Entrada XLVIII
Fala, caderno...
Como cê tá? Bem?... Que bom. Eu não tô bem não, cara. Aconteceu uma coisa chata hoje e, por mais que já tenha passado, eu ainda tô triste. Vou te explicar daqui a pouco. Antes, à notícia mais importante: Clarissa voltou pra cidade dela. Já chegou, já se reuniu com os familiares, já nos falamos por telefone e está tudo bem, graças ao bom Deus. Ninguém a localizou aqui, embora, decerto, tenham a procurado à exaustão; também ninguém tentou entrar em contato com ela nem com a família dela por lá — isso tudo graças ao fato de que ela não passou nenhum tipo de informação de contato quando foi parar naquele inferno. Conversamos bastantinho pelo telefone; mais uma vez, ela me agradeceu mais do que o necessário por tudo que eu fiz e me prometeu ajudar no que quer que seja necessário quando eu tiver o que preciso pra trazer esse esquema abaixo.
Não sei se esta dúvida ficou no ar, mas não, nós não transamos nenhuma vez enquanto ela esteve aqui, por vontade de ambos. Embora seja inegável que ela me atrai muito e, pelo visto, a atração seja recíproca, eu não me senti no direito de tentar qualquer coisa, levando em conta a situação em que nós estávamos envolvidos. Também não sei se seremos amigos daqui em diante. Nosso contato foi um tanto quanto... dramático, talvez? Sei lá. Eu gostaria de ser amigo dela, sim, mas, mesmo estando aqui em casa, ela continuava tão distante quanto quando eu a via no canil... Talvez seja mesmo bom pra ela ficar longe de mim, porque eu estou diretamente ligado a tudo que ela quer esquecer, e eu vou respeitar isso, se for da vontade dela.
Enfim. Clarissa foi embora e voltamos, eu e o Bruno, a ter a casa para nós. Não que a Clarissa tenha tirado a nossa privacidade, mas é que é diferente ter uma terceira pessoa por perto. E, até hoje, o Bruno não sabia desse meu plano todo pra desmascarar o desgraçado e colocá-lo na cadeia. Ele sabe que eu tenho esse espírito justiceiro e que certamente pensaria em alguma coisa pra derrubar essa máfia, mas o coração dele é bom demais pra conseguir calcular o tamanho do meu ódio por esse cara e até onde eu iria — “iria” não: irei — por causa dele. Aproveitando a volta da Clarissa pra casa, decidi contar a ele o que está prestes a acontecer ao longo dos próximos dias. Foi há pouco, antes de a gente ir dormir. Estávamos nós dois na cama, como todos os dias, assistindo TV quando eu falei: “Você sabe que eu não vou deixar isso barato, né?”. Ele me olhou, sem entender bem o que eu disse. “Do que cê tá falando?”, perguntou. “Agora que eu sei que é o Lúcio que está por trás disso, eu vou até o fim do mundo pra acabar com ele de uma vez por todas”. A fala é canastrona, mas a intenção é bem verdadeira. Bruno me olhou com uma cara preocupada. “Como assim? O que você tá pensando em fazer?”. “‘Pensando’, não: eu vou fazer. Eu vou conquistar a confiança dele, voltar pra casa, conseguir provas e denunciar esse esquema”. Bruno se sentou na cama num impulso só. Me olhou fundo nos olhos com uma expressão aterrada. “Voltar pra casa? Cê tá maluco, Daniel?!”. “Não, senhor; estou muito são e vou colocar esse cara atrás das grades nem que isso custe a minha vida”. “Daniel!”, os olhos dele se arregalaram ainda mais, “Você não vai fazer isso! Eu não vou deixar você fazer isso!”. “Eu não tô pedindo sua autorização, Bruno, só tô te contando isso pra você se preparar, porque eu tô muito ciente de que, de hoje em diante, não sei até quando o sol vai continuar nascendo pra mim”. “Daniel!”. Cada “Daniel” desse saía mais alto do que o anterior. Bruno levou as mãos à cabeça. “Daniel, você não pode fazer isso! Esse cara vai te matar!”. “Eu sei e me disponho a correr o risco”. Ele continuava me olhando com olhos arregalados, atordoados; a boca entreaberta, mas sem dizer mais nada. Eu devolvia o olhar e com esse assegurava que não voltaria atrás na minha decisão.
Em meio a esses segundos de silêncio, Bruno desceu da cama subitamente e saiu do quarto feito um vulto. Passou direto pela sala e foi para a cozinha. Respirei fundo, ainda deitado. Pacientemente, me levantei e fui atrás dele. Com a cabeça baixa, ele segurava a beirada da pia com as duas mãos, uma afastada da outra, assim como o corpo, que não encostava no mármore. Me aproximei e disse: “Bru, não faz isso...”, tocando o ombro dele. Ele afastou minha mão com um movimento brusco. “Me deixa”, disse, sem levantar a cabeça. Desobedeci. Tentei me aproximar de novo, abraçando-o, e, dessa vez, ele me empurrou com força, me fazendo perder o equilíbrio e quase cair. “Sai de perto de mim!”, ele gritou. “Eu não vou sair!”, eu gritei mais alto, e ele me olhou nos olhos então. Me encarando com uma expressão que eu nunca antes vi nele, Bruno disse, com olhos marejados e voz trêmula: “Você é um filho da puta egoísta, Daniel; é isso que você é”. Meu sangue ferveu instantaneamente. Egoísta? Eu?! Me aproximei pela terceira vez. “Egoísta?! Você acha que eu estou fazendo isso por mim?, só por mim?! Você sabe quantas meninas ‘tão presas naquela casa?! Você é que tá sendo um filho da puta egoísta, Bruno!”, eu vociferava e apontava o dedo pra ele (odeio apontar o dedo, mas quando o sangue tá quente...), espumando de raiva por ele estar lendo minhas intenções de forma absurdamente distorcida; e a partir daí começamos a discutir puramente na base do “quem gritar mais alto vence”. Os vizinhos devem ter adorado.
— E você acha que alguma delas arriscaria a própria vida pra salvar a sua, como você tá querendo fazer?!
— Não interessa! Eu sou o único que pode fazer alguma coisa por elas e eu vou fazer, quer você queira ou não!
— Você não é Deus, Daniel! Você é um mero garoto de programa que descobriu um esquema e quer se fazer de super-herói!
— Ah, vá se foder, Bruno! Super-herói?! Você acha justo eu saber de tudo que eu sei e não fazer nada?!
— Eles vão te matar, Daniel!!
— Eu não me importo!
— EU ME IMPORTO!!! — Bruno disse isso dando quatro pancadas fortes no peito.
Depois dessa fala nós nos calamos, e o que ele disse ecoou na minha cabeça durante muitos segundos. Minha garganta já estava formigando de tão alto que eu falava/gritava. Bruno e eu estávamos ofegantes. Ficamos nos encarando com aquele olhar de cólera mútua sem falar nada. E logo ele começou a chorar: por mim. Bruno chorou por mim. E vê-lo chorar pela mera possibilidade da minha morte me rasgou o peito e quase me fez desistir da ideia, porque eu faria qualquer coisa pra não arrancar uma lágrima dele.
Ele se virou de costas e enxugou as lágrimas. Aquilo me pegou desprevenido e você sabe que eu não lido muito bem com pessoas chorando. Sem saber exatamente o que fazer, me aproximei dele devagar e tentei abraçá-lo mais uma vez. Ele não tentou me afastar: aceitou meus braços ao redor dele, virando-se para mim e agarrando minha blusa com força. As lágrimas dele molhavam meu peito e minhas mãos tentavam protegê-lo da incerteza. “Vai ficar tudo bem... Eu prometo”. O choro dele durou algum tempo. Sem sucesso, eu tentava acalmá-lo e fazê-lo acreditar que tudo daria certo no final, mas essa é uma certeza que nem eu mesmo tenho. “Eu não vou morrer, Bru... Ninguém vai me matar. Eu vou voltar pra casa. Por você. Confia em mim...”. Ele foi
*****
Oi, caderno. Bom dia.
Desculpa por ontem. Já era madrugada quando eu escrevia as últimas linhas. O Bruno bateu na porta e me pediu pra dormir com ele. Com medo de ele ler o que eu estava escrevendo (meio impossível, dada a distância entre a tela e a porta), acabei fechando o notebook e depois a bateria acabou e eu só voltei pra cá agora; não deu tempo de terminar a entrada. Mas aí é bom que eu já acabo de contar o que estava contando e emendo com o restante dos acontecimentos (sim, houve).
Onde parei? A gente estava na cozinha e tal e eu tentando acalmá-lo e fazê-lo acreditar que eu não ia morrer... Ah, sim. E ele disse que não queria me perder e que eu estava sendo inconsequente e eu não deixei a conversa se reiniciar. Voltamos pro quarto dele, ficamos quietinhos um ao lado do outro e depois eu vim pra cá escrever quando ele pegou no sono pela primeira vez. Menos de uma hora depois, ele acordou e veio me pedir pra dormir com ele, então eu fui.
Deitamos debaixo do edredom de novo e ficamos frente a frente. O quarto escuro, a TV desligada, tudo em silêncio. Ele já havia parado de chorar desde antes de eu sair do quarto da primeira vez, não sei se ficou claro (é que o Bruno ficou meio chorão depois do Otávio). “Desculpa eu ter gritado com você...”, ele pediu depois de alguns minutos em silêncio absoluto. “Esquece isso; já passou”, respondi. Bruno gosta de ficar remoendo as coisas. Estava escuro; eu quase não conseguia enxergá-lo. “Mas o que é que eu vou fazer se você morrer?”, ele perguntou em tom brando. “Para de pensar bobeira”, respondi. “É sério, Daniel... Cara, se alguma coisa te acontecer...”. Ele falou isso de um jeito muito bonitinho, caderno. “Se alguma coisa me acontecer...?”. Ele não respondeu, mas eu entendi o que ele quis dizer, e por isso sorri, por dentro e por fora. Levei uma mão até o rosto dele e acariciei. “Você é o cara mais lindo que eu já conheci, sabia?”, falei. Ele riu. “Para de falar essas coisas...”. Eu ri. “Senão...?”. Não falei isso com intenção nenhuma; juro. É que ele estava muito bonitinho preocupado comigo e eu queria quebrar o gelo com qualquer diálogo infantil; eu fico meio superprotetor com o Bruno quando ele tá emocionalmente abalado. Ele ficou quieto por um instante. Eu não conseguia vê-lo direito, já falei, né? Dava só pra ver uns contornos que recebiam o reflexo de um facho de luz que entra por alguma janela da casa que eu não sei qual é. Em resposta ao meu “Senão?”, Bruno se inclinou em minha direção e... me beijou. É. Claro que não veio cheio de garras feito o Felipe, mas encostou os lábios nos meus, afastando-se novamente três ou quatro segundos depois. “Senão isso...”, ele disse.
Eu não esperava aquela reação, não. Nunca, mesmo. Mas, quando senti a boca dele na minha, isso me pareceu tão... tão certo, sabe? Fiquei procurando alguma coisa pra dizer e parecer programado e fazê-lo se sentir bem, tipo cena de filme, em que todas as falas se alinham perfeitamente e criam aquele efeito, mas não tive tempo pra raciocinar. A única coisa que fiz foi me reaproximar e retribuir o beijo propriamente. E, cara, me ocorreu que essa foi a primeira vez, desde sempre, que o Bruno veio a mim. Nas outras vezes (não foram tantas assim; umas quatro ou cinco, talvez?), a iniciativa foi minha. Dessa vez, ele me beijou, e isso me fez sentir algo muito estranho. Você sabe que não existe e provavelmente nunca vai existir alguém neste mundo que eu ame mais do que o Bruno. É um amor que eu não consigo nem explicar. Mas sabe quando você ama tanto alguém que acredita que esse alguém nunca vai te amar do mesmo tanto, porque parece que seu sentimento vai ser sempre maior? Então... É mais ou menos isso que eu sinto com o Bruno. Ele é meu melhor amigo; é lógico que ele me ama também, mas eu sempre tenho a impressão de que, por minha parte, o sentimento é maior. E ontem, quando a gente brigou e depois, quando ele me beijou, pela primeira vez eu tive a sensação de que o que eu sinto não é tão maior assim do que o que ele sente. Caderno, ele chorou por mim. Ninguém nunca chorou por mim, além da minha mãe, que não serve de base. Depois ele me beijou. Ele nunca tentou me beijar nem fazer nada que eu não tivesse começado antes. E sei lá, isso mexeu comigo. Muito. Um dia desses eu estava aqui te contando sobre o Paulo ter me beijado como se eu fosse o Ítalo e que a sensação de beijar alguém que se ama deve ser muito boa... Acho que, hoje, eu posso te dizer: a sensação é fantástica.
Não vou me estender nesse assunto por enquanto. É cedo agora; ele ainda não acordou. Vim aqui ontem pra falar que eu estava triste porque eu e ele tínhamos brigado feio pela primeira vez desde que nos conhecemos, mas as coisas acabaram terminando de um jeito inesperado. Neste momento eu não sei como estou me sentindo. Estou feliz, eu acho, mas meu coração... Algo mudou aqui dentro. Tô me sentindo leve, mas, ao mesmo tempo, parece que tem um peso no peito. E eu suspirei agora que disse isso. Sei lá, caderno. Isso tudo que tem acontecido está mexendo com os meus sentimentos, eu acho; tanto com os bons quanto com os maus. Preciso resolver essa situação com o desgraçado o quanto antes pra voltar ao meu eu natural. Torce pra sorte sorrir pra mim, por favor, tá? Obrigado. Vou tomar café agora, outra hora a gente se fala. Bom dia pra você!
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