque. Me sentei e ele imitou.
"Chega de criancices. Hora de dar vida a Dylan Samberg."
Como o carro estava com Kat, tivemos que ir até a casa de Stephen de ônibus. Ainda nos divertíamos muito. Mostrei a Dimitri algumas músicas atuais pelo meu celular e ele disse que algumas cantoras pareciam hienas dando à luz, enquanto cantavam. Ainda olhava maravilhado ao celular, como se fosse feitiçaria ou extraterrestre, alternando as vezes entre a tela e a janela do ônibus.
Quando chegamos a casa de Stephen, o garoto de 17 anos, amigo do primo de Kat - que era um mega hacker, especialista em atividades bem ilícita - sua doce avó nos atendeu. Dissemos que éramos amigos. A casa era decorada com cores opacas e frias, mas cheia de vasinhos e ornamentos.
"O bebê nunca tem visitas. Fico feliz por ele ter amigos.", a doce velhinha nos guiava pela casa, enquanto eu segurava a risada.
"E onde o bebê está?", ironizei.
"Jogando o tal de Ivi, Ivi."
"Resident Evil, vó. E não me chama de bebê."
O garoto apareceu por detrás da porta de um quarto, com jeans e camisetas escuras, cabelos negros e longos, jogados para o lado e pele pálida, com muitas espinhas vermelhas, no rosto. Uma expressão bem infeliz no rosto dele brotara.
"Vamos ao meu escritório."
Entramos no quarto, escuro, cheio de pôsteres sombrios e pelo menos quatro telas de computador, pulsando.
"Fiz RG, passaporte, carteira de motorista e certificado do ensino médio. Como fiz de última hora, então tá meio feio. Mas, daqui a um mês, terei novinhas em folha. Tudo pela Katrinne, Dona de mim."
Iria zoar a Kat pela vida toda, depois do comentário do garoto cheio de espinhas.
"Só precisam tirar fotos 3x4 e colar nos campos em branco."
Dimitri pegou os documentos, feliz pelo nome registrado: Dylan Lucas Everest Samberg.
Seu novo nome.
Capítulo Revisado e Corrigido 📌
Beijos Carol❤💛
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