39 - Apenas Palavras
Eu sempre achei interessante os sistemas de mudança de marcha de um carro.
É audível e perceptível a progressão da força e capacidade de cada uma das marchas, mas é necessário prestar a atenção. O som começa baixo e conforme você acelera, ele se intensifica e dá a sensação de que a qualquer momento, o motor irá explodir. Então você muda para a segunda marcha e o som volta a tranquilidade, demorando um pouco mais para chegar, de novo, ao seu extremo. A última marcha é a quase impossível chegar ao limite. O som tranquilo se demora muito e, apenas se você for um louco, ou piloto de testes, você não chega ao som agoniante e agudo que a capacidade máxima do motor emite.
A palavras de Dimitri fizeram meu motor chegar ao extremo. E eu estava na última marcha.
Não havia como trocar para a próxima marcha, nem voltar a anterior. Meu motor explodiria de qualquer forma. O zumbido que dava indícios da sobrecarga era incontrolável. O motor era meu coração e tudo estava tão acelerado que... que um acidente aconteceria.
Segurei sua mão e pressionei meus lábios tanto que pensei que os machucaria. Eles eram como portas de um cofre, que forma alguma se abriam. Minha testa se franziu. Aquilo realmente estava doendo. Estava doendo muito, muito mesmo. Tudo o que eu pude dizer foi...
"Não. "
"Não cabe somente a você decidir, Brenda. ", ele disse, também com uma expressão de dor. Ele estava ainda mais pálido do que o comum.
Segurei ainda mais forte suas mãos. Eu não as soltaria.
"Nem a você...", balbuciei. "Nem a você. Você não pode fazer isso, você vai morrer! "
"Eu não pertenço a este lugar."
Ele fechou os olhos e respirou fundo. Buscou o ar como um aspirador busca a poeira de um carpete. Suas mãos subiram às maçãs do meu rosto. Tão quentes. As mãos que me conheciam há meses, mas que eu as conhecia há anos. As que jamais me tocariam outra vez.
"Você não..."
Todas as palavras do meu vocabulário fugiram de mim. Eu não era capaz nem de reproduzir sons. Era como naqueles pesadelos, em que sua voz é tirada e não basta gritar. Ninguém me escuta.
"Eu sei. Eu sei que nós estamos felizes, mas eu não posso permitir que aconteçam mais coisas como o que aconteceu desta vez. Você não merece isso. Eu sou o intruso. "
"Você não é intruso! ", eu quase gritei, segurando seu rosto com as minhas duas mãos. "Você nunca foi, Dimitri. Sempre esteve em mim e agora está comigo e isso não pode mudar. Por favor, esqueça essa ideia. Nós podemos lidar com isso... nós podemos mesmo! Não faça isso comigo, não me peça, não me peça para matá-lo, porque se me pedir isso, vai matar a mim também."
Soluços cortavam as minhas palavras, tornando-as tão incoerentes quanto rastros de areia no deserto. Ele me abraçou, depois puxou minhas pernas e me aninhou em seu colo.
"Eu também não quero isso. ", suas lágrimas pingaram no tecido liso da minha camisola. "Mas sabemos que não podemos lidar. É a magia que me mantem aqui que está te destruindo. Eu jamais serei egoísta o suficiente para te permitir enlouquecer. Continuar aqui sabendo que te custará a sanidade. Não vou fazer isso Brenda. Temos que colocar as coisas no lugar. "
"Pascolle disse isso? Você foi atrás dele? ", questionei.
"Além de falar com Kat... Sim eu fui, para garantir a informação. Não que eu não acreditasse nela, mas se tem alguém que conhece bem a magia deste livro é ele. Ele me... Orientou enquanto estávamos separados. "
"Mas ele não é mais o guardião. Talvez algo tenha mudado. Talvez... Talvez haja uma forma de darmos a volta por cima disto."
Ele soltou-me do abraço e eu olhei bem para infinidade castanha de seus olhos gentis.
"Dimitri, por favor me dê um tempo. Eu vou achar o novo guardião e, talvez ele seja mais criativo e aberto que o senhor Pascolle e possa me dar uma solução, mas por favor me espere. Não faça nada ainda, eu não vou suportar. ", supliquei, com um choramingo.
Ele assentiu, fechou seus olhos e colou sua testa na minha.
"Por você. Eu vou lhe dar um tempo. Mas não tente prolongar o inevitável, Brenda. Vai doer muito, para nós dois. Mas você não merece perder sua vida por minha causa. Eu sou apenas palavras. "
Depois de meia-hora, meus pais vieram me visitar, juntamente com o doutor. Como Dimitri disse, o que constou no relatório foi um surto intenso de ansiedade. Tão intenso que meu próprio corpo me apagou. Disseram que eu passei por diversos exames após tudo, como tomografias, eletros e exames de sangue. E quando eles não têm a resposta, eles culpam o psicológico. Meus pais foram obrigados a marcar consultas regulares para mim em um psiquiatra e eu tive que aguentar milhares e milhares de perguntas da minha mãe. Fora que meu pai desconfiou de Dimitri, explicitamente. Me senti pior ainda.
Mas nem tudo isso tirou da minha mente as palavras de Dimitri sobre seu manuscrito. Eu não poderia permitir isto. Não depois de tantos planos... Não depois de ter me ligado tanto a ele. Não depois de ter me apaixonado e de ter prometido a mim mesma que nada mais nos impediria de ficarmos juntos.
Minha mãe insistiu para que eu ficasse com eles em Riverwood. Ou, que fosse morar uns tempos com Declan, enquanto ele terminava a faculdade, porém recusei. Disse que os planos para Nova York continuavam de pé, mas que eu ficaria pelo menos mais um mês em Vancouver, com Dimitri.
"Como espera que deixamos você sozinha com ele, depois de tudo? ", meu pai gritava. Deixamos para solucionar nossas brigas na casa de Kat, novamente na cozinha dos pesadelos, já que todas as minhas coisas ainda estavam lá. Meu rosto ardia de vergonha.
"Se eu realmente estivesse assim porque ele está me tratando mal, acha que eu insistiria nisto, pai? ", retruquei. "Meus tempos de ser feita de boba por homens passaram há muito. Dimitri nunca foi e nunca será como Isaac, então supere isso e não tente me afastar dele. Vamos ficar longe um do outro por meses. Por favor... São só algumas semanas. "
Dizer que minhas palavras não foram suficientes para convencê-lo seria o eufemismo do século. Porém, como sempre, minha mãe foi o poder de convencimento maior. Ela notou o desespero em meus olhos. Algo parecido como quando descobrimos a doença hereditária do meu cachorro Tangles, quando eu tinha nove anos. Eu sabia as semelhanças do caso. Eu perderia Dimitri para sempre, assim como perdi Tangles. Mas, se a dor de perder meu bichinho furou buracos em meu coração, perder Dimitri seria uma cratera apocalíptica.
O colega dele – apesar de nerd – havia mudado para uma casa de república. Os tempos modernos comprovavam: ser nerd, agora, era sinônimo de ser descolado. Kevin sempre fora uma prova disso, apesar de sempre suprimir sua personalidade nerd com uma falsa arrogância e narcisismo. Porém as máscaras não duraram por muito tempo. Depois de tudo, ele mesmo aceitou sua personalidade e até promovia campeonatos de RPG na casa dos Betas. Tinha quase certeza de que o colega de Dimitri fora para lá.
E, se eu nunca fui uma namorada grudenta, naquele momento em específico eu com certeza estava sendo. Eu não queria o largar de jeito algum. Por muitas vezes, quase o impedi de ir as aulas. Mas então eu lembrava que talvez... essas fossem suas últimas aulas. E, por mais que eu quisesse, era difícil estancar o vazamento desses tipos de pensamentos.
Certo dia, após uma semana com ele insistindo que andássemos logo com nosso plano inicial, antes que eu surtasse mais uma vez, acordei antes que ele.
Eu nunca acordava antes que ele.
Fiquei observando seus traços. Um homem com certeza, mas seu rosto tinha ainda a suavidade de um rosto de garoto. A inocência. Dimitri era uma das coisas mais puras que o mundo poderia conhecer.
Ele nascera dos meus sentimentos mais doces. Dos momentos que minha escrita era meu escape dos problemas. Nasceu da idealização. E é impossível alguém ser perfeito quando se torna carne e osso. Mas Dimitri com certeza conseguia chegar muito perto disso.
Ele abriu os olhos aos poucos. Recebendo a luz e a primeira imagem do dia dele: meu rosto amassado de tanto chorar. Ele envolveu os braços envolta de meu pescoço e, pela cintura, me puxou para mais perto.
"Assim tudo fica mais difícil!", ele disse.
"Você tem que me dar mais tempo.", eu supliquei. "Preciso achar o novo guardião!"
Ele afagou minhas costas e deu um leve beijo em meu ombro.
"Vamos até Pascolle de novo."
"Não.", arquejei, despejando lágrimas em seu ombro. "Ele... Vai dizer o mesmo que vem dizendo desde que fui a primeira vez."
"Mas talvez ele saiba quem é o novo guardião. Não temos pistas, Brendy. Precisamos ir a quem sabemos que conhece das coisas."
Relutantemente eu aceitei.
Fomos até a casa de repouso, após um almoço rápido e tão frio quanto os meus sentimentos, na pizzaria. Ele pegou a moto e disparou em direção ao destino e cada momento em que eu podia tocá-lo, eu traçava em minha mente tudo o que eu sentia. Como era. Porque eu não queria perdê-lo, mas não queria esquecê-lo se eu o perdesse.
Eu fotografava cada sensação, cada sentimento e até mesmo o perfume irritantemente doce dele.
Paramos em frente a casa. A recepcionista não parecia surpresa em nos ver de novo. Me perguntei se ela, em momento algum, nunca estranhou a quantidade de jovens estranhos que visitavam o velho e solitário senhor Pascolle.
Ele estava no jardim, descascando uma tangerina com seus dedos enrugados. Para alguém de muita idade, Pascolle tinha uma boa audição. Ele subiu o olhar assim que nos aproximamos de seu banco de pedra no jardim. Seu pomo de Adão se tremelicou por baixo da pele sanfonada do pescoço e ele nos lançou seu olhar rabugento de insatisfação.
"Vocês de novo não!", ele falou, cuspindo fragmentos de tangerina.
"Não vamos incomodá-lo tanto.", Dimitri disse se sentando a sua direita.
Eu o imitei e sentei-me a esquerda.
"Nós só... Queríamos saber se o senhor, de repente... Conhece o novo guardião. Queríamos falar com ele."
E de todas as reações que eu pensei que o velho teria, ele esboçou a pior. Ele riu. Não uma risada sarcástica ou forçada. Ele deu gargalhadas e gargalhadas.
Apertei meus punhos contra as minhas coxas. Pedi a Deus auto controle para não xingá-lo e não desrespeitá-lo por sua idade. Tudo que pude fazer foi me levantar e falar da forma mais dura possível:
"Acha isso engraçado?"
E então ele parou, e ficou me observando com seus olhos azuis e cansados.
"Acha mesmo engraçado? Mesmo sabendo do que está acontecendo?"
"Menina..."
"Olha eu estou numa encruzilhada das grandes. Eu tenho que escolher entre minha sanidade e a vida do homem que eu amo. Uma vida. Olhe...", peguei o braço de Dimitri e coloquei diante de seus olhos. "Ele é real. Carne e osso! E você ainda ri? Não faz ideia do quão... Doentio isso é?"
Ele piscou algumas vezes. Dimitri pediu para eu me acalmar.
"Não estou rindo disso. Eu... Entendo vocês melhor do que ninguém."
Dimitri mordeu o lábio inferior e enrijeceu o maxilar. Mal notei que ele também havia ficado em pé ao meu lado.
"Então por que está rindo?!", Dimitri quem parecia bravo desta vez.
"Porque é absurdo o que vocês estão me pedindo. O novo guardião, quando é escolhido, passa anos imergido em centenas de livros, aprendendo sobre magia. Vocês não vão encontrá-lo tão cedo."
Fechei meus olhos. Eles queimavam.
"Você está mentindo.", retruquei.
"Por que eu mentiria?", ele perguntou sério.
"Não sei. Não gosta da gente. Não gosta de mim e de Dimitri."
Eu estava patética. Não havia argumento algum. Mas eu não estaria mesmo disposta a deixar as ideias descerem assim em meu coração. Não estaria disposta a largar a última esperança que eu tinha, que era o novo guardião.
Mas as esperanças caíam como folhas no outono. Como as folhas do outono naquele jardim.
"Eu sei que sou rude, garota. Eu vivi muito tempo privado de muitas coisas e acabei me amargurando. Mas não menti em relação a nada e não odeio você e seu personagem. Já vivi o que vocês estão vivendo. Já amei uma personagem minha.", ele disse, com o tom mais dócil que já ouvi de sua voz.
Dimitri se sentou ao seu lado e eu também retomei meu lugar.
"O nome dela era Ronnie Grant. A garota mais linda do mundo. Para ser guardião do Imaginare, é necessário ser leitor e escritor. Então dediquei muito tempo a ela.", ele contava com a voz fraca e melancólica. "Ao treinar os poderes do livro, usei Vita Quae non est. E vivemos muito tempo, juntos e felizes. Estávamos... Conectados. Mas depois de um tempo, passei a ficar confuso. Insano. Descobri depois de viagens e viagens que o próprio poder do Imaginare designava essa consequência, como correção da anomalia. Eles... Não pertencem a este lugar. A magia é temporária e se não é cumprido o seu tempo, ela bagunça a mente do autor até não sobrar nada além de uma página em branco."
Seus lábios finos tremiam. Os meus lábios também.
"Eu não queria queimar. Meu manuscrito. Mas quando estava quase sem nada para me manter consciente, a teimosa da Ronnie acabou consigo mesma. Despertei da loucura, mas houveram consequências. Eu não podia mais escrever sobre ela e todos que interagiram com ela se esqueceram que ela um dia existiu."
Me senti na Lua. Ali não havia oxigênio.
"Então... Você está dizendo que além de eu perdê-lo... Ninguém lembrará dele?"
Pascolle abaixou a cabeça. E eu tremi. Tremi muito. Me levantei e sai caminhando de costas.
"Não... Não me peça para fazer isso, Dimitri."
"Brendy..."
"Não vou."
Sai correndo para fora da casa, pela rua iluminada pelo crepúsculo. Os olhos queimando e um aperto desesperador no coração que me triturava. Eu não tinha mais o estômago e minha cabeça doía por um peso invisível. Cai no chão e soluços convulsionaram meu corpo e eu chorei e chorei até Dimitri aparecer atrás de mim.
Ele se sentou ao meu lado e eu o abracei. E me derramei ali. Com a maior dor. Com a dor que eu jamais senti.
Era essa a dor ao se perder alguém.
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"Sempre gostei do efeito do Sol nos seus olhos."
Estávamos na ponte do lago. No bosque onde acampamos. Eu estava escorada em seu peito, olhando em seus olhos. Seu peito subia e descia sob o meu. A respiração quente se misturava a minha. Ele frequentemente ajeitava minha touca de bichinhos. E eu queria me trancar naquele momento para sempre.
Eu chorei durante muitos dias. Ele teve muita paciência comigo. Pois eu insisti por infinitas vezes que ele deixasse isso para lá. Que resolveríamos tudo, como sempre. Que ficaríamos bem juntos. Mas ele não estava disposto a abrir mão de mim. Disse que não pertencia àquele lugar e não cometeria tal injustiça.
E os sussurros de Sondra ficaram piores. Era como se o universo conspirasse contra nós.
Não fiquem juntos.
Não fiquem juntos.
Não fiquem juntos.
Ele não quis se despedir de ninguém. Nem de Kat. Disse que seria bem mais doloroso. E inútil, já que ninguém lembraria dele.
Passamos mais uma semana juntos. Filmes e filmes. Muita comida. Muitos beijos. Nada era o suficiente. Disse a ele que poderíamos ter feito mais. Eu até mesmo casaria com ele. Mas ele também afirmou que seria pior.
Ele disse que deveríamos cortar o mal pela raiz.
Tudo o que ele me cedeu foi um último dia juntos. No lago. Antes de tudo acabar.
E lá estávamos lá. Compartilhando daquela paz breve e momentânea. Eu me esforçava para manter-me longe das lágrimas. Mas elas batiam freneticamente às portas de minhas pálpebras.
"Meus olhos são comuns.", sussurrei.
Ele beijou os nós dos meus dedos.
"Não mesmo."
E inspirou.
"Desculpe. Esse era o momento perfeito para dizer tudo o que eu sinto. Mas eu nunca fui muito bom em me expressar com discursos.", ele riu.
Beijei levemente seus lábios e sorri neles.
"Você não precisa. Você já disse tudo. Com atos."
Nos beijamos de novo e aproveitei o silêncio deitada em seu peito por minutos que se tornaram horas facilmente.
No final da tarde, ele olhou para a bolsa do manuscrito com dor. E eu entendi seu olhar.
"Está na hora, brotinho."
Segurei em seu rosto. E meus olhos queimaram de novo. Meu queixo tremia. E selei outro beijo nele. Que deveria ter sido calmo. Deveria ter sido calmo.
Mas foi apaixonado. E ele me beijou como se meus lábios fossem seu oxigênio. E meu estômago se desfez como açúcar derretido.
Depois separou-se de mim e pegou as muitas páginas de sua história. De nossa história.
E como um filme, lembrei-me das noites que passei isolada, em uma epifania de escrita, imersa em todo o seu universo, tampouco me importando com o quão estranho era me apaixonar por fragmentos da minha mente, porque para mim Dimitri sempre foi muito mais do que só palavras.
Eu peguei o manuscrito. E o isqueiro.
E no último segundo em que encarei seus olhos, agradeci a Deus por ter me dado aqueles dois anos com a melhor coisa que eu já fiz.
E suas páginas viraram cinzas. E com elas, ele se foi.
Gente... Não me matem.
Eu realmente chorei escrevendo isso e não estou falando por falar.
Dimitri me marcou muito e esse capitulo não significou só o fim dele, mas representa o final da historia.
Entendam o que esta por trás do fim. Não foi somente para dar uma de John Green e matar vocês. Foi por uma boa razão.
Sorry ☹
Continuem comigo.
Beijos Carol❤
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