17 - Wings (Memórias de Ellie)

"No momento em que estamos perdidos e encontrados
Eu só quero estar ao seu lado
Se estas asas pudessem voar"

— Wings, Birdy

Ellie chegou acompanhada de sua mãe para mais uma sessão de quimioterapia. Após inúmeras cirurgias, o médico informou que as células cancerígenas começaram a regredir, o que trazia uma pequena chama de esperança para a jovem, que vislumbrava um futuro livre da doença.

Primeiramente, surgiu a batalha para encontrar um doador de células-tronco compatível com Ellie. Nenhum membro da família poderia ser doador, mas após algum tempo, encontraram um doador e, desde então, Ellie vinha gradualmente se recuperando.

Com um lenço envolvendo sua cabeça, ela fitava entediada a janela à sua frente. Desde o diagnóstico, foi obrigada a abrir mão do ballet. Continuava a treinar, porém, agora sob a tutela de uma professora particular em seu próprio lar. Essa professora compreendia as limitações da jovem e não a pressionava, respeitando seu tempo e dores. Ellie até gostava de poder continuar dançando, sua mãe chorava todas as noites pela doença da filha e, quando a via dançando, seu olhar se enchia de esperança.

Também havia o fato de que a garota não conseguia imaginar sua vida sem a dança, mesmo que inicialmente não fosse seu sonho. De alguma maneira, ela se apegara àquele mundo de movimentos gracioso e disciplina constante. Os treinos eram horríveis, a pressão absurda, mas quando ela podia dançar, expressar tudo que sentia através dos movimentos delicados do ballet, ela se sentia feliz, poder mostrar quem ela era através da dança a deixava feliz.

Lucy e Rob estiveram ao lado de Ellie, oferecendo-lhe todo o apoio necessário, especialmente quando seus longos cabelos castanhos começaram a cair. Lucy cortou o próprio cabelo para se igualar à amiga, enquanto Rob, sempre atencioso, fazia Ellie rir e estava sempre com ela. Embora o câncer fosse uma doença triste, tinha os melhores amigos, que tornavam a luta menos árdua.

No hospital do câncer, ela também criou amizades, mas, ao longo desses longos dois anos, viu alguns deles partir. Ainda se recordava do primeiro dia em que chegou lá, quando uma garota extremamente bonita puxou assunto. As duas conversaram bastante, e Ellie tentou firmar uma amizade, mas a garota disse indiferente: "Não podemos criar laços aqui. Hoje estou te vendo, mas amanhã você pode estar morta. Vamos nos poupar desse sofrimento."

Ellie considerou as palavras da garota bastante rudes, porém, dias depois, ela veio a falecer, e Ellie compreendeu o que ela quis dizer. Mesmo assim, fazia questão de sempre animar aqueles ao seu redor, acreditando que o ambiente já era triste o suficiente, logo todos precisavam sorrir enquanto enfrentavam aquela provação.

De certa forma, a doença permitiu que Ellie visse a vida sob uma nova perspectiva. Ela passou a valorizar cada cumprimento que recebia, a apreciar os raios de sol que iluminavam seu rosto nas manhãs, a sentir gratidão pela chuva fria que caía de repente quando ela esquecia o guarda-chuva, e até mesmo pelo pão amanhecido que sobrava do dia anterior, já que sua mãe não conseguiu comprá-lo sempre fresquinho. A vida é algo extraordinariamente precioso, e muitas vezes ela não se deu conta do milagre que é estar vivo.

A mãe de Ellie dedicava-se de forma incansável a custear o tratamento da filha. Ellie não poderia deixar de reconhecer o valor disso. Além disso, sua tia Penny também contribuía com doações generosas  para ajudar com os custos. Embora Ellie não tivesse uma relação próxima com a família paterna, eles nutriam um grande carinho pela menina e não desejavam que o pior acontecesse.

Foi nessa época que Ellie começou a enxergar um brilho especial nas pessoas ao seu redor. Ela conseguia captar as emoções dos que a rodeavam, o que, de certa forma, a preenchia de felicidade, pois sentia-se conectada a essas pessoas que traziam consigo novas histórias e enchiam o coração da garota de amplas perspectivas sobre o mundo.

Enquanto estava assentada naquela poltrona, observando seu braço ser perfurado novamente para receber os medicamentos, sentiu-se grata por essa oportunidade, uma vez que muitas pessoas não sobreviviam por não conseguir arcar com um tratamento adequado. Ela ainda contava com pessoas que intercediam por sua cura e sempre seria grata a elas, se sentia uma sortuda.

O ambiente foi preenchido por Agatha, que chegou animada, cumprimentando a equipe e os pacientes e sentando-se ao lado da amiga. Agatha enfrentava um câncer de pulmão e fazia as sessões de quimioterapia junto a Ellie há algum tempo.

— Olá, bailarina. — Agatha disse, com um enorme sorriso no rosto.

— Olá, musicista.

A história de Agatha assemelhava-se muito à de Ellie. Desde muito pequena, a jovem se dedicava ao violino e sofria com a pressão dos pais para ingressar em uma orquestra renomada. E, assim como Ellie, quando a família descobriu o câncer, todas as prioridades mudaram.

Ellie adorava assistir à amiga tocando o violino. Era como se Agatha conseguisse transmitir todas as suas angústias por meio da música. No hospital, Agatha sempre se apresentava para as outras crianças, proporcionando alegria aos seus dias. Sua música favorita para esses momentos era a canção do arco-íris. Ela costumava dizer às crianças que, além do arco-íris, existia um mundo reservado somente para elas, e por isso precisavam sempre sorrir e ser felizes, para que um dia pudessem alcançá-lo. Ellie não acreditava que haveria algo para ela no final do arco-íris. Mesmo se conseguisse vencer o câncer, ainda enfrentaria toda a pressão imposta pelas pessoas ao seu redor. Era algo sufocante demais.

— Olá, Agatha. Onde está sua mãe? — Liya perguntou, sorrindo para a jovem.

— Acredito que ela esteja na recepção. — A jovem respondeu, já estendendo a manga da blusa, pois logo a enfermeira viria para administrar os medicamentos.

— Vou lá cumprimentá-la.

As duas iniciaram uma conversa animada sobre a série Doctor Who. Foi Agatha quem apresentou a Ellie e, a partir daí, ambas se tornaram aficionadas. Agatha era mais velha, estava em processo de recuperação do câncer, chegando ao ponto em que já conseguia respirar sem a ajuda de oxigênio. Essa conquista representava uma vitória significativa para ela. Os médicos estavam otimistas e acreditavam que Agatha estaria curada muito em breve, algo que Ellie esperava com ansiedade, pois desejava ver sua amiga saudável e bem.

— Ellie, quando eu me recuperar, pretendo abandonar o violino. — Confessou a jovem para sua amiga, deixando-a surpresa com a revelação.

— Mas... O que você fará então? — Ellie questionou, sem entender.

— Percebi que há outras coisas na vida além de perseguir esse objetivo.

Agatha, estava no auge da adolescência sendo quatro anos mais velha que Ellie. Ansiava por experimentar coisas que ainda não passavam pela mente da amiga mais jovem. Embora entendesse esse sentimento, Ellie não conseguia aceitar que Agatha abandonaria tudo tão facilmente.

— Não acredito que deixarei o ballet algum dia. Quando me recuperar, quero tentar a Ópera de Paris. Mesmo que não tenha tido a oportunidade de estudar na escola, eles realizam audições para ingressar na companhia. Vou me dedicar a isso. — Estava determinada afinal, ela não perdeu tanto tempo de sua infância se dedicando a dança para não colocar tudo que aprendeu em prática.

— Tenho certeza de que você conseguirá. — Agatha sorriu, enquanto a enfermeira se aproximava delas. — Agora é hora de mais uma agulha! — Ela disse rindo, observando o braço cheio de marcas das agulhas.

No mesmo dia em que Ellie recebeu a notícia de sua cura do câncer, o destino ironicamente lhe trouxe outra notícia: Agatha havia piorado e agora se encontrava na CTI. O câncer, traiçoeiro como é, às vezes engana, fazendo as pessoas acreditarem que estão bem quando, quando na verdade não estão. Já se passaram quatorze dias desde que Agatha foi internada na CTI, porém seu corpo deixou de reagir aos medicamentos. Os médicos alertaram a família para se preparar, enquanto Ellie, sozinha na igreja, implorava a Deus pela vida de sua amiga.

Se Deus foi tão misericordioso a ponto de curar Ellie, por que não poderia fazer o mesmo por Agatha? Ela havia acabado de completar dezoito anos e já sonhava com a faculdade. Agatha não precisava mais do oxigênio, seu corpo respondia bem aos tratamentos, e Ellie não compreendia como, subitamente, após todo esse progresso, sua amiga acabara na CTI. Agatha lutava mais do que Ellie pela vida, então por que não poderia ser curada também?

Lágrimas escorriam dos olhos de Ellie, enquanto ela segurava um terço em suas mãos. Já não se tratava mais de rezar, mas de implorar a Deus que curasse sua amiga. Sentindo uma mão acariciar sua cabeça, ela se virou, sem se preocupar em enxugar as lágrimas.

— Irmã Olga? — Ela olhou para a freira que conhecia desde o seu nascimento, pois sua mãe frequentava aquela paróquia.

— O que aconteceu, Ellie? Ouvi dizer que Deus intercedeu e a curou do câncer. Por que essas lágrimas? — Irmã Olga perguntou, enquanto a menina enxugava o rosto e observava a freira, que havia sido sua catequista e com quem tinha uma conexão especial.

— Minha amiga vai morrer e isso não é justo! Deus tem que curar ela também. — Mal disse e voltou a chorar, sentindo dificuldades de manter o ar.

Irmã Olga fez um gesto para que Ellie se afastasse no banco, permitindo que ela se sentasse ao seu lado. A freira segurou as mãos da garota e acariciou seu rosto, tentando transmitir conforto.

— Minha querida, Deus sabe o que faz. Tudo tem um propósito — disse a freira com uma voz gentil. Ela sabia que aceitar a morte não era tarefa fácil, então sempre tentava ser amigável nessas situações.

— Mas o propósito dela não pode ser morrer.

— Ellie, todo ser humano que caminha nesta terra tem um propósito. Não pense que ela está morrendo; pense que ela cumpriu seu papel físico e agora Deus a levará para junto Dele. Todos nós partiremos um dia. A morte é triste, mas imagine o quanto está sendo doloroso para ela e para a família.

— Ela está lutando pela vida no CTI. Não é justo... — A garota não conseguia compreender. Agatha tinha toda uma vida pela frente, e tudo o que Ellie queria era ver sua amiga bem.

— Nós não compreendemos os planos de Deus, mas eles são perfeitos. Ellie, você não deve chorar pela morte dela, mas sim se orgulhar da vida que ela teve e dos bons momentos que compartilharam. Não encare a morte como um fim, mas como o encerramento de uma jornada na terra e o início de outra no céu.

Ellie refletiu sobre aquilo. No final das contas sabia que a amiga estava sofrendo. Então mudou a sua oração. Pediu a Deus que a levasse sem sofrimento ou dor alguma e que ela fosse em paz.

No funeral de Agatha, Ellie indagou-se se aquilo também aconteceria com ela. Se o câncer apenas a iludiria com falsas melhoras para, de repente, levá-la à morte. A perda de Agatha fez com que a garota compreendesse a necessidade de seguir sua verdadeira paixão, mas o que seria essa paixão? O que restava a ela se não o ballet?

Após o término da preparação do jantar, a mãe de Ellie a chamou para comer. Ellie dirigiu-se à cozinha, onde o aroma delicioso do prato preparado com cuidado pela mãe, impregnava o ar. Ellie já havia decidido que naquela noite contaria à mãe sua decisão de abandonar o ballet e buscar uma nova paixão. Estava próxima de completar quatorze anos, ainda havia bastante tempo para refletir sobre uma nova carreira.

— Ellie querida, preciso conversar com você. — A mãe a olhou ansiosa enquanto saboreava a comida.

— Também tenho algo para dizer, mãe.

— Eu primeiro. — A mulher limpou os lábios com um guardanapo e encarou a filha. — Ellie, Deus foi muito misericordioso e a curou. Já se passou algum tempo desde então, e estive conversando com sua professora de balé. Decidimos inscrevê-la na competição mundial de dança. É uma oportunidade única, as vencedoras recebem bolsas de estudo para intensivos nas grandes companhias. Será maravilhoso para você.

— Mãe... — Ellie encarou a mulher e disse de uma vez, para não se arrepender. — Eu quero desistir do ballet!

— Como assim? — Lyia olhou incrédula para a filha, como se esta tivesse cometido uma grande ofensa. — Você enlouqueceu? Depois de tudo o que fiz para que você fosse perfeita, agora quer desistir?

— Mãe...

— De maneira alguma! Eu investi muito em você para que venha com isso agora! É o seu sonho, como pode querer jogá-lo fora? — A voz de Lyia soava ofendida, mas Ellie não recuaria.

— Não mãe, é o seu sonho. Foi você quem idealizou tudo isso para mim. Você já se perguntou o que eu realmente quero fazer?

— Então me diga, o que você quer fazer?

A pergunta pegou Ellie de surpresa. Ela realmente não sabia o que desejava para sua vida, até então apenas seguia o que lhe havia sido traçado. Ao perceber que a filha ficou sem resposta, Lyia prosseguiu:

— Era o que eu imaginava. Você está assim por causa da perda de sua amiga. Mas posso garantir que isso não vai acontecer com você. — Lyia aproximou-se da filha e acariciou seu cabelo em crescimento. — Você nasceu para ser uma prima-baillerina, e não permitirei que jogue fora tantos anos de dedicação! Ouça sua mãe, eu sei o que é melhor para você.

Ellie suspirou, derrotada. Não havia saída. Ela já tinha perdido a discussão antes mesmo de começar. Então, naquela noite, foi para o telhado sozinha e desejou ter asas... Desejou poder voar para longe, para um lugar secreto onde pudesse ser ela mesma e ser livre. Foi ali que ela compreendeu que seu verdadeiro sonho era ser livre.

— Se minhas asas pudessem voar, eu iria até você e juntas criaríamos nosso paraíso. — Ela disse com lágrimas nos olhos, pensando na amiga que já não podia ouvi-la.

Prometeu a si mesma, naquele momento, que, mesmo que demorasse, encontraria Agatha novamente. Seu corpo poderia ter falhado, mas sua luz jamais se apagaria do mundo e permaneceria no coração da jovem que ansiava desesperadamente pelo momento em que sua vida faria sentido.

Não esqueça da Estrelinha

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