10 - Vita Quae Non Est

Acordei assustada e com o rosto úmido pelas lágrimas fugitivas do pesadelo que eu tive. Por que Dimitri estava nele? Por que eu me sentia tão apaixonada e desesperada ao mesmo tempo e por que ele mandou queimar aquelas folhas? Nada tirava da minha cabeça que todo o sonho podia ser coisa daquele livro sinistro. Ele tinha magia. Não sabia como, mas eu teria que descobrir de onde tal magia vinha. E seria naquela noite.

Foi o que eu pensei.

Após meu pesadelo, voltei a adormecer, dessa vez sem sonho algum. Acordei com o despertador absurdamente alto de Kat, tocando Worth it.

"Desliga essa porcaria, Katrinne!", esbravejei.

Ela resmungou alguma coisa incoerente e o desligou.

"Você que pediu pra colocar pra despertar às seis da manhã."

"Com uma música de despertador, né?", me apertei no travesseiro.

"Strauss? Acorda!", Kat jogou seu travesseiro com força na cabeça de Dimitri.

"Aí mãe, desculpa, eu não vi que a Thulipa e seu potrinho defecaram em suas rosas!”

Dimitri se levantou, com as pálpebras coladas, mas, de certa forma, assustado. Depois de abri-las, com muita dificuldade, fechou a cara.

"Ah... São só vocês."

"Vamos levantar, vagabundo."

"Kat... Sempre tão delicada... Como coice da Thulipa.”, Ele disse, com ironia, e começou a recolher as cobertas que davam forma a sua cama improvisada no chão.

Thulipa era sua égua preferida na fazenda de seus pais. A mãe dele já quase a leiloou por quinze vezes, mas Dimitri sempre dava um jeito de ninguém a comprar. Eu adorava aquela égua e suas travessuras. Ela é como minha vaquinha, a Betsy. Como a saudade me matava.

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Após trinta minutos, estávamos na Pizzaria do Sr. Lion. Dimitri arrumou suas coisas na dispensa e recebeu seu uniforme. Um boné cinza com um leão animado devorando uma pizza, camiseta polo tom mostarda e com o mesmo leão, uma calça cinza e sapatos de plástico branco.

"Ual... Você vai arrasar com isso!", brinquei com sua estampa de leão no peito dobrado em suas mãos.

"Pelo menos é pizza, não a ração de guisado de peixe e abóbora que eu comia nas trincheiras."

"É... Pensando nesse ponto."

Depois de alguns instantes, o Sr. Lion saiu de trás da bancada, com outra muda de roupas.

"Aqui está seu uniforme, menina Mitchoff."

Peguei meu uniforme, mais desanimada do que eu gostaria.

"Aí que fofo. Vão ficar tão ridículos juntos, assim vestidos iguaizinhos.", Kat apareceu na porta da cozinha, com um pedaço de pizza roubado.

"Mal vejo a hora de você terminar o seu livro, para cumprir com o combinado, Katrinne."

Ela deu de ombros e mordeu a pizza.

"Vai saber... Pode demorar anos."

Antes de ir para a aula, chamei Sr. Lion em particular. Kat já estava no carro e Dimitri, se instalando.

"Eu queria perguntar se eu posso chegar hoje depois das 18:30. Tenho que encontrar um professor na Biblioteca da Universidade."

Sr. Lion me respondeu rudemente, com a voz carregada de sotaque italiano.

"Mas quê... Já no primeiro dia?"

"Sr. Lion, lembre- se que eu só estou fazendo isso para ajudar o senhor e meu amigo Dylan. E não posso deixar de lado minhas responsabilidades na Universidade por um emprego que, na verdade, eu não preciso."

Respondi num tom de reprovação, mas calmo. Sr. Lion ficou vermelho e começou a gaguejar.

"Ah... Mas... Ah tudo bem, menina. Boa sorte. Mas não se esqueça de nós, ein?"

Ele deu uns tapinhas em meu ombro e soltou uma gargalhada italiana.

Fui até Dimitri que, por incrível que pareça, já estava com uma roupa velha, baldes e esfregões na mão.

"Hey... Tenho planos pra nós depois do expediente.", falei.

"Ah é... Que tipo de planos?"

Ele disse, torcendo um pano de chão no balde, com um sorriso um tanto malicioso.

"Planos de estudo, engraçadinho! Não quero ver você limpando chão de pizzaria pra sempre. Vou montar um cronograma pra gente, um bem intensivo porque seu teste é daqui a um mês!"

"Eu sei! Eu adoro ver você nervosa é engraçado demais.", disse, entre risos e torcidas do pano de chão.

Revirei os olhos, com os braços cruzados, assim como uma mãe repreendendo seu filho, não verbalmente.

"Mas adorei a ideia. Preciso mesmo de ajuda. Perdi, pelo menos, 70 anos de matéria nova."

"Não se preocupe. Vou tirar seu sangue de tanto estudar."

Ele levantou seus braços para cima, rendido.

"Desisto."

"Última coisa. Vê se torce esse pano agachado. Se você torce em pé respinga água suja pra todo o lado."

"Mulheres..."

"Homens..."

Ficamos nos olhando por um instante, até que ele encostou o esfregão em uma das mesas e me surpreendeu, puxando-me em um abraço. Senti meu coração acelerar à mil por hora, com o toque de suas mãos surpreendentemente quentes.

"Por que esse abraço?"

"Por você estar me ajudando. Um completo estranho, uma anomalia temporal."

Ele se afastou e segurou meus ombros.

"Não foi nada, Di. Sério."

Ele perdeu o seu olhar no chão, apesar de não me soltar incialmente. Depois, se recostou na bancada, me soltando.

"Sinto falta dela."

"Sondra?"

Silêncio mortal, antes da resposta já previsível.

"Sim."

Segurei sua mão.

"Escute... Uma das coisas em nosso cronograma vai ser descobrir mais sobre ela. Eu sei que não vai trazer ela de volta, mas vai te tirar desde mar de incertezas que você se encontra."

Um leve sorriso nasceu em seu rosto e percebi meu êxito.

"A propósito, vou pesquisar sobre isso na biblioteca antes de vir pra cá. Tudo o que eu encontrar, vou te falar."

"Obrigado. Seria ótimo."

"Bom... Vou lá. Tenho uma aula chatíssima que infelizmente não posso faltar. Você vai saber como é em um mês.", soltei suas mãos.

"Espero que sim. Eu preciso de qualquer coisa para me fazer esquecer meu passado. Porque lidar com tudo isso em mente aberta não vem sido fácil."

"Até que você está indo bem. Entendeu tudo em apenas um dia."

"Acho que já me acostumei a ver todo o meu mundo e realidade se desfazendo."

Aquilo trouxe toda a culpa reprimida em meu peito de volta. Assim que ele soubesse a verdade, seu mundo iria se desfazer outra vez. Mentir foi um erro e contar a verdade agora seria algo doloroso demais para nós dois. Eu iria contar a verdade. Mas só depois de descobrir qual era a daquele livro.

"Você vai conseguir vencer essa Di. Tenho fé nisso."

"Tenho fé em mim também. Como disseram na igreja no domingo: o próprio Deus teve experiências traumáticas e as superou. E uma vez Sondra me disse algo que marcarei pelo resto da minha vida: o que hoje pode ser uma tragédia, amanhã ela pode ser reconhecida como um caminho que Deus construiu para atingirmos algo grande e espetacular."

Aquilo trouxe a mim uma tempestade de sentimentos. Aquele era uma frase que minha avó me dissera a muito tempo antes de falecer. Com ela superei diversos dramas da minha vida. Apliquei isso em meu livro, sem sequer pensar muito. Foi algo natural.

"Sondra é mesmo uma garota espetacular."

Ele assentiu.

"Sim, ela era."

Nos encaramos por mais alguns instantes e depois me despedi.

"Bom, vou indo. Tchau, Di. Até mais tarde!"

"Até mais, Brendy. Boa aula!"

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Durante toda a manhã, meus pensamentos ficaram perdidos e misturados. O sonho, a minha conversa com Dimitri e tantas outras coisas... aos poucos vinha reconhecendo ele como o ser humano que ele é e com certeza ele não merecia a mentira. Também não merecia viver em uma realidade em que seu passado jamais aconteceu. Tudo o que ele era, tudo o que ele escutou e viveu é parte de mim e, naquele dia inundado de tais reflexões e confusões, passei a notar isso. Precisava entender isso melhor para tomar uma decisão melhor.

Quando o relógio apontou às 17:00, fui imediatamente tomar um banho. Coloquei um jeans escuro, uma blusa de lã cor vinho – simples como deveria ser - e um par de botas de cano curto. Dentro de uma pasta catálogo estavam meus manuscritos. Eu escondi muito bem atrás da estante para que Dimitri não achasse, no dia anterior. Assim, parti para a biblioteca.

Cheguei vinte minutos antes do combinado com o professor Giani. Parecia que tudo estava acontecendo de novo. Caminhei até achar o corredor escuro e diferente. Comecei a olhar livro por livro e percebi que todos eles eram estranhamente diferentes do que eu jamais vira. Até que encontrei o estranho livro, com as mesmas criaturas estampadas na capa, o mesmo cheiro de bolor, e a mesma aspereza que eu senti quando toquei suas páginas. Quando abri, parou exatamente na mesma página onde tinha parado da outra vez.

Vita quae non est.

Não me atrevi a ler em voz alta como li da outra vez. Senti um frio na barriga implacável, então resolvi sair daquele corredor macabro e levar o livro até o centro da enorme biblioteca.

Quando o joguei em cima da mesa, ele já não parecia mais o livro misterioso e assustador que eu vi antes. Parecia mais um livro comum. Quando folheei suas páginas, vi coisas escritas em diversas línguas e diversos desenhos. Tinham histórias medievais, mágicas e até mesmo futurísticas. Aquilo era espetacular. Era como se todas as histórias do mundo de todos os gêneros estivessem comprimidas lá. E o livro não tinha mais que seiscentas páginas.

No final dele tinha uma ficha de Biblioteca com nomes de leitores anteriores.

Lila Storm.

Lynn Kount.

Antonie Keyne.

Mandy Stamos.

E Kevin Pyro.

Dei um risinho irônico e surpreso. Parecia que Kevin dava mesmo um jeito de me atrair até ele. Mesmo que não seja intencionalmente.

"Srt.ª Mitchoff?"

Escutei a voz do professor Giane e imediatamente coloquei o livro embaixo de minha blusa, que também estava sobre a mesa.

"Professor!", o cumprimentei com um aperto de mãos.

"Bom, parece que agora teremos o tempo tão esperado que queríamos para discutir sobre seu livro, não?"

"Creio que sim, professor e agradeço muito por me dar esse tempo."

"Vamos nos sentar."

Assim que nos sentamos, peguei os manuscritos em minha pasta.

"Então me fale sobre seu livro. Você falou muito pouco dele nos e-mails e na sala."

Comecei a falar, sentindo um sorriso nascer em meu rosto e um frio na barriga. Eu realmente amava minha história.

"É uma história que se passa na época da Segunda Grande Guerra. Dimitri Strauss, meu protagonista, era um garoto inocente do campo que tinha uma jovem namorada judia chamada Sondra Yelzen. Ele foi convocado para a guerra, mas jamais desistiu dela. Conversavam por cartas. Até que ela foi levada para um campo de concentração nazista. Dimitri descobriu e desertou da missão para ir atrás dela."

"Hum... Cartas de guerra. É um tema que já foi explorado antes, mas muito interessante. Fez pesquisas históricas, Brenda?"

"Ah sim. Algumas."

"E seu protagonista... Um protagonista bom é o que cativa os leitores além, claro, dos fatos."

Suspirei e senti meu coração acelerar quando comecei a falar de Dimitri. Meu Dimitri.

"Dimitri é um garoto espetacular. Apesar de ser meio imaturo no início de tudo e até, de certa forma, covarde, a guerra trouxe uma coragem que, ele mesmo, jamais acreditou experimentar. Sem falar que ele é extremamente apaixonado. Faria tudo por seus amigos, amada e família."

"Você fala com uma paixão sobre seu personagem. Seus olhos até brilham! Típica autora."

Dei uma risada sem graça, ruborizando muito mais do que eu gostaria.

"Ele é minha obra prima. Parte de mim."

"Me senti assim com os personagens do meu primeiro livro. É algo difícil de descrever. Mas a sensação é maravilhosa. Bom, vou ler Algumas Cartas e se eu realmente gostar, apresentarei aos meus contatos de três editoras."

"Faria isso, professor?", me animei.

"Claro. Você é uma aluna incrível. Terá todo meu apoio."

"Muito obrigada!"

Ele me deu a mão para cumprimentar, mas a ignorei e o abracei.

Ele pegou meus manuscritos e se despediu. Após ele sair, peguei o livro esquisito e me direcionei até o balcão da bibliotecária. O Sr.Pascolle, bibliotecário oficial, estava de férias. Quem estava no lugar era a Srª Lucie, uma mulher de meia idade, magra, de cabelos ruivos, curtos e crespos e óculos “fundo de garrafa” que a deixava com os olhos enormes.

"Queria levar este.", apoiei o livro na bancada.

Ela pesquisou algumas coisas em seu computador e depois encarou a capa.

"Mas esse livro não tem nome.", ela questionou.

"Que estranho... Tem cinco nomes aí no cartão de empréstimo!"

Ela passou o código de barras de novo no leitor de seu computador.

"Nada. Quem deve saber que livro é esse é o Pascolle."

"Tem como ligar pra ele?"

"Claro que não. Ele está num cruzeiro.", ela ralhou.

"Ah... Desculpa."

Disse, já me afastando da bancada.

"Mas pode levar. Eu deixo anotado. Ele volta em duas semanas. Você terá tempo de sobra para ler."

"Ok! Obrigada."

Sai de lá, subindo escadas e correndo em corredores, direto ao dormitório. Kat estava lá, vendo TV. Sem esperar mais, lhe mostrei o livro.

“Foi este, Kat! Foi este o livro que trouxe o Dimitri! ”

"Você tá louca, Brenda? Trazer um negócio desse pra cá!", pulou do sofá em um salto.

"Tive que fazer isto, Kat. Preciso descobrir. Não posso deixar de lado. Não descobrir a verdade vai me sufocar com o tempo. E achei nomes. Já tenho pistas."

Kat pegou o livro e olhou a última página.

"Kevin Pyro?"

"Eu sei... Ele gosta de ler. Acredita nisso?"

"Não devolva esse livro. Essa história vai ser interessante.", ela mudou, repentinamente.

"Idiota. Ai meu Deus, Kat. A Pizzaria. Estou atrasada."

"Quer mesmo ir pra lá?"

"Claro. Preciso ver se Dimitri não explodiu a cozinha ainda. Vou vestir meu uniforme lindo."

"Meus pêsames, amiga."

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Quando chegamos já eram quase 20:20. A pizzaria estava com pouco movimento e dois entregadores estavam voltando de entregas no momento. Pelo visto, os dois eram os únicos que ficaram além de Brizza.

"Dylan?"

Entrei, já o chamando e até bem animada para trabalhar naquele final de dia. Escutei umas risadas na cozinha e fui até lá, deixando Kat para trás. Quando cheguei, vi ele e Brizza, bem próximos. Ele enxugava o rosto dela que estava sujo de mostarda. E se encaravam de uma forma que me deu o maior mal-estar de todos os tempos.

"Oi?"

Quando me viram se afastaram.

"Oi Brendy."

A animação que estava por ver ele se esvaiu no mesmo instante.

"Pelo visto já fez amizade."

Capítulo Revisado e Corrigido📝📌

Beijos Carol🌚❤

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