Capítulo 02

A casa de Caius erguia-se robusta e imponente no coração da aldeia, rodeada por um jardim cuidadosamente cultivado. Suas paredes de pedra cinza escura, sustentavam um telhado íngreme de telhas de barro avermelhadas, que se destacavam contra o céu azul profundo. As janelas, pequenas e estrategicamente posicionadas, permitiam apenas a entrada de luz suficiente para iluminar o interior durante o dia.

Em frente a casa, uma pequena varanda de madeira envelhecida se estendia, decorada com vasos de cerâmica contendo ervas aromáticas e flores coloridas que emprestavam um suave perfume ao ar, um toque especial de Selene.

À medida que se aproximavam da casa, Morrigan aguçou seus sentidos, tentando captar algum fragmento da conversa que ocorria dentro, recebendo um nada como resposta. Ela sabia que as paredes poderiam estar protegidas por um escudo de silêncio para evitar espionagem, mas não custava tentar.

Elisa bateu na porta de carvalho maciço, cuja superfície áspera e escura parecia absorver a luz ao redor. Após um momento, a porta se entreabriu, revelando grandes olhos cinzentos que lembravam uma tempestade iminente. Em seguida, se abriu por completo, revelando a figura esbelta da bruxa, que sorriu calorosamente para o trio.

— Mamãe! — Elisa exclamou, correndo para abraçá-la com força. — Um homem está à beira da aldeia, gravemente ferido.

— Vocês…

— Não ultrapassamos a barreira nem interagimos com ele, Hecátia — Morrigan apressou-se em esclarecer.

— Muito bem. Vamos mandar alguém verificar a área — respondeu a vidente, estendendo os braços para abraçar a garota, sussurrando em seu ouvido: — Você está bem?

— Sim, tia — Morrigan sussurrou de volta, embora soubesse que seria inútil tentar esconder a verdade.

Hecátia era uma vidente talentosa, sempre parecia saber o que estava acontecendo com todos ao seu redor. Morrigan sentiu, com pesar, que ela estava ciente do dilema que enfrentara ao encontrar o homem ferido.

O pensamento a fez encolher-se internamente de vergonha, entristecida pelo medo de ter decepcionado a mulher que admirava profundamente. Hecátia sempre fora uma figura presente em sua vida, inspirando grande admiração. A híbrida a conhecia desde a infância; os pais da bruxa adotaram Caius quando ele ainda era um bebê.

Muitos anos atrás, durante um ataque dos Ignis, quando seu avô salvou a única sobrevivente de uma vila, Caius chegara à aldeia com um pequeno pacote nos braços. Morrigan não se lembrava muito bem, tendo apenas dois anos na época, mas ouvira a história inúmeras vezes. Hecátia se apaixonara instantaneamente pela pequena Elisa e a adotara como sua própria filha.

Essa família fora um presente dos Deuses para Morrigan, e ela sentia uma gratidão eterna por fazer parte dela.

— Podemos entrar? — Caleb se manifestou enfim, sua voz carregada de expectativa.

Hecátia lançou um olhar de desculpas antes de responder:

— Estamos em reunião.

O lobo franziu o cenho, mas antes que pudesse insistir, Morrigan, incapaz de conter sua frustração, deu um passo à frente.

— Acho que eu deveria participar. É engraçado como esperam que eu salve o mundo sem saber de absolutamente nada — a híbrida bradou, seu tom revelando a mistura de indignação e desespero que sentia.

— Ainda nã… — Hecátia começou, mas Morrigan a interrompeu bruscamente.

— Não é momento — completou, recitando a frase que ouvira inúmeras vezes. — Sim, bem, já estou farta de ouvir isso. Querem que eu salve algo? Ao menos tenham a decência de me explicar o quê.

Elisa arregalou os olhos, alarmada pela explosão da amiga, enquanto os outros observavam a cena com cautela, sentindo a tensão no ar.

— Esqueça, já avisei o que precisava, estou indo. — Morrigan se virou para sair, sua mente um turbilhão de pensamentos e emoções conflitantes.

O som das folhas farfalhando sob seus pés era o único ruído que se ouvia enquanto ela se afastava. A vidente a alcançou no meio do caminho, enquanto Caleb e Elisa esperavam na porta, sem saber ao certo o que fazer. Ela segurou seus braços com firmeza e forçando-a a olhar em seus olhos. 

Os olhos de Hecátia, usualmente serenos, agora giravam com uma fumaça sobrenatural, um indício de uma visão iminente.

— Você saberá no momento certo — disse Hecátia, a voz baixa e carregada de intensidade. — Precisamos que esteja pronta. Não se preocupe, quando a hora chegar, contaremos tudo que você precisa saber.

A brisa suave do fim da tarde trazia consigo o perfume das ervas e flores do jardim, criando um contraste agudo com o momento amargo. Os dedos da bruxa traçaram uma carícia reconfortante no braço de Morrigan antes de continuar:

— Você tem a chance de viver como quer, de ser apenas uma garota. Aproveite enquanto ainda pode, é um presente, não uma afronta.

Morrigan sentiu a força das palavras, mas a irritação e o medo ainda eram palpáveis em sua mente.

— Vocês me dizem que nasci para salvar o reino, mas ninguém conta do que. Tenho medo, não sei o que me espera, não estou preparada.

Hecátia soltou um suspiro profundo, seus olhos suavizando um pouco.

— Morrigan, você é quem precisa ser, nada, além disso. Você foi preparada, treinada em magia e combate. Eu também não sei o que acontecerá, ou quando, mas sei que viver presa nesse momento não é bom para ninguém. Vá, curta sua liberdade e deixe os problemas para nós, enquanto ainda tem essa chance.

Com um último olhar para o lugar que tanto significava para ela, Morrigan deu um passo atrás e se afastou, sentindo o peso das expectativas e do desconhecido.

O trio já estava longe da casa de Caius, andando em um silêncio desconfortável, cada um preso em seus próprios pensamentos quando Morrigan questionou:

— Tem a ver com os Ignis, certo?

— A reunião? — Caleb perguntou suavemente.

— Não, bem, sim — ela balançou a cabeça tentando colocar para fora o que rondava sua mente — O que preciso fazer, a profecia.

— Não sei, Mor. Espero que, quando a hora chegar, eles tenham as respostas — Caleb respondeu, mas sua voz denunciava a pontada de dúvida.

A híbrida direcionou então sua atenção para Elisa, arqueando uma sobrancelha em questionamento. Não precisou expressar a pergunta para a amiga entender.

— Não olhe para mim, minha mãe não me contou nada — Elisa respondeu, balançando a cabeça, fazendo seus cachos dourados brilharem sob a luz do sol.

— E você nunca escutou nenhuma coisa? — Morrigan insistiu, a voz baixa, quase um sussurro desesperado.

— Eles nunca se esquecem da bolha silenciadora — a loira respondeu com um riso atrapalhado, olhando ao redor como se esperasse que alguém aparecesse para repreendê-la.

— Podíamos tentar descobrir algo, talvez em um daqueles livros de Selene tenha alguma resposta — Caleb sugeriu após um momento de silêncio, sua voz soando pensativa.

Morrigan olhou para ele, seus olhos de um tom impressionante de violeta refletindo a luz suave do pôr do sol.

— Os livros que podem ter o que precisamos estão bem trancados. Não é como se eu tivesse acesso — respondeu, a frustração evidente em seu tom.

— Bem, você poderia quebrar o feitiço — Elisa falou com uma empolgação quase infantil na voz, evidenciado pelas mãos que se agitavam enquanto falava. — O que minha mãe disse é verdade, você foi treinada em magia a vida inteira. Além disso, é a herdeira da luz, a salvadora predestinada, blá blá blá… Isso deve servir para alguma coisa. Quem sabe você não tem poderes que nem imagina aí dentro.

Sim, Morrigan pensou ironicamente, poderes que ninguém imagina, mas que ela tinha certeza tinham mais a ver com trevas e destruição do que qualquer outra coisa.

Ela nunca entendeu como poderia ser a salvadora citada na profecia, tendo sangue de demônio dentro de si, herança de algum parente que nunca conheceu ou ouviu falar. De todos os membros de sua família, foi ela quem teve o azar de vir premiada, tornando-se uma bruxa imortal com uma incessante sede de sangue.

Descendente de demônio, pensou com desespero, não de um simples vampiro, mas de um de seus criadores. Morrigan apenas assentiu, preferindo não dar voz a nenhum de seus pensamentos. Sempre escondeu que o sangue animal nunca a suprira completamente, ao menos não sua vontade. Ou se quer contara certas esquisitices que lhe ocorriam ocasionalmente.

Ela não sabia, mas enquanto seus pensamentos se debatiam, Caleb a encarava fixamente, ciente de que havia algo errado.

O silêncio que se seguiu entre eles foi quebrado apenas pelo canto distante de um pássaro, enquanto o sol começava a se por no horizonte, lançando uma luz alaranjada sobre a aldeia.

1389

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top