36 - Você Não Existe

Meu coração despedaçou com a porcelana do vaso que Dimitri carregava.

Minha voz começou a falhar no microfone e o silêncio barulhento era o único que falava. Somente os barulhos normais das demais vidas do shopping. Fora daquele grupo. Fora da troca de olhares desesperados entre mim e Dimitri.

Algumas pessoas tentaram ajudá-lo, juntando os cacos e pegando o ursinho. Olhares preocupados. Sussurros perguntando se ele estava bem, que não precisavam ser escutados para serem deduzidos.

Dimitri se afastou e saiu andando para longe da multidão. E, de uma hora para outra, larguei o microfone e desci do palco. Olhares me perfuraram. Olhares de dúvida, inquietação, curiosidade e até mesmo raiva e deboche. Os deixei para trás.

"Brenda, tudo bem?", Petunia perguntou. E assim como Dimitri, não fui capaz de respondê - la e saí atrás dele.

Meu olhar passava por todas as lojas, quiosques e pessoas. Pessoas loiras, morenas, negras, asiáticas, pardas... Nenhuma delas era ele. Até que eu o vi, saindo pelo acesso B, em direção ao estacionamento. Desci as escadas rolantes, tropeçando nos degraus e nas pessoas.

Quando finalmente consegui, estava do lado externo, na calçada do estacionamento aberto. Gritei o chamado.

"DY! ESPERE!"

Ele não parou, então fui e puxei ele pelos braços.

"Espere, por favor."

Ele ainda tremia. O olhar perdido atrás de mim e mordendo o lábio inferior.

"O... O que foi aquilo Brenda?", ele sussurrou, ainda desviando o olhar de mim.

"Dy... Por favor...", comecei a lançar palavras sem concordância, enlaçadas em soluços.

"O que foi aquilo, BRENDA?", ele aumentou o tom.

"Eu... Realmente não...", enxuguei as lágrimas crescentes e engoli em seco. "Não é algo que se dá pra explicar de uma vez..."

"Não é algo que... Você não fez o que eu estou pensando, não é? Eu ouvi os nomes e você dizendo que... Você fez do meu delírio uma história?"

"Não!", repliquei. "Não é nada disso, você está entendendo tudo errado. É algo mais..."

"Então explica!", ele praticamente gritou. Algumas pessoas começaram a olhar.

"Aqui não dá. Aqui não...", esfreguei as têmporas.

"Aqui. Agora. Me explique agora! Eu não estou entendendo, Brenda. Por que disse aquelas coisas? O que é aquele livro? Por favor de uma vez por todas, o que está acontecendo?!"

"Você não existe!", disparei.

Ele semicerrou os olhos em descrença.

"Do... que você tá falando?"

Me aproximei e comecei a falar baixo.

"Tudo o que eu disse no palco é verdade! Você... Eu te inventei há três anos. Você...", meu coração disparou em milhões de batidas por segundo e eu senti uma vontade esmagadora de vomitar. "É um personagem do meu livro. Você, Sondra, seus pais, sua esquadra... Eu os criei..."

"Você está louca!", ele fechou os olhos. "Você é louca! Seja sincera comigo uma vez!"

"PELA PRIMEIRA VEZ ESTOU SENDO SINCERA! É loucura, eu sei, mas você sabe, Dimitri que eu tenho razão. Eu sei que você pode sentir. Eu te conheço, você ainda não os esqueceu."

"ESSE NÃO É O MEU NOME!", ele gritou e colocou as duas mãos sobre a cabeça e lágrimas ameaçavam cair de seus olhos.

"É o seu nome! Eu posso te mostrar! Por favor, vem comigo.", supliquei chorando e segurando em seus braços.

"Me deixe em paz!", ele se desvencilhou e começou a caminhar de costas em direção ao estacionamento. "Não quero mais olhar pra você hoje!"

"Dimitri por favor!"

E correu, em direção a sua moto, ligando a e saindo do meu campo de visão após minutos.  Algumas pessoas se aproximaram de mim, ao me ver chorando amargamente, sentada na calçada. Milhões de explosões irradiaram em meu peito e novamente gritos de dores de Sondra Yelzen confundiram meus sentimentos.

"Moça você está bem?", uma mulher perguntou, afagando minhas costas. "Aquele rapaz te fez alguma coisa? Te machucou?"

Levei meus olhos até ela. Cabelos castanhos, rosto cansado e não muito mais velha que eu. Respondi amargamente:

"Não. Fui eu quem machucou ele."

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Depois de me recompor liguei para Kat. Disse que ela precisava vir até mim rapidamente. Que algo grave havia acontecido e, surpreendentemente ela veio rápido. Assim que a vi, caminhando até minha mesa vazia da praça de alimentação, fui até ela é a abracei da forma mais sincera que eu poderia abraçar, chorando pateticamente com intensos e dolorosos soluços. Durante o tempo que a esperei, milhares de pensamentos me cutucavam sobre o que eu deveria fazer perante tudo aquilo.

Eu pensara que Kat soltaria logo um "eu te avisei" quando me visse. Mas eu realmente fui surpreendida com seu consolo e afeto. Eu nem mesmo precisei falar muito. Ela já havia entendido pelos meus súbitos rios de lágrimas e palavras incoerentes.

Me levou até o carro e seguimos o trajeto em silêncio até a universidade. Depois que chegamos, me sentei no sofá e fiquei um bom tempo olhando para o teto completamente desnorteada. Kat parecia tão perdida quanto, pois não sabia se lavava a pouca louça do café que restou na pia ou se comia o pacote de biscoitos que tirou do armário.

"Kat...", por fim eu disse. "... Estou preocupada com ele. Ele parecia bem perdido ao sair do shopping e... Estou com medo dele fazer besteira."

"Tipo dar uma de Prianka Abdala e se matar?", ela encolheu os ombros, percebendo que a piada foi sem graça. "Desculpa. Olha... Eu posso procurar ele. Até porque ele está com raiva de você e não de mim. Bom... Ainda."

Respirei fundo, estudando as linhas das minhas mãos.

"Eu... Agradeceria muito Kat."

Olhei para ela enquanto assentia de braços cruzados. Depois caminhou até a porta, parando antes de sair.

"Tem algo que quer que eu diga a ele?"

Eu tinha muitas coisas. Muitas coisas mesmo. Mas sabia que se colocasse todas sob a voz de Kat, não surtiriam o mesmo efeito.

"Diga a ele para vir falar comigo. Que não vou pedir para que ele me perdoe, pois eu não mereço. Mas ele precisa entender quem ele é e somente eu poderei explicar."

Kat assentiu e saiu para sua missão.

Tomei um banho, me enfiei em um cobertor e peguei todos os pacotes de chocolate que podia para me afundar de vez na aura negra que estava o meu dia. Lembrando de momentos com ele que jamais poderiam ser revividos, caí em um sono profundo no sofá.

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"Brendy acorda!"

Meus olhos estavam colados por uma camada espessa e nojenta de areia que provavelmente apareceu após o sono e o choro. Os limpei com a manga da minha blusa e finalmente consegui enxergar Kat sentada no braço do sofá com um olhar inexpressivo.

"Ele topou em conversar com você!"

Me coloquei de pé, com o coração tão rápido quanto um carro de fórmula um.

"Sério isso?"

"Mas não se anime tanto.", ela deu tapinhas nas minhas costas. "Ele quer saber mais sobre ele, mas deixou bem claro que depois disso não quer mais saber de nós duas."

Como um balão estourado eu murchei.

"Ok. Quando eu devo encontrar ele?"

"Amanhã, meio-dia, na praça."

"Certo!"

Pelo resto da noite não consegui dormir. Peguei o exemplar de Algumas Cartas que estava dentro da gaveta de minha escrivaninha. Folheei algumas páginas, lendo as palavras de Dimitri. Minhas palavras.

Estava com um tique nervoso no canto superior da minha sobrancelha. O papel que estava em minha mão parecia muito mais cortante do que um papel deveria ser. Meus pais faziam um burburinho na cozinha com risadas e eu pensava em como um simples pedaço de papel poderia matar a felicidade deles.

Como matou a minha.

Página 98

Sangue escorria do centro da minha cabeça e traçava uma rota tortuosa em meu rosto. Eliot estava apoiado em meus ombros e eu não suportava mais o peso de nossos corpos. Avistei uma igreja no final do campado. A luz do crepúsculo brilhava sobre os seus vitrais.

Página 201

E por fim:

"(...)Com meu coração palpitando, e o olhar desacreditado, vi Sondra correndo em minha direção!

'Agora podemos ser felizes, querido'

As marcas da guerra sempre ficariam em mim. Mas vê- la me fez esquecer de tudo!

'Felizes a medida do possível!'


Página 342

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"Bom... Pode começar."

Dimitri e eu estávamos sentados na grama. Cara a cara. Seu maxilar endurecido e o corpo retesado. Mais cedo, eu havia passado na biblioteca e pegado o Imaginare. Antes disso, com o coração mutilado, peguei também minha edição de Algumas Cartas.


Comecei com um sussurro que ganhou segurança conforme eu fui falando.

"Bom... Assim como eu disse no shopping, você existe desde que eu estava no ensino médio. Eu te criei um pouco antes do que aconteceu entre mim e Isaac. Mas te coloquei pra fora da mente bem depois disto. Desde então, escrevo sua história. Fiz pesquisas a respeito da história, fichas com suas características e de outros personagens, reescrevi vários capítulos até ter a história final. A que você conhece tão bem."

"E como eu vim parar aqui?"

Sua voz soava amargurada. As sombras das árvores faziam listras peculiares em seu rosto.

"Por isso."

Deitei o Imaginare em meu colo e o abri, procurando a página em que eu li as palavras mais erradas da minha vida.

"Este livro possui uma magia que eu jamais vi. Aliás, nunca vi magia em nenhuma vez em minha vida antes dele. Na noite anterior a que você acordou em meu dormitório, eu combinei com um de meus professores de nos encontrarmos na biblioteca, para mostrar a ele meu manuscrito. Ele me ajudaria a procurar alguma editora que se interessasse em sua publicação, ou algum autor que me apadrinhasse. Enquanto ele não aparecia, fiquei vagando pelos corredores da biblioteca e encontrei este livro. Foi como se eu... Estivesse totalmente enfeitiçada. Li em voz alta algumas de suas palavras em latim e no dia seguinte você apareceu."

Ele tirou o livro de mim e começou a folhear suas páginas. Seus olhos estreitaram ao tentar compreender as palavras gravadas nele.

"Tentou descobrir algo sobre ele?", me questionou, sem tirar os olhos das páginas.

"Sim... Mas nada muito revelador. Só sei que nossas vidas estão diretamente ligadas por causa da relação autor/personagem e que meu manuscrito te dá vida."

Ele se levantou, com o olhar preso na árvore e levemente se alternando para os livros.

"Tem alguma forma não tem? De eu... Voltar a minha realidade. Ao livro... A Sondra."

Como uvas em uma vinha, meu coração foi pisoteado por pés de gigante. Um nó foi feito em minha traqueia e eu mal conseguia respirar.

Ele ainda a amava.

"Não. Não há forma alguma de você voltar. É como se você fosse uma versão alternativa do Dimitri do livro, feita especialmente para o nosso mundo. Olhe o livro e veja! A história permanece inalterada."

Estendi meu exemplar de Algumas Cartas para ele que o pegou hesitante. Folheou algumas páginas e seu olhar passou de irritadiço para abismado. E de abismado para aterrorizado.

"As... Coisas que... Estão escritas aqui... É como se eu estivesse as contando."

"Porque é você que narra. Acredita agora?"

Ele fechou o livro e pela primeira vez olhou para mim. Seus olhos encontraram os meus de forma tão intensa que corei até os limites que uma pessoa poderia corar.

"Sabe Brenda, você realmente confundiu minha cabeça.  Primeiro me disse que Sondra tinha morrido e que eu viajei no tempo. Depois me disse que eu estava louco após uma guerra e que ela, meus pais, minha esquadra e toda a minha vida foi uma história inventada. Agora me diz que você me inventou e tudo é verdade. É de fazer qualquer um enlouquecer. Mentiras e mentiras. Realmente não sei qual delas foi a pior."

"Mas agora estou dizendo a verdade!", rebati.

"Eu sei disso. Mas não ia me contar. Se eu não tivesse tentado fazer aquela droga de surpresa pra você, te procurado na editora e ido até a maldita estreia do seu livro, iria ser feito de idiota até quando, Brenda?"

Ele estava vermelho. Mal se deu conta de que estava gritando outra vez.

Eu não tinha como me defender.

"Eu... Não sei."

Ele tirou Algumas Cartas e o Imaginare do chão e os agarrou com  braço.

"Já sei o suficiente sobre mim. Uma das coisas que eu tenho que te agradecer é por você ter me incentivado a ser independente. Se não fosse por isso eu teria que continuar aguentando sua hipocrisia e fazer centenas de questões existenciais e técnicas sobre mim. Mas agora eu posso ter o orgulho de tentar me descobrir por conta própria. "

Segurei seu braço, sentindo meu lábio inferior e mãos tremendo.

"Dimitri, espere..."

"Não Brenda! Não sou mais seu brinquedinho. Não sou mais um boneco de cera que você molda da maneira que quer."

Ele olhou para a própria mão e depois para mim. A aliança de compromisso. Seu brilho prateado era mais intenso sob o Sol do que o normal. Ainda equilibrando os livros, com os outros dedos da mão oposta ele a arrancou e colocou no bolso da frente de minha calça.

"Acabamos aqui."

Olar

O que acharam da reação do Dimitri? Muito drástica? Aceitável?

Bom, agora restam mais quatro capítulos e o epílogo. Espero que não me matem até :)

Beijos Carol

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