38 - Planos

O Hotel era tão grande que seu terraço era subdivido, como se houvessem vários em um só.

Por sorte, eu e Dimitri fugimos da velha. Nos sentamos, no chão ainda um pouco ruborizados e risonhos pelo flagra. Dimitri abotoava os botões soltos da camisa enquanto eu corava mais do que bebê com febre.

O céu, ostentando estrias vermelhas em um negrume inicial da noite ainda precoce, parecia bem com tudo o que eu sentia em meu interior. Uma tempestade de emoções.

"Brendy, não queria te deixar sem graça, mas seu vestido tá aberto nas costas."

Contorci minha mão até as costas e confirmei sua afirmação, corando ainda mais do que antes.

"Droga! Você é um safado mesmo, Strauss."

"Falou a que quase arrancou minha roupa no corredor!", ele riu e depois deu uma piscadela. "Vem cá, eu subo o zíper."

"Nem ferrando, tiozinho. Isso é só um pretexto pra ficar de olho nas minhas costas nuas."

Ele me beliscou e disse com um sorriso malicioso:

"Tudo bem. Mas hoje a noite, você não escapa."

Nos olhamos por um tempo e eu agradeci por ele ter me beliscado, caso contrário, ainda estaria perdida nos devaneios infinitos em que eu me encontrava. Finalmente estávamos ali, sem mentiras... E compartilhando do mesmo sentimento.

"Estou feliz, mas ainda um pouco irritado. Não deveria ter mentindo."

Abaixei a cabeça, assentido.

"Me desculpe mesmo. O que te fez mudar de ideia?"

Ele olhou para cima, com um leve sorriso.

"Bom... Depois de um tempo sozinho e pensando, percebi que se, talvez, eu estivesse em seu lugar, talvez eu teria feito o mesmo. Sabe... Mentir!"

Segurei sua mão, um tanto curiosa com sua resposta.

"Mesmo?"

"Sim... Eu pensei que mediante a complicação da situação e, justamente por eu sempre seguir o caminho mais difícil das coisas, eu provavelmente teria mentido. Como quando eu... Parti. Menti para Sondra, dizendo que fugiríamos juntos e fui para o exército."

Vi uma tristeza profunda em seus olhos.

"Provavelmente porque você, tecnicamente, sou eu.", brinquei.

Ele sorriu outra vez.

"Sou uma versão mais bonita."

Ele pegou uma das minhas mãos e beijou. Senti que estava esquecendo alguma coisa, quando me lembrei de meu voto interno de ser totalmente verdadeira com ele, depois de tudo.

"Di... Eu ando passando por algumas coisas desde que você chegou. E vêm sendo mais frequentes."

Ele franziu o cenho.

"O que houve, brotinho?"

"Sabe, depois que começamos a passar mais tempo juntos, comecei a ter uns pensamentos estranhos. Algumas... Memórias que não pertencem a mim. E depois de um tempo eu passei a reconhecê-las. Eram da Sondra."

Ele mudou de posição, ficando um pouco tenso.

"Como sabe que são dela? As memórias?"

"Porque eu a criei. São coisas que eu deixei de fora da história original, mas sempre mantive nas entrelinhas. Na minha mente. Como por exemplo..."

Hesitei.

"Como por exemplo o que?", ele insistiu.

"Como por exemplo... A gravidez de Sondra."

Seu rosto se expandiu em surpresa, depois se contraiu em dor.

"Grávida? Sondra estava... Grávida?"

"A princípio não. Eu não quis colocar isso em meu livro, por considerar um clichê de histórias românticas. Sempre um filho. Mas acho que a história se desenrola por si só. Sempre imaginei que, se Sondra estivesse grávida, faria de tudo para esconder fisicamente a barriga, para que não colocassem a vida dela e a do bebê em risco. Então, pouco antes de você sair do livro... Quando a viu finalmente, talvez não tenha notado porque estava bem escondido. Mas o bebê já estava lá. "

Ele sorriu, mas seu olhar permanecia triste e sem foco, fazendo meu coração arder de tristeza com o dele.

"Ela está bem, não está? Eu passei um bom tempo focado no Imaginare e sei que o fato de eu estar aqui não altera o meu eu lá. Então ela está bem? E eu também, não é?"

Me aproximei dele, entrelacei meus dedos nos seus e encostei minha cabeça em seu ombro.

"Sim. Ela está. Nada mudou no livro, você pode ler. Você continua lá com ela e... Aqui comigo."

Me voltei para ele, que estava com um sorriso fraco no rosto. Ele brincou com algumas mechas do meu cabelo e disse em um sussurro:

"Eu gostaria de saber como teria sido... Se eu tivesse sido pai. "

Esfreguei suavemente meu dedão em sua bochecha esquerda e, de repente, uma ideia incrível acendeu como luzes de natal em minha mente.

"Acho que posso ajudar com isso. Mas precisamos ir pra casa."

Ele sorriu e me ajudou a levantar, e depois correu imediatamente em direção as escadas. Corri atrás dele, implorando que ele fosse mais devagar, pois era impossível correr em segurança, com um vestido aberto nas costas.

Kat ficara na cerimônia e me disse que sairia com Phellix depois dela. Então, eu e Dimitri fomos até o meu dormitório. Mas, por meia hora, ele saiu para buscar algumas coisas como roupas, escova de dentes e um de seus livros. E nesta meia hora, arranquei rapidamente o vestido, o substituindo por shorts e moletom longo e ligando rapidamente meu notebook.

E as palavras rolaram.

Epílogo

Não me imaginava feliz depois de tantos anos de dor. Mas, de repente, tudo me parece perfeito.

Sondra está brincando com o pequeno Lukas, perto do lago. A forma que o Sol batia em suas águas, o deixava com um aspecto de cristais amarelos. Como uma paisagem que só poderia ser apreciada em uma pintura.

Então meu filho me tirou de meus devaneios acerca da paisagem. Seus bracinhos envolviam meu pescoço e ele tentava me derrubar de vez no chão, vingando-se da sessão de cócegas que promovi no dia anterior. Os olhos azuis como os da mãe. Os cabelos castanhos como os meus.

Naquele momento percebi que realmente a felicidade podia se concentrar nas menores coisas. O universo concentrado em meu pequeno mundo.

Quando Dimitri chegou, fiz ele se sentar na cama e ler meu pequeno rascunho.

Ele começou sorrindo. Depois seu rosto se fechou, quase como se sentisse dor. Até que algumas lágrimas rolaram. Muitas emoções em poucos minutos. Percebi que ele já havia repetido a leitura pelo menos cinco vezes. Fechei a tampa do notebook, interrompendo-o e questionei, com o corpo encolhido.

"Muito ruim? "

Ele sorriu de uma forma que eu nunca tinha visto. Senti sopros de ar puro em meu peito.

"Foi a coisa mais linda que eu já li."

Esperava outro sorriso, mas ele franziu a testa em sinal de dúvida.

"Estou preocupado com você. Essas... Memórias que você falou, são ruins? Quero dizer, para você?"

Assenti, mas depois sorri, novamente ocultando a gravidade da história toda.

"Mas acho que poderiam ser piores. "

"E o que nós vamos fazer agora?"

Abracei ele e respondi da forma mais breve possível.

"Vamos apenas viver. "

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Depois de toda a tempestade, veio a calmaria. Ou, melhor, a falsa calmaria. Eu e Dimitri voltamos as nossas rotinas comuns. Eu estava muito perto de terminar meu curso, de forma que eu passava boa parte do meu tempo focada nos trabalhos. Dimitri ainda estava no começo de tudo, mas se mostrava tão dedicado quanto eu.

Meu livro vendia bem, apesar de todo o show que demos na estreia. Não era algo extremamente grandioso quanto eu sempre sonhava e teve as contas dos demais lotes de impressão que eu tive que pagar, apesar de ser apadrinhada pela Petunia. De qualquer forma, me sentia alegre por ter um público que apreciasse a minha história.

Dimitri leu o livro todo comigo. Em muitos momentos, quando sentávamos na grama da praça e eu o observava lendo, achava fofa a forma que ele corava lendo sua própria história. E eu ponderava em como tudo aquilo poderia ser desconcertante para ele. Desconcertante e fascinante.

Agora sem mentiras – ou quase sem – fazíamos tudo, sempre juntos. Grudados em todos os momentos, exceto pelas aulas e trabalhos. As pessoas tinham mania de dizer que já parecíamos casados. E com tudo isso Dimitri começou a armar alguns planos para depois de sua formatura. Ele conseguiria um emprego de professor, ou em um museu, e eu já estaria trabalhando para uma das centenas de editoras em que eu mandei meus currículos. Teríamos uma casinha em Vancouver, ou um apartamento em Nova York – ainda estávamos decidindo. Teríamos dois filhos. Um garoto e uma garota que nós ainda não fazíamos ideia de quais seriam seus nomes.

Planos. Planos que foram desgastados com o tempo. Planos que nunca aconteceriam. Pois a promessa do Imaginare nunca fora de bênçãos a vida toda. Na verdade, ele vinha com uma maldição disfarçada de benção.

Foram vários eventos que, como uma escada caracol, ascenderam junto com a minha insanidade. Toda noite eu acordava, chorando e catatônica, tentando catalogar cada uns dos meus pensamentos.

Brenda Mitchoff era meu nome. Não Sondra Yelzen.

E não importava se Dimitri estava longe demais ou perto demais. Eu não conseguia impedir os rabiscos confusos que se desenhavam em minha mente. E eu acordava, assustada, olhando para o nada e agarrando o meu corpo, pedindo para que parasse. E me esquecia de onde eu estava. A linha entre minha realidade e minha imaginação estava tão tênue, que várias vezes ao dia eu misturava as coisas. O desenho, estampado nas embalagens de cereais, me lembrava da ração velha e podre dos campos de concentração. Se antes os barulhos dos tiros de filmes assustavam a Dimitri, agora eles me assustavam. Eu trocava muitas vezes palavras do inglês norte-americano atual por palavras britânicas já em desuso.

Sondra odiava tomates. Passei a odiar tomates.

Sua cor favorita era azul. A minha passou a ser azul.

Eu passei até mesmo a reclamar de quando Dimitri me chamava de "brotinho". Eu sempre amei. E Sondra sempre odiou. Isso sem mencionar uma gravidez psicológica que eu acabei ocultando dele. Eu fazia exames de farmácia toda semana. Sempre negativos.

Eram coisas importantes a se considerar. Eu não deveria tê-las ignorado. Pois todas se culminaram em um sintoma monstruoso, em um dia que deveria ser um dos mais felizes da minha vida.

Era verão de 2018. Minha família toda estava para vir até Vancouver para comemorar minha formatura. Kat e seus pais haviam marcado uma festa com seus familiares e os meus, afim de aproveitar o momento.

Ela iria para a Europa. Seu pai tinha contatos em Paris e conseguira uma vaga para ela em uma das mais renomadas organizações culturais de lá, sendo responsável no planejamento de eventos de literatura, e integração internacional de várias culturas das arestas europeias e de outros lugares também. Fiquei muito feliz pela minha amiga.

Phellix ficaria na universidade. Ele sonhara mais alto, quando viu até onde Kat chegou. Ele desistiu do emprego de monitor e se inscreveu no curso de economia. A distância seria um obstáculo para ambos, mas os dois concordaram de esperar um pelo outro, e eu sei que eles cumpririam esta promessa.

Meu sonho e o de Dimitri estava finalmente aprendendo a caminhar, como uma criança que antes só engatinhava. Ele terminaria o curso e eu, por ironia do destino, iria para Nova York, trabalhar na editora de Peter Firest. Chegava a ser engraçado o fato de que o cara que me rejeitou, tenha me contratado.

Eu já havia arrumado todas as minhas malas. Eu e Kat já havíamos desmontado, separado e despachado os móveis, para nossos destinos. O dormitório estava vazio. Em um espirito melancólico, passei os dedos pelas paredes, imaginando quais seriam os próximos pares de garotas que viveriam neles. Eu e Kat nos abraçamos e nos despedimos do nosso pequeno mundinho.

Ela deixou que eu me aprontasse em sua casa. A primeira vez que eu tinha ido até lá, fiquei impressionada com o tamanho da casa. Enorme em extensão e altura, diversos quartos – mais especificamente suítes – e ornamentos clássicos. Um pedacinho da Inglaterra no Canadá. A cerimônia de colação havia sido há uma semana, mas nós estávamos muito mais ansiosas por este momento.  Tomei banho e coloquei um vestido branco, liso e com alguns detalhes bordados nas alças, e uma sapatilha da mesma cor.

"Está linda, Brendão!", Kat brincou, enquanto colocava um brinco dourado, combinando com o vestido pêssego.

"Não consigo me imaginar sem você, Katrinne. "

Ela me abraçou e bagunçou meu cabelo.

"Nem tente, Mitchoff. Você não vai borrar minha maquiagem. "

Os Keegan haviam convidado muita gente. Eram pessoas da família, amigos, colegas de negócios. Me senti diminuída perante tanta gente importante, mas sabia que sua família era mesmo de fazer seus eventos pessoais virarem uma grande social aos finais de semana. Meu coração relaxou quando vi meus pais, Declan, Tricie e Dimitri sentados em uma das mesas colocadas nos jardins dos Keegan.

Abracei cada um deles e dei pulinhos de alegria quando soube que Declan voltou para a faculdade e estava namorando com Tricie. Algumas pessoas passaram por nós, nos cumprimentando e após muitas conversas e risos, Dimitri me levou até um ponto distante do jardim para ficarmos a sós.

Perto de um arco de folhas, ele segurou minha mão e a levou até seus lábios.

"Brenda... Eu sei que... Temos muito o que fazer ainda, e nos próximos meses ficaremos distantes um do outro. Mas eu não consigo mesmo mais controlar minha ansiedade. "

Ele tirou do bolso da calça uma caixinha preta.

"A gente ainda pode esperar tudo acontecer. Mas qual o problema de noivar agora? Eu sei... não estou sendo muito romântico. Nem aquele pedido pirotécnico que eu desejava fazer, com uma orquestra e patinadores no gelo... é que...", ele passou a mão em seus cabelos, coisa que fazia  quando estava realmente nervoso. "É que eu te amo de verdade. E quando se ama, não dá para esperar. "

Ele estava prestes a se ajoelhar. Prestes a ser um cavalheiro e, mesmo nervoso, prestes a fazer um pedido. Foi quando algo se apossou de minha mente. Prendi a respiração por um longo segundo e olhei ao redor. O cenário aos poucos se transformava e percebi que já não estávamos mais no jardim de Kat. A noite virou dia, o jardim virou um campado de fazenda e as roupas modernas de Dimitri foram substituídas por calças largas, camisa azul, suspensórios e chapéu marrom.

E eu já não era mais eu.

"Levante-se.", falei sem autocontrole.

"O que? "

"Como você... Se atreve a me pedir isso. Você... vai embora amanhã! VAI ME DEIXAR. Vai me deixar e agora quer que eu faça meus votos, sabendo que você vai retornar morto? "

"Brenda? ", ele se levantou, confuso e eu fui trancada no mais fundo da minha mente.

Eu o empurrei, com todas as minhas forças e uma onda de soluços e choro queimou em meu rosto.

"Você disse que não iria para guerra. QUE PODERÍAMOS FUGIR. Mas você vai morrer. Como meu irmão morreu."

Ele segurou meus ombros e me sacudiu, com o mesmo olhar de terror e reconhecimento que esboçou no dia da verdade: ele sabia que era Sondra.

"Brenda se acalme e olhe pra mim. Olhe pra mim."

O empurrei outra vez, forçando minha mente a cooperar, mas nada adiantava. Eu havia perdido o controle.

Corri para longe, atordoada com a mistura de cores e cenários. Entrei no lugar que eu reconheci ser a cozinha. Passei a mão pelos armários e uma nova corrente de ódio percorreu da planta dos meus pés ao pico da minha cabeça e joguei com toda a fúria as louças caras dos pais de Kat no chão, nas paredes...

Eu estava insana. As pessoas tentaram me segurar e perguntavam o que estava acontecendo, mas minha visão estava fechada como um dia de temporal.

Sentei no chão, rodeada pelas pernas muito mais longas do que eu pensei que fossem, sussurrando meu nome, minha idade, onde eu nasci, quem eu era, mas os sussurros da garota que eu mesma inventei se tornaram gritos dolorosos em minha mente.

Até que finalmente apaguei.

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O teto branco foi um alívio de se ver. Minha visão finalmente recuperou o foco e eu inspirei intensamente, para ter certeza de que eu estava calma. De que eu era eu mesma.

Alguém apertou minha mão. Quando me virei, vi o rosto que há dois anos não era mais que um pensamento. E eu sorri.

"Oi."

Ele também sorriu.

"Oi."

Me sentei na cama, esfregando minhas têmporas e esticando meus braços, automaticamente desvencilhando minhas mãos das dele.

"O que... Aconteceu?"

De repente, ele ficou sério.

"Você sabe."

Pisquei algumas vezes e segurei sua mão.

"Pensei que seriamos sinceros um com o outro."

Senti vontade de chorar. Imediatamente comecei a falar, patética.

"Me desculpe. Eu sinto muito, Dimi."

"Não, Brendy. Eu sinto muito. Eu fiz isso com você. Você está desacordada há quase dois dias. Os médicos não acharam nada e... Estão considerando o fato de ser algo psicológico. E nós dois sabemos que isso não é verdade. Kat me contou tudo."

Estremeci.

"Tudo o que?"

"Dos efeitos do Imaginare sobre você e do que é preciso pra te livrar de tudo isso. E já tomei minha decisão. Depois que sairmos daqui, vamos queimar meu manuscrito."

TA ACABANDO

NÃO ME MATEM

Beijos Carol❤

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