Entrada XXVIII

E lá vem história de novo...

Eu ainda estou por entender quando foi, exatamente, que eu comecei a perder a cabeça, caderno. “Perder a cabeça” no sentido de que eu estou começando a falhar em me justificar pra mim mesmo. Sempre tenho uma explicação interna pra tudo que faço e penso, mas, ultimamente, eu já não tô conseguindo explicar nada. A história que eu vou contar agora, por exemplo, está repleta de eventos para os quais a explicação escapa pelos meus dedos. Vai acompanhando.

Tudo aconteceu de ontem pra hoje. Como você sabe, foi aniversário do Bruno. Até alguns dias atrás, ele não tava querendo fazer festa nem nada. Eu até pensei em comprar um bolo ali na padoca e cantar um parabém aqui pra ele, mas anteontem uns colegas dele/nossos da faculdade vieram aqui em casa e conseguiram convencê-lo a ir comemorar numa balada GLS que eles vão de vez em quando. Eu já fui uma vez, mas só uma, porque lá é caro pra entrar e achei o pessoal que frequenta meio esnobe. Mas o Bruno gostou da ideia, o pessoal tava animado e eu concordei também. Agora que tô fazendo um dinheiro bom, não me importaria de pagar caro pra entrar, até porque lá dentro mesmo eu não consumiria tanto, que eu não sou de encher a cara. Perguntaram se ele se importaria de chamarem o Otávio e ele disse que não. Eles terminaram amigavelmente. Não sei se ainda estavam conversando ou não, mas, apesar do que rolou, o Bruno não guardou mágoa nem nada, pelo que parece. Bruno tem um coração muito bom.

Quando foi ontem, dia da “festa”, combinamos de ir juntos e voltar juntos, pra rachar o táxi (ah, acabei dando um relógio que vi lá no shopping de presente. Ele comentou que estava querendo trocar o dele e eu achei boa ideia. Parece que ele gostou!). Tive que remarcar os dois programas que eu tinha agendados, mas não teve problema, afinal era aniversário do moleque e eu tinha que ir. Não que fosse minha obrigação, mas também porque eu tava com vontade, mesmo, de sair, distrair um pouco, dançar e tal. Como eu sabia que o lugar é chique, coloquei uma roupa mais da hora: uma camisa branca de manga longa com uns detalhes azul claro na gola e nas mangas que eu ganhei da minha mãe no meu último aniversário, calça jeans clara e um sapatênis que eu comprei no dia em que comprei o relógio. Fiquei gatinho, viu? O Bruno também tava bonito, de camiseta branca, blazer preto, calça cáqui e sapato. E o relógio. Ficamos de encontrar o pessoal lá. Ontem foi sábado. Quando deu mais ou menos dez da noite, chamamos o táxi e fomos. Ele parecia bastante empolgado. Bruno não é de sair muito, e, quando sai (geralmente eu tô junto), é mais pra barzinho, restaurante, cinema, coisa mais sossegada. Eu nunca tinha visto ele bêbado, eu acho. E vice-versa. Bom, fomos. E tô achando táxi muito caro nessa cidade. 30 contos pra ir daqui a ali! Absurdo isso. Mas não reclamei, né, era aniversário do cara; ele merecia a extravagância. Meridian, o nome da espelunca. “Espelunca” não: estabelecimento comercial, que lá dentro é legal, apesar do público que frequenta.

Chegando lá, não avistei ninguém conhecido de primeira. Ficamos procurando por um tempo, eu e o Bruno. Andamos pra lá, andamos pra cá, a galera riquinha espalhada por todo canto, dançando, pulando, bebendo, os bombados sem camisa — e preciso registrar a minha preguiça existencial de gente que tira a camisa em balada —, umas meninas muito bonitas me dando umas olhadas... Teve umas duas que me interessaram, mas eu não tava ali pra isso, então fingi que não era comigo — apesar de que, como a balada era gay, não sabia se elas eram lésbicas ou não, e, ainda que não fossem, elas provavelmente achariam que eu era gay, então, de qualquer forma, a noite não estava muito favorável pra mim. Fomos até o bar e pegamos uma bebida colorida que eu não sei o que era, mas que tinha um gosto muito bom. Dali a pouco um dos amigos gays do Bruno o chamou bem indiscretamente e nós fomos pra lá. Devia ter umas seis pessoas, mais ou menos, conhecidas. Estavam numa parte da balada em que tinha umas mesas, uns sofás, coisa de gente fina. Sentamos com eles. Eu conhecia quase todo mundo de vista, mas de nome (e de além-nome) eu só conhecia a Analice, que, lógico, haveria de estar presente, que ela e o Bruno são bem amigos. Um dos caras estava de mãos dadas com ela; devia ser o peguete da semana. Todo mundo nos cumprimentou. Ficamos lá sentados durante um tempo, conversando sobre tudo e nada ao mesmo tempo. Eu não sou muito bom em me localizar nessas reuniões sociais, porque sempre começam a surgir pelo menos dois assuntos paralelos e eu fico querendo participar de todos os assuntos e acabo não participando de nenhum. Fiquei no assunto que tava mais perto de mim, que não era o mesmo que o Bruno participava, porque ele estava no grupinho da Analice, do ficante dela e do amigo que o chamou quando nos encontrou.

Logo logo o Otávio apareceu. Quando isso aconteceu, senti que o clima ficou meio estranho. Nada mudou: todo mundo o cumprimentou e continuou agindo naturalmente, mas senti que o olhar do Bruno deu aquela congelada quando o viu. Não falei nada: cumprimentei-o, assim como todos os demais, e continuei na minha, conversando com quem tava perto de mim. Não sei se todo mundo que estava ali sabia por que ele e o Bruno terminaram... Bom, acho que, percebendo que a presença dele era um pouco perturbadora, o Otávio se tocou e não ficou por perto durante muito tempo; só fez a social rapidinho e sumiu no meio da galera. A conversa no meu grupinho tava legal. Os amigos do Bruno são quase todos legais. Acabou a bebida, fui trazer mais pra quem quisesse e, na volta, vi o Otávio conversando com o Felipe. Não sei se eles vieram juntos e eu sinceramente não esperava ver o Felipe ali, mas ignorei. Eles estavam conversando normal, que nem amigos mesmo, pelo que tive tempo de perceber. Voltei pro sofá e o papo continuou. O Bruno já tava ficando alegrinho (sim, com uma taça de bebida colorida), logo vi. Ainda quero viver pra ver esse moleque bêbado, mas bêbado mesmo. Deve ser uma cena muito engraçada.

O assunto tava bom, mas a Analice disse, em determinada altura da noite: “Gente, eu e o <insira o nome do ficante dela, que eu não lembro mais> vamos dançar. Vêm vocês também!”. Ela tava muito gostosa: de camisa comprida, shortinho, salto alto e batom vermelho. Não achei o ficante tão boa pinta; ela era mais do que ele. A maioria, incluindo o Bruno, concordou em ir. Eu me sinto meio idiota dançando, mas acabei indo também, afinal, todos estavam ali pra “ser idiotas”. Ficamos mais ou menos próximos uns dos outros. A Analice ficou dançando de par com o peguete, o Bruno, com o amigo gay dele, e eu, com a amiga sapatão. Teve uns dois ou três que continuaram sentados onde a gente tava. Uma graça, a menina que dançou comigo, não lembro o nome também. Conheço de vista lá da faculdade, mas nunca conversamos e eu morreria sem saber que ela é lésbica. A música tava da hora também. Acho que música de balada gay é mais legal do que de balada hetero. O DJ tinha uns remixes muito bons! Olhando pros lados, dava pra contar pelo menos uns cinco babacas rodando a camiseta no ar. Pobre de quem estivesse perto, sentindo aquele cheirinho de axila. Povo sem senso, meu, fala sério. E eu queria entender por que é que esses caras não têm UM pelo no corpo. Aparar aqui e ali de vez em quando é perfeitamente compreensível — higiênico, até —, mas ser liso do pescoço aos pés? O pior é que não posso nem dizer que acho isso uma veadagem porque todos ali, generalizando, era viadões mesmo.

Até o parágrafo anterior, tudo corria bem: estávamos todos nos divertindo, cantando, pulando e bebendo. Os eventos extraordinários começam a se dar a partir da próxima frase, que é esta: depois de dançar e pular, de beber, conversar e daquela agitação toda que estava rolando, senti vontade de ir ao banheiro. Pedi licença pra menina amiga do Bruno que estava comigo e já meio que me despedi, caso a gente não se encontrasse novamente no meio daquela multidão. Procurei pelos banheiros por algum tempo e encontrei. Fui e, chegando lá, fila. Tinha um casal se beijando ao lado da pia e eu achei aquilo um tanto... indiscreto. Lá na pista tinha uns cantos mais reservados pra fazer aquilo, poxa! Precisava ser no banheiro, onde dezenas de pessoas entravam e saíam e viam aquilo? Eu teria vergonha. Não vergonha da atitude, mas de me expor assim. Bom, esperei um tempinho até ter um mictório livre (pelo tamanho do prédio, aquele banheiro era muito pequeno, devo ressaltar), me aliviei, dei uma olhada no espelho e vi que já estava todo suado. Pelo menos o cabelo curto tinha esta vantagem: ficava intacto do começo da festa até o final.

Saí do banheiro e voltei pra pista. Passei no bar, antes, e peguei mais uma bebida. Aquela devia ser a terceira ou quarta. Eu não sou de beber muito, então fico facilmente alcoolizado. Conhecedor dos meus limites que sou, decidi que aquela seria a última. Tomei e fiquei olhando o movimento, procurando o Bruno e o pessoal de novo. Voltei pra onde a gente estava, mas já não tinha mais ninguém onde a gente se sentou quando chegamos. Fui pra parte de cima da boate e procurei por mais algum tempo até encontrar a Analice. Percorri os olhos pelas redondezas e logo avistei o Bruno e um outro cara. Dançando juntos. E logo eles começaram a se beijar.

Meu coração parou de bater. Eu não sei explicar o que aconteceu, mas, quando eu vi o Bruno e aquele cara que eu não sei quem é no maior amasso, me deu um gelo no peito, um negócio na garganta, um frio na espinha, um troço que eu não sei. Não sei. Fiquei olhando aquela cena, incrédulo, parado, sem ir nem voltar. Só soltei um “Puta merda...!” quando voltei à realidade. O Bruno tava beijando outro cara bem diante dos meus olhos. E, pensando por mais um ou dois minutos, uma palavra começou a se materializar na minha cabeça lentamente: ciúme. O Bruno estava beijando aquele cara e eu estava com ciúme.

Eu já não sei mais, agora, dizer o que é que tá rolando, na minha mente, entre mim e o Bruno. Até uns meses atrás, ele era meu amigo. Quando a gente começou a morar junto, ele rapidamente virou meu melhor amigo. Depois que a gente ficou, sem querer querendo, ele continuou sendo meu melhor amigo, mas minha quantidade de carinho por ele cresceu consideravelmente. Agora, vendo ele beijar outro na balada, senti essa pontada fortíssima de ciúme atingir meu peito em cheio. Não fiquei triste, não me senti traído, não me decepcionei nem nada, afinal eu não tinha motivos pra isso, mas o choque que eu senti quando meus olhos captaram aquela imagem foi terrível. Eu já não sabia mais se continuava lá em cima, se voltava pra baixo, se ia pra perto dele como se nada tivesse acontecido, se eu procurava a amiga lésbica de novo... Continuei parado.

“E aí, Dan?!”, ouvi alguém me chamar. Já fora do meu transe, olhei pro lado e quem me chamava? O Felipe. Estranhamente, ele não parecia estar nem bêbado nem drogado, e senti a voz dele um pouco mais esperta do que geralmente é. Ele deve ter dado um tempo com as drogas e com a bebida, porque aquele não era o “normal” dele. Não tinha nem  hálito de álcool. “Oi, Felipe”, respondi. Ele sorria. O sorriso continuava lerdo. Os olhos dele têm um formato bonito; têm tipo uma queda nos cantos externos, que dão aquele contorno meio que... triangular? Não sei explicar. “Tá perdido, cara?”, ele perguntou. “É, mais ou menos”. O Felipe não era exatamente a pessoa com quem eu tentaria manter um diálogo em qualquer circunstância da vida — embora, eu reconheço, minha atitude para com ele sempre foi bastante preconceituosa, afinal eu não sei nada sobre ele e sempre o julguei, majoritariamente, pela aparência e pelos boatos. Dei uma olhada pros lados, não querendo manter muito contato visual, mas, toda vez que eu fazia isso, meus olhos voltavam pro Bruno e pro cara, e eles não se desgrudavam, literalmente. E aquilo começou a me incomodar. “Tô te atrapalhando, né, cara? Foi mau”, Felipe disse. Olhei pra ele. Acho que ontem foi uma das primeiras vezes na vida que eu o vi sem boné ou boina ou touca ou qualquer coisa cobrindo a cabeça. Ele é loiro, mas um loiro escuro, tipo Brad Pitt em algum momento da vida dele. “Não tá atrapalhando, não”, respondi, sem prestar muita atenção no que eu falava. E ele me olhava com aqueles mesmos olhos com que ele me olhou no banheiro da faculdade. E nós ficamos nos encarando por um tempo. “Você não quer... ahm... dançar?”, ofereci, tentando me livrar daquele silêncio constrangedor. “Claro! Bora aê!”, ele disse, aparentemente empolgado. Terminei de beber a última da noite e seguimos para a pista, no meio da muvuca, mas longe do Bruno e do grandalhão.

A música tava da hora. Ficamos dançando sem chegar muito perto, afinal eu e o Felipe não temos intimidade nenhuma. Ele sorria o tempo todo, um sorriso muito lerdo e... engraçado, de certa forma; um sorriso que me fazia querer sorrir de volta. Eu tentava não encarar muito, porque nunca dá pra saber o que se passa na cabeça desse cara. Ele tava bem vestido, também, o que é raro: camisete preta, uma calça vermelho-vinho justa no corpo (sim!) e tênis, e deve ter entrado na academia, porque me lembro de ele ser mais magro do que aquilo. Ele não falava nada, só me encarava e dançava, e eu sempre tentando desviar o olhar, e parecia que, a cada vez que eu olhava pros lados, o Bruno estava menos longe. Da última vez que me lembro de ter olhado, ele já não estava mais grudado no cara, e pareceu ter me visto dançar com o Felipe. Não posso dizer com certeza porque desviei o olhar rapidinho, mas sei lá. Fica a dúvida. Voltei a olhar pro Felipe, que, sem desmanchar o sorriso, disse: “Você é muito massa, guri”.

Aí deu merda de novo. Quando ouvi aquilo, só deu tempo de processar a mensagem e reagir: puxei o moleque pela cintura e o beijei. Ele deve ter levado um susto; certamente não esperava que eu fosse fazer aquilo. Nem eu esperava. Mas fiz. E, meu, depois que o negócio começou a acontecer, quem se assustou foi eu: o cara tava com sede de mim. Sabe quando você percebe que a pessoa te beija como se a vida dela dependesse daquilo? Como se o mundo fosse acabar no próximo minuto? O cara chegava a gemer! Achei até graça, um pouco, mas não falei nem fiz nada, só continuei beijando ele e, olha, tava MUITO bom. Ele sabia o que estava fazendo. E as mãos dele passavam pelas minhas costas suadas, pela minha cintura, pelo meu pescoço, pela minha cabeça, pelos meus ombros, e pra dentro da minha camisa, e pela minha bunda, e entre as minhas pernas, e voltava pra minha cabeça... Olha: ele me aproveitou o quanto ele quis. E eu deixei. E ele não tinha bebido, mesmo; não senti sabor de bebida nenhuma nele. Paramos um pouco pra tomar fôlego e ele disse, sôfrego: “Tu é gostoso pra caralho, cara, puta que pariu...!”. Uma das marcas registradas do Felipe é esse vocabulário... pobre. Eu não sei por que a gente estava se beijando, mas tinha pra mim que não queria que aquilo se repetisse, então acrescentei: “Aproveita, guri, que é só por hoje”. Eu devia estar bêbado pra ter dito isso com essas palavras. Não é da minha natureza ser indelicado assim. Mas ele não pareceu se importar: balançou a cabeça afirmativamente e voltou a me beijar.

A gente deve ter ficado mais de meia hora nisso, e a sede dele durou essa meia hora toda. E o beijo do moleque era bom demais, puts! Acho que isso explica por que sempre tem menina (e decerto menino) no pé dele. A gente foi pra um canto menos movimentado e continuou a pegação lá (na verdade a gente estava era contra a parede, revezando entre as posições (nota: ser jogado contra a parede é uma experiência muito interessante, a qual nunca tive, até hoje, oportunidade de experimentar com uma mulher)). “Pegação” quase que literalmente, porque as mãos dele passearam pelo meu corpo livremente. As minhas também passearam pelo dele, mas mais discretamente. Não censurei o coitado: deixei ele se divertir. Muito engraçado beijar um cara e sentir aquela coisa dura roçando contra a sua (que no caso era a minha, que estava tão dura quanto a dele)... E, bem, eu poderia passar mais muitas linhas aqui descrevendo quão bom aquilo tudo estava (caderno, você não tem noção. Não tem!), mas vou pular pra próxima etapa: “Eu preciso achar o Bruno”, eu disse entre beijos, percebendo que o negócio estava esquentando demais. Felipe não protestou. Dei mais um beijinho rápido de despedida e fui procurar o Bruno, senão eu ia ficar grudado no Felipe a noite toda.

Há não muito, Bruno estava perto da gente, mas, agora, parecia ter sumido. Procurei, procurei, procurei, desci, subi, desci, voltei, fui, voltei de novo, passei pelos banheiros, procurei as outras pessoas que estavam com a gente, procurei a Analice, procurei o Otávio, procurei, procurei e nada. Liguei pro celular dele e deu desligado. Cansado de procurar, resolvi voltar pra casa sozinho, em desacordo com o que a gente tinha combinado. Saí da boate, liguei pro táxi e esperei. Eu não estava bêbado, mas sentia que minha cabeça estava meio... leve. É estranha essa sensação; é como se o cérebro estivesse boiando dentro da sua cabeça e os movimentos do seu corpo fossem mais rápidos do que o do seu crânio...  Por isso não gosto de beber: sinto que perco parte do controle de mim mesmo e não gosto de perder o controle. Mas eu estava bem. A coordenação motora também estava um pouco comprometida, mas eu tinha ciência absoluta de tudo que estava acontecendo.

Quando entrei em casa, vi que a luz do quarto dele estava acesa. Ele estava em casa. A porta do banheiro estava trancada e o chuveiro, ligado. Banho. Aproveitei que ele não estava por perto e fui lá fora jogar uma água no corpo e no rosto, que eu estava precisando de um banho também. O desodorante segurou a onda, entretanto; eu tava cheirosinho ainda. Quando ouvi a porta do banheiro abrir, me enxuguei na minha toalha, pendurada no varal lá de fora, e voltei pra dentro. “Que foi, cara? O que aconteceu?”, perguntei, entrando no quarto dele. Ele me olhou com cara de quem estava muito puto e não respondeu nada. “Fala, cara! O que aconteceu?!”, insisti. Essa fala foi consequência do álcool; soou meio rude. “Vim embora, ué? Não posso?”, ele respondeu, calma e ironicamente. “Não foi isso que a gente combinou, cara...”, eu disse, meio triste. “Desculpa. Não quis interromper seu momento com o Felipe. Decidi voltar sozinho”. Essa veio com um tom pior do que a anterior. Fiquei por entender. Ele tava lá todo todo pra cima do grandão; não tinha nada de errado em eu dar uns beijos no Felipe. E como ele sabia que eu tinha beijado o Felipe? “O que é que tem de errado em--”, “Você podia beijar qualquer pessoa naquela festa, Daniel, mas preferiu beijar o filho da puta que destruiu meu namoro bem na minha frente!”. Ele gritou isso alto o bastante pro quarteirão inteiro ouvir. Eu fiquei sem reação. Arregalei os olhos e vi que os olhos dele se encheram d’água quando ele falou isso, e só então eu percebi que, realmente, eu tinha ficado com o cara que acabou com o namoro dele. Caderno: eu juro, juro pela minha saúde que eu não fiz de propósito. O Felipe foi, por acaso, quem apareceu na minha frente e era a certeza que eu tinha. Eu tava me mordendo de ciúme do Bruno com o outro lá e a primeira coisa que me veio à cabeça foi beijar alguém pra, sei lá, fazer o Bruno sentir ciúme também, mas eu jamais teria feito isso com o Felipe se eu soubesse que isso ia machucá-lo! Jamais!

“Bruno... Cara...”, eu fiquei tentando procurar uma justificativa, mas nada me vinha à cabeça. O álcool estava afetando meu raciocínio e ver o Bruno prestes a chorar também não estava ajudando. “Bru, olha só...”, “Vai pro seu quarto, Daniel. Eu não quero ouvir sua voz. Dá licença”, ele disse, me pegando pelo braço e me tirando do quarto. Aí quem perdeu o controle fui eu. Eu não sei lidar com rejeição, e ver o Bruno me rejeitando me despedaçou o coração. Vítima do álcool de novo, comecei a maior cena: “Não, cara, por favor, me deixa ficar aqui, me perdoa, Bruno, eu fiz sem pensar, eu só fiquei com ciúme de você, eu não queria te magoar, me perdoa, por favor”, eu dizia aos tropeços, e logo comecei a chorar. É por isso que eu não bebo. Fico parecendo um idiota. “Vai pro seu quarto, Daniel”, Bruno disse firme. E eu insistindo: “Não, Bruno, eu quero ficar aqui com você, eu não sabia que você ia ficar triste, me perdoa, por favor, deixa eu ficar aqui com você”, e eu o abraçava à força, quase que o imobilizando, e ele tentando se livrar de mim, sem sucesso — mesmo bêbado eu era mais forte que ele. Eu estava fazendo uma cena mesmo. Na hora eu não me dei conta disso, mas agora estou ciente e não me orgulho muito do meu feito, mas já foi. Daí ele parou e ficou quieto, depois me abraçou, sem falar nada. “Não foi de propósito, Bru, eu juro! É que eu fiquei com ciúme e o Felipe apareceu e--”, “Tá bom, Daniel, eu entendi... Vai tomar um banho, depois a gente conversa, tá?”. Tá. Eu fui sem reclamar. Precisava mesmo de um banho frio pra espantar aquela nuvem de babaquice que pairava sobre mim. Tomei um banho não muito demorado e me senti melhor, mais “em mim”. Troquei de roupa e voltei pro quarto do Bruno. Deitei ao lado dele e ficamos em silêncio por um tempo. A luz apagada, a TV ligada, eu ainda choroso. Bruno quieto. Ainda tinha álcool no meu cérebro. Me aproximei e deitei minha cabeça no ombro dele. Ele não recuou nem avançou. Passei meu braço pela barriga dele e o abracei de lado. Nós dois em silêncio. Então ele me olhou com um olhar que eu não consegui traduzir e eu olhei de volta. E, não me lembro se por iniciativa minha ou dele ou dos dois, a gente se beijou.

Cara, o Bruno tem um negócio que eu não sei. Desde que a gente se beijou, aquela vez, parece que alguma coisa nele me acende. E é só com ele que acende. Com o Felipe me bateu um tesão porque ele caprichou, mas com o Bruno é diferente: ultimamente, basta eu olhar pra ele e já me vem uma vontade de beijar a boca dele. Acho que foi isso que eu fiz ontem, na hora dessa cena. Aliás, ele fez comigo, praticamente, o que eu fiz com o Felipe: beijei-o o quanto eu quis, e eu queria muito, e ele retribuiu, mas, mesmo me deixando beijá-lo e tocá-lo à minha vontade e sem me censurar (eu meio que bati uma pra ele, também. Assim: coloquei a mão dentro do shorts dele e dei umas pegadas no pau dele), nós não estávamos sintonizados na mesma frequência. Ele me beijou o quanto eu o beijei, me acariciou de volta o quanto eu o acariciei, me retribuiu todas as palavras doces-alcoolizadas-exageradas-porém-verdadeiras que eu disse... E isso meio que me deixou triste. Depois fiquei com dó do Felipe por ter feito o mesmo com ele. Parecia que eu estava condenado à morte e ele estava ali pra satisfazer inquestionavelmente as minhas últimas vontades antes da execução, sabe? Porque eu sabia que aquilo ia durar só por aquela noite.

Dito e feito. Dormimos juntos, mas acordei sozinho na cama. Levantei, escovei os dentes e senti a dor de cabeça batendo. Não estava doendo insuportavelmente, não, mas tava lá, pulsando. Bruno estava na cozinha, tomando café sozinho. Trocamos um bom dia e eu me sentei de frente pra ele. Tive vergonha de olhá-lo nos olhos. Fiz um pão pra mim e fiquei de cabeça baixa. Percebi ele me olhando fixamente enquanto tomava café. Senti meu rosto arder, mas não falei nada. “A gente precisa conversar sobre ontem, Dan”, ele disse. Meu coração gelou. Lá vinha merda... “Pode falar”, respondi. Sem rodeios, ele disparou: “Isso que tá rolando entre a gente tem que acabar”. Senti meu queixo ficar trêmulo e devo ter feito um beicinho involuntário quando ouvi ele dizer aquilo. Me senti uma criança levando castigo. Ele continuou: “Aquele cara que você viu ontem comigo... O nome dele é Miguel. A gente tá ficando há algum tempo”. “E você só me diz isso agora?”, perguntei, olhando-o nos olhos pela primeira vez. “Sim. O Miguel é o primeiro cara por quem eu me interesso depois que eu e o Otávio terminamos. Você sabe o quanto esse término foi difícil pra mim. Eu tô curtindo ficar com ele e não acho boa ideia a gente ficar se beijando a torto e a direito por aí. É tudo bem você querer experimentar com caras agora que começou a fazer isso por dinheiro, mas eu não vou poder fazer parte disso”. Doeu ouvir isso. Não deixava de ser verdade, mas poxa! Eu não tava “experimentando” com ele! “Tudo bem...”, respondi murmurando. Ficamos em silêncio e, pela primeira vez, me senti constrangido em silêncio perto do Bruno. Queria sair dali e enfiar minha cara no primeiro buraco que eu visse. Mas a culpa era minha. Fui eu que beijei o Felipe, fui eu que beijei o Bruno, fui eu que fiz aquela cena toda... Eu merecia ouvir o que ele disse. “Mas não quero que a gente deixe de ser melhor amigo”, ele continuou, “Você sabe que eu te amo e eu não quero que a gente fique se evitando aqui em casa. Tudo vai continuar sendo como sempre foi, só não dá mais pra gente ficar se beijando quando você bem entender”. “Quando eu bem entender não, Bruno”, intervim, “Eu não fiz nada sozinho”. Daí veio o bate-rebate:

— Nós já tivemos essa conversa, Dan.

— Não tivemos não, senhor. Você fala como se eu fosse um tarado te abusando sexualmente.

— Não viaja.

— Então admita que você gosta.

— Nós também já discutimos isso.

— Você tá inventando desculpa.

— Desculpa pra quê?

— Pra fugir de mim.

— Daniel, você tá ouvindo o que eu tô falando? Eu acabei de falar que não quero que as coisas mudem entre a gente: só quero que a gente não se beije mais porque eu tô ficando com outro cara! Qual é a dificuldade de você respeitar isso?!

Eu não sabia. Eu não sei o que eu quero do Bruno. Não sei mesmo. Eu sei que eu olho pra ele e, em 80% das vezes, sinto uma vontade urgente de beijá-lo, e o fato de ele não corresponder à minha vontade, ainda mais agora que tem esse Miguel na jogada, me faz sentir um negócio muito estranho. É esse cara que vai beijar ele agora! Não eu! E que mal há em a gente dar uns beijos de vez em quando, poxa? Tem tanto amigo por aí que faz isso... Sem contar que ele fica com essa de “você não é gay, você não é gay, nós somos amigos, eu não fico com hetero”. Tudo bem, eu também me identifico como hetero, mas você vê eu vir aqui descrever quão hetero eu sou, caderno? Eu não te falei há pouquíssimo tempo sobre estar aberto a novas experiências? O moleque me julga mais do que eu a mim mesmo! Fico meio puto com isso, mas não consigo ter raiva dele, só ciúme do tal de Miguel. Por outro lado, o que o ele disse é verdade: ele e o Otávio namoraram um tempão e terminaram assim do nada por causa do Felipe, e agora ele tava conseguindo se envolver com outra pessoa... Eu teria mais é que torcer pra eles darem certo e serem felizes juntos, mas eu não consigo. É lógico que eu não torço pra eles terminarem, mas também não torço pra dar certo. Não torço por nada. Torço é pra eu ficar em paz comigo mesmo, que essa história só me confunde a cabeça.

Bom, é isso. Acho que, seja lá o que estivesse acontecendo entre mim o Bruno, dentro da minha cabeça ou fora dela, acabou. Não sei te dizer ao certo como estou me sentindo em relação a isso tudo, mas parece que um pedacinho de mim saiu machucado dessa história toda... O jeito é dar tempo ao tempo e esperar as coisas se resolverem naturalmente. Sexta que vem é o casamento da quase-neta da dona Isabel. Talvez eu passe aqui antes disso, mas não prometo. A gente se vê, tá? Vou dormir agora. Boa noite. E obrigado por me ouvir. Um abraço. 

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