Entrada XXVI

E aí, caderno?

Cara, hoje foi um dia atípico... Aconteceu um negócio totalmente inesperado. Assim: foi bom, mas sabe quando, como diz minha avó, “o Inesperado faz uma surpresa”? Ele me fez uma hoje e eu fiquei ó: pasmado... Vamos aos fatos.

Eu estava ontem no meu quarto papeando no Face quando meu telefone tocou. Não o de programa; o pessoal. Eu não conhecia o número. Como já devo ter dito aqui, poucas pessoas me ligam, e, geralmente, quem liga é minha mãe (que, ainda bem, tem respeitado minha falta de vontade de vê-la ou de falar com ela e não me manda mensagem há quase uma semana). Atendi e era uma voz de homem.

— Daniel? — o cara perguntou.

— Sim? Quem fala?

— Oi, meu nome é Paulo... Você pode falar agora?

— Posso, sim...

— Eh... Bom, você não me conhece... Fui eu que chamei a ambulância quando... quando fizeram aquilo com você semana retrasada...

Eu não sabia quem ele era, mesmo. Não me lembro de ter visto ninguém chamar a polícia ou a ambulância ou quem quer que seja; só me lembro de ter acordado no hospital.

— Ah!... Oi, Paulo — fiquei meio sem graça. Ele riu.

— Oi... Então, eu peguei o telefone do Bruno no seu celular, aquele dia, pra ligar pra ele e o número dele ficou gravado na minha agenda... Mandei uma mensagem pra ele hoje pedindo seu número. Eu queria saber como você estava...

— Ah, sim, claro!... — o Bruno não comentou nada comigo sobre esse cara ter mandado mensagem pra ele. — Eu estou bem, já; pronto pra outra — ele riu de novo.

— Escuta, eu sei que isso é estranho e que a gente não se conhece e que você tem suas coisas pra fazer, mas eu queria muito te ver... A gente pode se encontrar algum dia? Eu te busco em casa, te levo de volta; posso preparar um jantar aqui em casa mesmo... Pode confiar em mim, eu não sou nenhum tarado nem nada.

Conte-me mais sobre confiar em estranhos tarados.

— Imagina, cara, que isso... Deixa só eu ver uma coisa... — dei uma olhada na minha planilha do Excel pra ver se eu tinha horário no dia seguinte (hoje). Tava de boa. — Amanhã tá tranquilo pra mim.

— Amanhã? Perfeito! Me passa seu endereço.

— Faz assim: me encontra na Abraão Mesquita perto da madeireira, perto de onde... aconteceu aquilo. É mais fácil.

Passar meu endereço eu achei meio arriscado.

— Ótimo! — senti certo entusiasmo na voz dele. — Que hora é bom pra você?

— Sei lá. Oito horas?

— Oito horas. Perfeito. O que você gosta de comer? O que você bebe? Vinho, cerveja, suco, refrigerante...?

— Qualquer um desses que você falou tá bom pra mim.

— Certo. A gente se vê amanhã, então, tá?

— Tá... (?)

— Um abraço!

— Outro.

O cara parecia bastante empolgado com a ideia de me ver. Fiquei por entender o motivo. Fui conversar com o Bruno pra saber dessa história direito e ele confirmou: o cara ligou pra ele e pediu meu número. O Bruno passou e acrescentou que o cara pediu pra ele não comentar comigo que ele tinha pedido meu número, o que eu também estranhei deveras. Mas, como tudo parecia confiável até o momento, não achei ruim nem nada. De certa forma, o cara meio que salvou minha vida. Pensa bem. Eu tava lá, estirado no chão, sangrando por todos os lados, e ele foi quem tomou a iniciativa e chamou alguém pra me socorrer.

Pois bem. Fiz meus programas de hoje, vim pra casa, tomei um banho, conversei um pouco com o Bruno, dei uma olhada na Internet e fiquei de bobeira até a hora de encontrar o cara. Quando deu quinze pras oito, fui pra Mesquita. Eu não sabia qual era a do cara, então me vesti casualmente. Quando vou fazer programa, visto umas roupas mais “bad boy”, que não são muito meu estilo. Fui de mauricinho, como diria a senhora minha avó. Não demorou muito e ele passou. Chegou num C4 Pallas cinza-escuro. Abriu a porta e eu entrei.

— E aí, garoto?! — ele cumprimentou, me estendendo a mão.

— Boa noite, cara. Tudo bem?

— Tudo bem, e você?

— Bem também.

O cara era bonito, meu, puta que pariu! Olhos muito azuis, meio retangulares, nariz fino, boca normal, rosadinha, barba meio por fazer, cabelo castanho médio (?) anelado penteado pra trás (sem gel, mas devia ter algum outro produto ali, porque parecia seco, mas brilhava e não tinha um fio fora do lugar), perfume bom... Sabe aquelas pessoas que parece que acabaram de sair do banho? Então. Ele devia ter uns 36 anos. Era mais alto que eu e parecia ser saradinho (os braços, pelo menos, eram (“saradinho” é tipo aquele meio termo entre magro e sarado (não sei com quem aprendi isso))). Estava de camiseta, bermuda e mocassim. Parecia ator de cinema. Fiquei me sentindo meio... diminuto perto dele. Primeiro porque ele era mais alto que eu pelo menos uns sete centímetros e segundo porque me sinto desconfortável perto de gente muito bonita, seja homem ou mulher. Não que eu me ache feio, mas sei lá, parece que, dentro da minha cabeça, fica um alerta tipo “você está ao lado de uma pessoa bonita: todas as pessoas vão olhar pra ela e pensar que ela é mais bonita do que você”.   

Ele foi dirigindo e nós ficamos conversando sobre nada muito sério. Ele foi me falando da vida dele e eu tentei não falar muito da minha. Acho que aquela era a primeira vez em meses que eu entrava em um carro pra sair com alguém sem que fosse pra transar. É claro que ele não sabia que eu fazia programa, e eu fiz questão de não contar esse detalhe. Mas, certo, falemos do Paulo: ele tem 37 anos (errei o palpite por um ano), mora sozinho, é divorciado (divorciou cedo, hein?), não tem filhos e mora num prédio bem ajeitado aqui no centro da cidade mesmo. Ah, ele é advogado. É bem bonitinho o apartamento dele. Não é grande que nem o flat do Bartô, mas é bem confortável. A gente entrou e ele disse pra eu ficar à vontade. Ligou a TV da sala e foi pra cozinha, e eu me sentei numa das cadeiras da mesa da copa. Tinha só um balcão separando os dois cômodos. Logo ele voltou e me entregou uma taça de vinho. Agradeci e fiquei observando o movimento. Ele voltou pra cozinha e tirou uma carne da geladeira. Perguntou se eu gostava de carne assada e eu respondi que sim. Eu gosto de tudo, na verdade. Ficamos conversando sobre tudo e nada. Sabe quando o assunto rende mas ninguém fala de nada muito específico ou relevante? Ficamos nisso por uns bons minutos. Ainda não sabia qual era a dele, e ele, creio, também não sabia qual era a minha. Então ele perguntou: “Mas me fala sobre você”. Não tínhamos falado quase nada sobre mim, nem tínhamos tocado no assunto do acidente. Era difícil falar sobre mim sem falar das coisas que eu não queria falar. Tentei contornar o máximo que pude. Sabe quando você tenta responder uma prova na escola sem fazer a menor ideia de qual é a resposta e fica rodeando, rodeando, rodeando sem nunca chegar ao ponto e responder à pergunta de fato? Foi o que eu fiz. Não sei se ele percebeu que eu não estava muito a fim de falar de mim, mas, ainda que tenha percebido, não insistiu. Ele não me olhava muito. Ouvia com atenção, mas também estava concentrado em mexer com a carne; não fizemos muito contato visual, o que eu achei bom, porque tenho um pouco de dificuldade em manter contato visual com pessoas que recém-conheci ou não tenho intimidade.

Isso durou até ele colocar a carne no forno. Feito isso, ele sugeriu que a gente se sentasse na sala e eu acatei a sugestão. Fomos pros sofás: ele se sentou no de três lugares, de frente pra TV; eu, no de dois, de frente pra sacada. Era uma sensação estranha olhar pros olhos dele, porque são muito azuis. Mas ele me olhava bem direto nos meus, com um sorriso discreto. Tava passando jornal a essa hora, mas o volume não atrapalhava nossa conversa, que seguia muito trivial até, em dado momento, ele perguntar se podia fazer uma pergunta. Por que as pessoas fazem isso? Pergunte direto, ora! “Você é garoto de programa, não é?”. Acho que minha cara de susto respondeu por mim. E eu pensando que estava tudo sob os panos. “Como você sabe? O Bruno te contou?”, perguntei. “Não, não. Fui eu que deduzi”. “Por quê?”. “Eu já tinha te visto antes... Na verdade, eu só passei pela Mesquita naquele dia do ocorrido porque eu tinha te visto antes”, ele começou a explicar, “Foi num dia em que eu passei na casa de um amigo pra devolver <alguma coisa que agora eu não lembro o que é> e, por isso, fiz aquele caminho... E eu te vi, perto da madeireira, andando pra lá e pra cá, inquieto” — certamente foi no dia em que o cliente me deu um bolo — “Voltando pra casa, não muitos minutos depois, você já não estava lá... Daí supus que você estivesse esperando um cliente e ele tivesse chegado”. Estava tão na cara que um rapaz de pé, ou andando pra lá e pra cá, por aquelas bandas seria um garoto de programa? Pelo visto, sim. Ele continuou: “Depois, eu passei por aquela rua mais algumas vezes, naquele mesmo horário, pra ver se te encontrava de novo... E acabei encontrando, no dia do ocorrido”. Acho que fiquei meio vermelho naquela hora. O cara ficou voltando no local do crime só pra ver se me encontrava de novo? “E o que você queria? Fazer um programa?”. A pergunta pareceu imbecil, mas, ao contrário do que eu esperava, a resposta foi “Não, não... Na verdade, sim e não. É que você... você se parece muito... com alguém que eu já amei demais... um dia”. Nessa hora eu tenho certeza que fiquei vermelho, porque senti o sangue do meu corpo inteiro subir pro meu rosto. “...E, quando eu te vi andando pra lá e pra cá, algo no meu cérebro me disse que você poderia ser ele... Mas é impossível, porque isso foi na nossa juventude; agora ele já deve estar bem longe daqui”.

Fiquei por entender. Eu lembrava alguém que ele amava muito, ele queria fazer um programa, mas não queria, agora eu estava na casa dele jantando... “Mas você não é divorciado?”, perguntei, assumindo que, tecnicamente, ele haveria de ser heterossexual — apesar de que basta ver os meus clientes e perceber que isso não diz muita coisa. “Sim, e foi por isso que eu me divorciei. Achei injusto com a minha ex-esposa manter uma vida dupla. Isso foi quando uma pessoa — um cara — do meu passado voltou a fazer parte da minha vida e mexeu muito comigo. Decidi que era melhor contar a verdade e terminar nosso casamento. E assim foi... Desde então, não me envolvi com mais nenhuma mulher. Isso faz o quê? Três anos, eu acho”. Meu, que exemplo. Por que todos os caras não são assim? Fiquei admirado. Ele me contou um pouco mais sobre a história do casamento dele, sobre esse cara do passado e sobre o outro, que ele amou muito um dia e que se parecia comigo. Depois perguntou: “Mas por quê? Por que fazer programa? Você é um rapaz tão bonito, inteligente...”. Dar essa resposta assim seria começar a história in medias res. Como ele já sabia da parte mais... “negra”, que era minha vida de meretrício, não custava nada explicar as coisas do começo a ali. Contei que o desgraçado era alcoólatra, que me expulsou de casa quando parti pra cima dele ao vê-lo bater na minha mãe, que ela negou as acusações quando eu denunciei, que ele mandou me darem uma surra depois disso... “Espera aí. Então você sabe quem mandou fazer aquilo com você?”, Paulo perguntou. “Sei. Não tenho como provar, mas eu sei. Um dos caras disse que tinha um ‘recado’ do doutor Lúcio pra mim. Além disso, eu sou o único que sabe que ele bate na minha mãe”. “Mas por que sua mãe negou as acusações?!”. Ah, como era bom ver alguém compartilhar da mesma indignação que eu!!! “Porque ela é uma imbecil completamente submissa que não reconhece que tá numa relação patológica e se recusa a procurar ou receber qualquer tipo de ajuda”. E aí a gente começou a falar disso e o Paulo já ganhou minha cordialidade só por sentir o mesmo que eu. 

A comida ficou pronta (e tava M-U-I-T-O boa, caderno, puts!) e nós continuamos com esse assunto. Ele é advogado, sabe melhor dessas coisas que eu. Ficou tentando procurar um meio de incriminar o desgraçado e de fazer minha mãe confirmar as acusações, mas não conseguiu. Era difícil. Ele me perguntou se eu reconheceria os agressores caso os visse, mas eu acho que não reconheceria, não. Primeiro porque eram quatro, segundo porque eu não consegui prestar atenção no rosto de ninguém e terceiro porque minha memória seletiva já deve ter apagado essas informações. Não dava. Se eu quisesse fazer justiça, teria que encontrar outros meios — fazer justiça com as próprias mãos também ainda me soa como um plano. Já pensou eu dando um tiro no meio da testa desse cara, que delícia? Meio difícil, mas sonhar não custa. Mudamos de assunto.

Gostei dele, caderno. Não ficou muito claro, pra mim, se ele me procurou só porque eu parecia o tal do cara que ele amou ou se ele queria fazer um programa (talvez justamente por eu ser parecido com o tal do cara) ou se ele só estava sendo legal comigo porque meio que me salvou de uma situação de quase-morte, ou se ele se solidarizou com a minha história “sofrida”... Não sei, mas gostei de estar com ele. A conversa foi legal, a comida, nem se fala... Ele me trouxe de volta. Senti que podia confiar nele, então pedi pra ele me deixar em casa mesmo, não na Mesquita. Ainda dentro do carro, ele disse: “Eu queria te ver, de vez em quando... se você não se importar”. Claro que eu não me importaria, né? “Claro, pode me ligar, você tem meu número, eu tenho o seu... A gente se fala, sim”. Ele sorriu. “Ótimo. E, se você precisar de alguma coisa, se conseguir encontrar qualquer coisa que possa ser útil pra incriminar seu padrasto, pode me procurar”. Veja só com que facilidade ele estava ganhando o caminho pro meu coração ♥ “Tudo bem, eu te aviso sim, pode deixar”. Nos despedimos com outro aperto de mão e eu entrei. E cá estou.

Que coisa, não? Ganhei um aliado. Que pena que eu não tenho nada pra incriminar o desgraçado... Que pena. E foi isso. O aniversário do Bruno tá chegando, já falei? Ainda não sei o que dar de presente pra ele. Pensa em alguma coisa aí e me fala; vai ser na semana anterior ao do casamento da quase-neta da mulher lá. Ela ficou de me ligar pra gente marcar de ir alugar as roupas. Tô curioso pra saber como vai ser esse negócio, hehe. Bom, agora vou me recolher. Qualquer hora a gente se fala, tá? Abração. Se cuida! 

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